segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O adiamento








O encerramento deste blog, anunciado num momento de dor e cansaço, talvez tenha sido prematuro e mal pensado. Depois de acompanhar uma campanha de baixíssimo nível, feita de acusações, bravatas, ausência de propostas e notícias fraudulentas; depois de uma lastimável desarticulação das esquerdas; depois de um atentado, verdadeiro ou falso, mas tão providencial que foi celebrado como uma "facada divina" por um pastor aliado do candidato vitorioso; depois da convocação de um ministério que combina alguns valorosos egressos da West Point brasílica e algumas insípidas incompetências de sempre, corruptos fisiológicos dos Democratas e paladinos da Justiça, ríspidos porta-vozes da eficiência do mercado e pastoras sofridas que acreditam em princesas, pitorescos spenglerianos de ultimíssima hora e pícaros ávidos como os filhos do capitão; depois de ler com sentimento de dejà-vu as notícias do escândalo cujo protagonista é um factotum da família presidencial envolvido numa suspeita movimentação bancária que respinga lama na esposa e no filho mais velho do capo de Estado; enfim, depois de ler com atenção tudo o que a imprensa divulgou nos últimos meses, eu percebi que é melhor adiar o fim deste blog. Não que ele valha muita coisa ou tenha qualquer pretensão de representar algo importante neste momento, mas diante da derrota que as forças emancipatórias têm sofrido por toda parte, um gesto a mais de desistência é justamente o que não se pode conceder ao adversário. A nossa paralisia facilita seus movimentos. O nosso estupor alimenta a sua audácia. A nossa mudez engrandece a sua voz. A nossa inteligência inerte dá poder à sua estupidez ativa.

Todavia, temos que abandonar desde já a crença consoladora de que o futuro está do nosso lado. O futuro não está nem do nosso lado nem do de ninguém. O futuro é a rachadura no presente, que anuncia a destruição de tudo o que existe e de tudo o que conhecemos, ao mesmo tempo que deixa passar o incerto raio de luz que alimenta nossas expectativas e nos guia no esforço presente de transformar o mundo. A dificuldade é que o engajamento – por mais que se queira fundado no conhecimento das condições presentes e na memória rigorosa das condições passadas - nunca é independente das nossas expectativas, nutridas pelo medo ou pela esperança, pois "não há esperança sem medo, nem medo sem esperança (...) Como consequência, enquanto se está apegado à esperança, tem-se medo de que a coisa não se realize" (Spinoza, Ética, Parte III).  

Na tentativa de esconjurar a incerteza do futuro e aliviar o  fardo de nossos temores e aspirações, invocamos rezas, palpites, conjeturas, hipóteses, profecias, previsões do tempo, pareceres dos experts, modelos matemáticos, teorias sobre o sentido da História: toda a gama de racionalizações do que não poder ser legitimamente conhecido. Esses recursos seduzem porque toda a ignorância com foro de saber é altiva, loquaz e se presta ao comércio de opiniões, que é uma das delícias da vida social, ao passo que a ignorância humilde e consciente de si padece de laconismo. Para escapar à tolice e à impostura dessas previsões do futuro, seria preciso aderir a uma profilaxia muito mais profunda e muito mais enérgica do que a providência simples de pensar bem para não dizer bobagem. Seria preciso ir mais longe e extirpar o próprio medo e, junto com ele, a esperança.

No entanto, sem coragem, energia ou capacidade para um gesto tão radical, seja por causa de alguma falha inscrita na natureza humana ou da nossa mera acomodação ao que está dado - afinal de que valeria tentar mudar as regras da partida em curso-, endossamos, com igual facilidade, tanto o otimismo sazonal da virada de ano e quanto o pessimismo apocalíptico em relação ao Brasil, ao mundo e à espécie humana. Nadamos na contradição e no despropósito, como mostram nossas opiniões cambiantes e incoerentes, retratos de nossa rendição à facticidade e ao impensado. Eis o que um filósofo não pode aceitar e contra o que deve lutar. O enfrentamento que lhe cabe, feito com as armas da crítica, requer a paciência e a serenidade de compreender que a condição precária e provisória do agora exige um constante cuidado, que abre possibilidades futuras sem garanti-las, como descobriram os habitantes de certa ilha vulcânica no poema de Hans Magnus Enzensberger.






O adiamento


"Quando da célebre erupção do Helgafell, um vulcão

da ilha de Heimaey, transmitida ao vivo por uma dúzia

de equipes de TV a tossir sem parar, eu vi, sob a chuva sulfúrea

um homem de meia-idade, de suspensórios, que dava de ombros,

sem importar-se muito com a ventania, o calor,

as câmeras, as cinzas, os espectadores (inclusive eu,

acocorado em meu tapete, diante da tela azulada),

e investia com sua mangueira de jardim, delgada mas nítida,

contra a lava, até que finalmente vizinhos, soldados,

colegiais e mesmo bombeiros juntaram-se a ele, todos

apontando mais e mais mangueira para a lava incandescente

que avançava, erguendo um muro cada vez mais alto

de lava fria, endurecida pela água, cinzenta, e com isso

adiaram, não digo para sempre, não, mas ao menos

por enquanto, o naufrágio da civilização ocidental, de sorte que

as pessoas de Heimaey, uma ilha tão distante da Islândia,

a menos que tenham falecido de lá para cá, continuam

até hoje a acordar de manhã em suas casinhas de madeira

colorida e à tarde, longe do olhar das câmeras, regam a alface

adubada pela lava, que dá pés enormes em seus jardins,

só temporariamente, é claro, porém sem pânico".


Hans Magnus Enzensberger, O Naufrágio do Titanic, Canto X

Companhia das Letras, São Paulo, 2000























terça-feira, 10 de julho de 2018

Dicionário aleatório #15










Conservadorismo (parte II)


Tenho alguns amigos conservadores. Alguns deles até sabem ler, mas não o fazem com frequência. Nada sabem de Russell Kirk ou Edmund Burke. Nunca citam Mises nem Hayek. Eles apenas ouvem a rádio Jovem Pan e as notícias que circulam pelo WhatsApp. Eu duvido que eles fariam investimentos financeiros com base nesses boatos, mas quando se trata de política, eles se servem deles com o ardor dos neófitos. 

Como tenho algumas luzes e paciência de professor, na época da campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff fui obrigado a explicar a vários amigos conservadores que, em caso do afastamento, assumiria o vice-presidente Michel Temer e não Aécio Neves, o segundo colocado nas eleições de 2014. Meus amigos - vários deles egressos de instituições respeitáveis como o ITA e a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – olhavam-me incrédulos. Recordei-lhes que, com o afastamento de Fernando Collor em 1992, quem se tornou presidente foi Itamar Franco e não o Luís Inácio Lula da Silva, o segundo colocado nas eleições de 1989. Eles argumentaram que isso tinha sido há muito tempo e que as regras tinham mudado com a nova constituição. Eu respondi que a constituição vigente ainda era a de 1988 e, portanto, as regras se mantinham. 

Quando Dilma Rousseff foi finalmente afastada e o vice-presidente assumiu, meus amigos conservadores, devidamente orientados pela Jovem Pan e pelo WhatsApp se regozijaram com a seriedade de Michel Temer, seu discurso firme, sua abertura para o diálogo, sua experiência com o Congresso. Um desses amigos me disse, em tom triunfante, que Temer reduziria o número de ministérios, um grande passo na contenção dos gastos do Executivo. Talvez porque eu seja um desmancha-prazeres inveterado, condição própria de quem é assíduo nos livros, perguntei se as verbas destinadas aos ministérios extintos seriam transferidas para os outros ministérios. O amigo conservador não entendeu a questão. Junto ao quadro negro da sala dos professores, expliquei-lhe, como quem parte pão aos pequeninos, que de nada vale reduzir o número de ministérios se o orçamento total do Executivo continuar o mesmo. O amigo insistiu que Temer iria dar um jeito nisso porque ele era um homem que sabia dialogar e tinha vontade firme de levar adiante as “reformas necessárias”. Alguns amigos elogiaram a beleza da primeira-dama e outros até saudaram a dicção mesoclítica de Temer em contraponto à fala rude de Lula e ao destampatório de Dilma. Há aqueles que gozam com o português rotundo e rebarbativo dos bacharéis tanto quanto outros gozam com o cheiro dos coturnos e com os gritos que vem do porões.

Agora faltam menos de três meses para a eleição presidencial. Os amigos conservadores não gostam mais de Michel Temer. É verdade que nem todos são bolsonaristas, mas a maioria costuma rir das grossas chalaças do capitão ou, ao menos, não as acha gravosas. Diante das reações insatisfeitas de alguns, limitam-se a repetir os dois mantras máximos da direita: “o povo anda muito cheio de mimimi” e “o mundo está ficando muito chato”. Talvez eles tenham razão.

Em todo caso, com o debate político num ponto tão baixo, acho melhor me despedir dos leitores. Quando comecei este blog há exatamente seis anos, eu acreditava numa oportunidade de diálogo de alto nível que foi desmantelada a partir de 2014. 

Para os amigos de esquerda, repito que temos que fazer o que a esquerda sempre faz nos tempos difíceis: retomar com paciência a compreensão teórica e a busca de caminhos políticos viáveis. Precisamos estudar ainda mais. Precisamos ler com mais argúcia. Precisamos ampliar nosso horizonte de compreensão. E se, quando sairmos da zona de sombra, tivermos que fracassar de novo, é importante fracassarmos melhor.



O Sobrinho de Enesidemo encerra aqui as suas emissões.


 
SEPTEMBER 1, 1939

W.H. Auden

I sit in one of the dives
On Fifty-second Street
Uncertain and afraid
As the clever hopes expire
Of a low dishonest decade: 
Waves of anger and fear 
Circulate over the bright
And darkened lands of the earth, 
Obsessing our private lives;
The unmentionable odour of death 
Offends the September night.

Accurate scholarship can
Unearth the whole offence
From Luther until now
That has driven a culture mad,
Find what occurred at Linz,
What huge imago made
A psychopathic god:
I and the public know
What all schoolchildren learn,
Those to whom evil is done
Do evil in return.

Exiled Thucydides knew
All that a speech can say
About Democracy,
And what dictators do,
The elderly rubbish they talk
To an apathetic grave;
Analysed all in his book,
The enlightenment driven away,
The habit-forming pain,
Mismanagement and grief:
We must suffer them all again.

Into this neutral air
Where blind skyscrapers use 
Their full height to proclaim 
The strength of Collective Man, 
Each language pours its vain 
Competitive excuse:
But who can live for long
In an euphoric dream;
Out of the mirror they stare, 
Imperialism's face
And the international wrong.

Faces along the bar
Cling to their average day:
The lights must never go out,
The music must always play,
All the conventions conspire
To make this fort assume
The furniture of home;
Lest we should see where we are, 
Lost in a haunted wood,
Children afraid of the night
Who have never been happy or good.

The windiest militant trash 
Important Persons shout
Is not so crude as our wish: 
What mad Nijinsky wrote 
About Diaghilev
Is true of the normal heart; 
For the error bred in the bone 
Of each woman and each man 
Craves what it cannot have, 
Not universal love
But to be loved alone.

From the conservative dark
Into the ethical life
The dense commuters come,
Repeating their morning vow;
'I will be true to the wife,
I'll concentrate more on my work,'
And helpless governors wake
To resume their compulsory game: 
Who can release them now,
Who can reach the dead,
Who can speak for the dumb?

All I have is a voice
To undo the folded lie,
The romantic lie in the brain
Of the sensual man-in-the-street 
And the lie of Authority
Whose buildings grope the sky: 
There is no such thing as the State 
And no one exists alone;
Hunger allows no choice
To the citizen or the police;
We must love one another or die.

Defenseless under the night
Our world in stupor lies;
Yet, dotted everywhere,
Ironic points of light
Flash out wherever the Just
Exchange their messages:
May I, composed like them
Of Eros and of dust,
Beleaguered by the same
Negation and despair,
Show an affirming flame.



* * * * *







sábado, 30 de junho de 2018

Dicionário aleatório #14








Conservadorismo  (parte I)


Os conservadores, numerosos hoje e cada vez mais desinibidos, proclamam suas certezas, sem se dar conta de que apenas repetem banalidades ou inverdades tão infaustas quanto os da esquerda moribunda. Eu, que me dedico à modesta e inglória tarefa de catalogar os episódios e documentos da Estupidez, vou colhendo material para um futuro tratado.

Nos últimos tempos, fiquei curioso com a admiração de meus amigos conservadores por Churchill. Na Livraria da Vila, ouvi um casal bisonho derramar elogios sobre “o líder conservador que derrotou o nazismo”. Meus amigos conservadores (ao menos os que são alfabetizados) também pensam assim. Para eles, sempre é importante ficar do lado do vencedor (o que me faz pensar de que lado estariam se estivéssemos no mundo d’O Homem do Castelo Alto). Não vou negar o carisma do velho buldogue fumarento, mas há algum exagero em acreditar que Hitler foi derrotado pela tenacidade de Churchill e não pelo avanço avassalador do Exército Vermelho após a Batalha de Stalingrado ou pela entrada dos Estados Unidos na guerra (o que equivaleria a conceder uns nacos de glória ao assistencialista Roosevelt e ao comunista Stálin). Tudo bem, muitos franceses também gostam de acreditar que foi o general De Gaulle que libertou a França e, entre nós, alguns abençoam o general Olímpio Mourão por nos salvar do perigo vermelho twice in a life. A seara das ilusões piedosas é infinita e cada um acredita nos unicórnios que quiser.

O problema é que, a meu ver, as credenciais conservadoras de Churchill não são tão nítidas quanto querem os meus amigos. Eu costumo lembrar-lhes que, em 1940, os conservadores autênticos eram o ex-primeiro ministro Neville Chamberlain, que entregara a Tchecoslováquia para aplacar a sanha devoradora de Hitler, e Lord Halifax, que acreditava  que o Reino Unido poderia obter uma paz – em separado - com a Alemanha nazista por intermédio da Itália de Mussolini. É verdade que eles não tinham o benefício da posteridade de que gozam os conservadores de hoje, que apostam tranquilamente no cavalo vencedor depois que a corrida foi ganha. No cenário incerto de 1940, Chamberlain e Halifax eram os verdadeiros conservadores, aqueles que realmente endossariam a definição – aliás muito bonita – do filósofo conservador Roger Scruton segundo a qual o conservadorismo é aquela convicção, que vem com a maturidade, de que as coisas boas são difíceis de conseguir, mas muito fáceis de perder. Por que envolver-se numa luta contra a Alemanha nazista, a maior máquina de guerra da Europa, se era possível fazer pactos com Hitler para que Picadilly Circus não fosse bombardeada? Por que arriscar-se a perder tudo de bom que havia sido conquistado nas Ilhas Britânicas?

Querer a paz e a ordem no seu jardim é o desejo mais sincero de um conservador. Os conservadores que eu conheço tremem só de imaginar revoluções cruentas e se mostram indignados com a guilhotina ou o assassinato dos Romanov, embora sejam capazes de dormir muito bem enquanto crianças são sacrificadas para aplacar a fúria de algum Moloch. This is not my business, dizem eles, e se viram de lado para roncar, sonhando com os seus jardins. Meus amigos conservadores me ensinaram que um bom conservador não se deixa levar por sentimentalismos baratos, a não ser quando se trata de chorar pela admirável mãe-coragem Maria Antonieta, pelo destino cruel dos pobres filhinhos do czar ou pela carga indevida de impostos que onera as empresa para alimentar uma legião de parasitas do poderoso Welfare State tupiniquim, admirado em toda a galáxia pela sua generosidade e alcance. Nesse caso, Deus nos livre do “mimimi” da direita.

Volto a sir Winston. Declarar guerra à Alemanha nada tinha de conservador. Tampouco o fim do famoso discurso de 28 de maio: “If this long island story of ours is to end at last, let it end only when each one of us lies choking in his own blood upon the ground”. Numa vã tentativa de protegerem-se da luz solar da verdade usando apenas o delicado tamis da fantasia, meus amigos juram que o velho era um conservador puro e citam o inevitável aforismo – na verdade uma frase feita que já corria nos meios políticos desde o século XIX – segundo o qual quem não é socialista aos vinte não tem coração, mas quem ainda é socialista aos quarenta não tem cérebro. Eu, que tenho mais de cinquenta e ainda sou socialista, sou um energúmeno descerebrado como o leitor bem sabe, mas o que dizer desses gênios precoces do MBL que juram ser conservadores aos 20 anos? Com certeza, eles não têm cérebro nem coração. Mas quem precisa disso para ser um conservador no mundo confuso de 2018?











segunda-feira, 28 de maio de 2018

Dicionário aleatório #13







Caminhão, caminhoneiros


Um dos meus tios foi caminhoneiro na década de 1970. Ele conduzia um caminhão do frigorífico Chapecó, que fazia a distribuição desde Santa Catarina até o eixo Rio-São Paulo. Naquelas priscas eras anteriores ao monitoramento por GPS e em plena crise do petróleo de 73, um bom caminhoneiro conhecia todas os atalhos para desviar dos postos de cobrança de pedágio, embolsar o dinheirinho e assim engordar um pouco o valor final pago pelas empresas. Quase três décadas depois, meu irmão também trabalhou como caminhoneiro transportando grãos para o congestionado porto de Santos, no auge de preço das commodities que tanto favoreceu o governo de Lula.

Meu irmão sempre foi aficionado por caminhões. Ainda meninos, nós nos divertíamos na pick-up Ford 1950 da oficina mecânica que meu pai teve no fundo da Zona Leste de São Paulo. No desventurado ano em que o Brasil foi “campeão moral” na Copa da Argentina, ficamos siderados por mais de uma hora diante da televisão assistindo ao Caso Especial da TV Globo em que Antonio Fagundes interpretava o caminhoneiro protagonista e narrador na adaptação de Jorge, um Brasileiro, romance que Oswaldo França Júnior publicou em 1967, ano do meu nascimento. Com o mesmo entusiasmo, víamos todas as semanas a série Carga Pesada, em que Fagundes e Stenio Garcia interpretavam Pedro e Bino, dois caminhoneiros pícaros em suas andanças pelos Brasil. Em suma: “frete”, “boleia”, “três eixos” eram palavras que ouvi desde pequeno mas, quando me tornei professor, elas ficaram distantes. A última vez que subi à boleia foi no caminhão que guinchava o meu carro por causa de uma pane elétrica. Meu pai, que estava comigo, perguntava, com ar divertido, se eu já tinha feito uma viagem assim antes...

Há uma semana, quando os caminhoneiros começaram uma paralisação em protesto contra o elevado preço do diesel, a crise política e institucional que o Brasil vive desde 2016 agravou-se consideravelmente. A julgar pelo desencontrado nas análises da situação, os jornalistas e blogueiros também estão desorientados. O que está acontecendo? Um lockout das empresas de transporte e logística para afastar o atual presidente da Petrobrás, Pedro Parente? Uma manobra do setor do agronegócio, prejudicado com a alta do custo dos transportes? Uma conjuntura geopolítica desfavorável em que o Brasil é um peão na pesada disputa econômica entre os Estados Unidos e a China? A consequência lógica de falhas estruturais e decisões políticas equivocadas acumuladas desde os anos de Lula à frente da Presidência? O resultado das políticas fiscais adotadas por Dilma Rousseff desde seu primeiro mandato? O efeito da incompetência de figuras como Pedro Parente, próximo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e tachado de “ministro do apagão”?  Ou precisamente o efeito da competência com que figuras como Pedro Parente servem aos interesses do mercado internacional e dos stakeholders da Petrobrás e, talvez da Bunge, grande corporação do agronegócio?

A falta de combustível e de gêneros nos mercados provocada pela paralisação dos caminhoneiros deu livre vazão às manifestações de descontentamento contra o governo de Michel Temer, tanto por parte dos que apoiaram Dilma Rousseff durante o polêmico processo de impeachment, quanto por parte dos que achavam que um governo liderado por figuras carimbadas do PMDB, como Temer, Eliseu Padilha e Romero Jucá, pudesse ter algo a ver com honestidade, eficiência e diálogo com a sociedade. 

Agora ouve-se a lamúria de muitas boas almas órfãs de projeto a exigir que o governo brasileiro defenda a soberania nacional com ações politicamente orientadas para reduzir o preço dos combustíveis, mas sem abrir mão da inserção do mercado internacional e das práticas de gerenciamento ensinadas pelas boas escolas norte-americanas... Diante da fragilidade desses centristas confusos, é fácil entender a força crescente do grupo que clama pela ordem que poderia ser trazida por uma intervenção das Forças Armadas.

Como cidadão brasileiro, acompanho com aflição a situação em que o ressentimento lowbrow, potencializado pelas várias formas de ignorância e de estupidez crônica, ameaça mergulhar o Brasil num caos social à maneira da Venezuela ou num arremedo de democracia à maneira da Itália.  Porém, como estudioso da ignorância e da estupidez, confesso que me rejubilo com a farta documentação que tenho reunido nos últimos anos. 

PS – Eu deveria estar no trabalho hoje, mas a incerteza provocada pela falta de combustível levou muitas escolas a suspenderem as aulas nesta segunda-feira.













domingo, 20 de maio de 2018

Dicionário aleatório #12








Karma


Nasci numa família de gente simples, com pouca ou nenhuma formação escolar. Meu avô só aprendeu a ler aos cinquenta anos de idade. Minha avó morreu analfabeta com quase cem anos. Eles tinham um repertório imenso de histórias exemplares para todas as situações da vida cotidiana, acompanhadas de provérbios, que eram a chancela da sabedoria popular construída no eterno embate com os percalços da realidade. Eles ensinavam a resignação: “Mais vale um pássaro na mão do que dois voando”, a prudência: “O que não serve mais se guarda por cem anos”,  um certo ceticismo diante de tudo o que é ruidoso e vistoso demais: “Cão que ladra não morde”, “Nem tudo o que reluz é ouro”. Os provérbios alertavam, sobretudo, para as consequências de nossas as ações: “O que aqui se faz, aqui se paga”, “Tudo o que sobe, tem que descer”, “Quem semeia vento, colhe tempestade”, “Quem tudo quer, tudo perde”, “Deus ajuda quem madruga”, “Quem espera, sempre alcança”.

Como acontece nos contos de fadas, uma regra de equilíbrio, natural ou sobrenatural, distribuiria os prêmios e os castigos conforme os méritos ou culpas de cada um. Embora essa distribuição pudesse levar muito tempo - às vezes uma vida toda -, ela seria certa e infalível. É assim que a gente humilde ensinava o valor de ser honesto, diligente, paciente, parcimonioso e esforçado e reforçava, junto com os liames sociais fundamentais, o seu próprio papel de gente humilde, disposta a trabalhar duro.  No entanto, não acredito que essa crença num sistema de compensações seja apenas um engodo ideológico destinado a manter os pobres na sua posição subalterna. O espiritismo kardecista e o otimismo de auto-ajuda são duas versões da mesma teoria do equilíbrio amplamente disseminadas pela pequena-burguesia middlebrow, assim como os estratos superiores e instruídos acreditam na autorregulação do mercado e os intelectuais de esquerda alimentam expectativas sobre os pontos de ruptura no processo histórico, social e político: “A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis” (Marx e Engels, Manifesto do Partido Comunista, fim da seção I).  

A crença num sistema de equilíbrio compensatório que governaria a vida humana, a história e a natureza está demasiado entranhada em cada um de nós e sustenta a nossa vida prática, afetiva e nossas interações sociais. Precisamos da ideia de que nossas ações e decisões são capazes de garantir a continuidade da ordem das coisas ou a sua mudança. É como se, pela crença num mundo que é justo de maneira profunda, pudéssemos superar a opacidade insondável do futuro, garantindo que as recompensas e as punições virão, mais cedo ou mais tarde, em proporção ao que é feito no presente. Junto à porta da cafeteria em que tomo um cappuccino com a Ludmila, uma placa diz “Gentileza gera gentileza”. É reconfortante pensar assim e não é de todo falso. Ações violentas podem, de fato, levar a reações violentas, assim como a polidez, ao invés da rudeza, parece ter mais chance de suscitar reações polidas. Mas isso não é certo nem inevitável. Às vezes a ação violenta é necessária para uma paz duradoura. O trabalho duro e diligente frequentemente não é remunerado, ao passo que a desonestidade foi o caminho para a riqueza de muitas famílias que hoje se dizem horrorizadas com a corrupção moral dos que estão tentando subir pela mesma escada. A autorregulação do mercado com base na ação de agentes responsáveis e racionais parece tão utópica quanto uma sociedade comunista em que cada um contribui responsavelmente de acordo com suas capacidades e recebe de acordo com suas necessidades.  Não há razão para pensar que feridas do espírito se curarão a si mesmas, nem que aquele que salva aparecerá justamente onde cresce o perigo, como Hegel e Hölderlin pensaram. Os crimes nem sempre são acompanhados de castigo, tampouco é certo que as culpas sejam seguidas de remorso; às vezes os filhos não expiam os pecados dos pais. Ao contrário do que creem os economistas, existem, sim, almoço gratuitos (e não estou me referindo ao assistencialismo dirigido aos pobres, mas ao “boca livre” generosamente fornecido aos estratos mais elevados do mundo financeiro e empresarial).

Enfim, o mundo não é justo. Estamos sós e sem Deus. Mas isso nada indica que, num mundo sem Deus, tudo é possível. Na natureza, há uma margem de previsibilidade de acordo com os modelos laboriosamente construídos pela investigação científica. Nas relações humanas, há certos padrões de ação e de resposta que se manifestam no plano psicológico, sociológico, econômico e político. Todavia, esses fragmentos de ordem e de equilíbrio somente puderam ser alcançados por uma profilaxia intelectual, que não nos garante o prêmio da verdade.

A douta ignorância, na qual tanto insisto, está em abandonar o conforto dos contos de fadas, da sabedoria popular, do otimismo de auto-ajuda, da certeza do karma e da mão invisível deste ou daquele deus, quer se chame Providência, a Ordem, o Progresso, o Mercado, a História ou o Horóscopo. Temos que caminhar sobre finas cordas de conjeturas entre imensas áreas de obscuridade, identificando penosamente algumas estruturas de equilíbrio ou alguns eventos randômicos.  

Aqueles que acreditam que o mundo seja fundamentalmente justo, isto é, dotado de algum equilíbrio profundo e intrínseco, não entendem que os processos podem ser e frequentemente são cegos e que as atribuições de responsabilidade ou de causalidade são complexas e difíceis.  Essas pessoas procuram méritos e culpas por toda parte: é preciso que os acontecimentos sejam efeitos de recompensa ou de punição. Para elas, a prosperidade ou a pobreza é resultado de mérito ou de culpa, as crises econômicas ou os problemas são consequências das ações culpadas de alguém, que inevitavelmente terá de pagar pelo que fez. Essa crença no equilíbrio fundamental do mundo é profundamente arraigada nos seres humanos, mas pode assumir formas estúpidas e virulentas em situações de frustração e ressentimento. Muitos passam a acreditar em salvadores que pregam soluções simples, muitos começam a acusar e a perseguir bodes expiatórios. Este é o cenário do Brasil nesses meses que antecedem as eleições presidenciais de 2018. Um cenário em que alguns cães que ladram podem morder ou não.













domingo, 13 de maio de 2018

Dicionário aleatório #11








Ressentimento lowbrow

considerações sobre a ignorância militante e sua versão estúpida


Em junho de 2013, uma romagem dos agravados saiu às ruas e muitos, como eu, deram seu apoio. Durante alguns dias houve manifestações de indignados de toda sorte. O governo federal, tendo à frente Dilma Rousseff, prometeu levar adiante reformas institucionais mal definidas. As passeatas acabaram como começaram. Alguns intelectuais de esquerda tentaram encontrar naqueles protestos os sinais de uma “primavera” brasileira à maneira das ainda tão admiradas e surpreendentes “primaveras árabes” de 2011. Parecia que as maiorias silenciosas tinham decidido sair do seu mutismo e que os piores prognósticos sobre a morte da política na pós-modernidade tinham sido desmentidos escandalosamente pela espontaneidade dos novos agentes: os movimentos urbanos formados pelas redes sociais. Finalmente, do asfalto cinzento, brotaria a flor tão esperada. 

No entanto, o que se viu nos dois anos seguintes foi a irrupção de uma agressiva campanha contra o Partido dos Trabalhadores e contra a presumida difusão das ideias de esquerda por instituições de ensino e entidades ligadas à cultura. Constituiu-se uma frente ampla de pastores evangélicos, economistas neoliberais, entidades ruralistas, comitês empresariais, pensadores conservadores e jornalistas que eram porta-vozes das maiores empresas de comunicação de massa no país. A classe média tradicional deu adesão de primeira hora. Além de ter sido sempre hostil ou desconfiadas dos programas de assistência dirigidos aos grupos mais pobres, ela estava persuadida de que a crise econômica, tida como a pior de toda a história republicana, era o legado maldito da corrupção e do assistencialismo populista que teriam marcado os doze anos do Partido dos Trabalhadores à frente do governo federal. A crise também tornou difícil a vida daqueles que tinham conseguido melhorar de vida durante os governos de Lula e Dilma devido à fácil concessão de crédito. Muitas dessas pessoas, então endividadas e frustradas, logo engrossariam as manifestações ruidosas contra Dilma Rousseff, reeleita no final de 2014.  A vitória de Dilma sobre Aécio Neves parecia apenas mais um lance na tradicional disputa entre o PT e o PSDB, dentro do jogo político que se firmara desde meados da década de 1990. No entanto, assim como as manifestações de 2013, a polarização da campanha de 2014 foi mais um passo na desestruturação da vida política nacional.

Bater panelas em protesto contra as aparições de Dilma na televisão, usar a camisa amarela da seleção brasileira, tirar fotografias junto a policiais, marchar atrás do Pato Amarelo da Federação das Indústrias de São Paulo, malhar o boneco Pixuleco, que representava o Presidente Lula em roupas de presidiário, chamar os petistas de “petralhas” e de “mortadelas”, tudo isso foi marca do ano de 2015 e do começo de 2016. 

O afastamento de Dilma Rousseff e o avanço da Operação Lava Jato, iniciada em 2014, permitiu que muitos acreditassem que o Brasil tomaria afinal o "rumo certo" para o crescimento econômico e a prosperidade: adoção de políticas econômicas de austeridade fiscal, corte dos programas assistencialistas, redução do aparelho do Estado, a punição garantida à corrupção política em todas as esferas. 

À medida que muitas desses anseios foram espezinhados pelo governo de Michel Temer, a tônica da insatisfação se deslocou. Os pitorescos “coxinhas”, antes tão desinibidos, ficaram acabrunhados diante das evidentes e ostensivas provas de corrupção de seu candidato, assim como dos compromissos pessoais e políticos do presidente Michel Temer com as piores práticas de fisiologismo político.  Chegara ao fim as esperanças suscitadas pela Fronda do Coxinhas com o seu cortejo de apoiadores e comentaristas middlebrow. O que se viu a seguir foi a maré montante dos que têm saudades do Antigo Testamento, dos que querem a paz das senzalas, dos que têm fé no poder persuasivo do alicate, dos que amam o cheiro de coturno. Aqueles que se dizem fartos das "vítimas" disso ou daquilo. Aqueles que têm aversão aos “esquerdopatas” e aos "comunas": termos genéricos que se aplicam não apenas aos marxistas, mas também aos social-democratas, aos liberais moderados, aos que discutem questões de “gênero”, aos que conhecem a história do Brasil, aos ateus e agnósticos, aos herdeiros da Aufklärung, aos que conseguem usar corretamente as conjunções e sabem o que significa a palavra “mýthos”. 

Diante do avanço do ressentimento lowbrow entre as massas é forte a tentação da demofobia. Será possível manter a confiança na democracia sem abandonar o realismo político?