quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Dicionário aleatório # 1








Dicionário Aleatório do Sobrinho de Enesidemo



Prólogo


Decidi começar um dicionário aleatório.

Os verbetes serão cacos de pensamento, mal redimidos daquela matéria viscosa de que são feitas as opiniões. Virão sem ordem alfabética e sem roteiro prévio, mas é bem possível que venham a compor algum sistema, dado o nexo firme que costuma atar as obsessões de cada um. Todavia, tal sistema, se o houver, não será  teoria, nem corpus de verdades, tampouco explicação do mundo. Apenas  dará forma e expressão às reações do sujeito empírico particular que sou.

Como cético, não vejo como alguém poderia ir além disso, mas, como filósofo, entendo bem a vontade de saltar do particular ao universal, daquilo que nos aparece à coisa mesma em sua essência, fundamento e verdade. Eis por que não posso garantir que, vez ou outra, não venha a dar ouvido ao demônio da totalidade, com o qual entretenho longas conversas pontuadas de sarcasmo em meio à admiração que tenho pelos ardis dialéticos e proezas especulativas da velha aranha.

Dadas as angústias e incertezas do tempo, a matéria política - elevada ou abjeta – fará aparições periódicas neste meu dicionário, bem como a obsessão marxista que se colou em mim desde meus quinze anos.

Como espero que tenha ficado claro pela foto que abre este meu Dicionário, espero que ninguém queira me acompanhar. O caminho é meu, vou sozinho e estou bem assim.

Mãos à obra.





Filosofia


A filosofia é uma disposição ao mesmo tempo intelectual e vital. Essa disposição é feita de impulsos contraditórios: abranger o universal e dar conta do singular. Para isso, o filósofo busca uma instância anterior às clivagens e distinções correntes entre as coisas e as palavras, entre natureza e cultura, entre a realidade prática e o conhecimento teórico, entre o objeto e o sujeito, entre o essência e existência, entre coisa-em-si e fenômeno, entre necessidade e contingência etc. 

Que as "coisas" se ofereçam cindidas, avulsas, fraturadas por contradições internas ou repuxadas por oposições externas, é algo que o filósofo se recusa a aceitar sem primeiro buscar uma camada anterior (no sentido temporal, ontológico ou epistemológico) que seja como uma membrana muito fina que faça a ligação de tudo com tudo. Esse é o sentido daqueles conceitos profundamente filosófico que encontramos nos pré-socráticos: a água de Tales, o ar de Anaximandro, o ápeiron de Anaxágoras, o lógos de Heráclito (que faz ver que a tensão do arco é também a tensão da lira: produz o movimento da flecha e a harmonia da música), o ser de Parmênides. Essa busca de uma camada prévia às distinções discursivas e fenomenais alimentou séculos de investigação metafísica (a partir de Platão e Aristóteles), mas também alimentou as críticas à metafísica, que consistem em recusar as distinções metafísicas consagradas e buscar camadas ainda mais profundas: a vontade de potência, o devir histórico na forma de luta de classes ou de movimento do sujeito automático do capital, o inconsciente, a abertura do ser, a linguagem como jogo etc. 

Como filósofo, isto é, como alguém que se sente compelido a recuar sempre o horizonte de análise, acho profundamente insatisfatório ensinar a filosofia na forma de história das ideias (seja em seu movimento aparentemente autônomo, seja em seu enquadramento social, econômico e político). O que se perde de vista na "história das ideias" é que a filosofia consiste no movimento vivo e contraditório que, com maior ou menor sucesso, produziu as obras e as ideias. O que me compraz estudar num filósofo é sempre o momento da perturbação, da instabilidade, daquele movimento caótico que acaba se resolvendo num conceito, que depois é refeito, revisto ou recusado. Do meu ponto de vista, querer ensinar filosofia como história das ideias é sempre como querer ensinar o alpinismo mostrando apenas fotos de montanhas e mapas do percurso seguido até o topo. É inegável que isso é útil e pode despertar a curiosidade e o desejo de alguns serem alpinistas, mas nada disso dá conta da experiência e do risco do alpinismo em ato: os meses de planejamento, a obtenção de recursos, a viagem até o lugar, o frio, o cansaço, a luta contra a debilidade do corpo, o risco de avalanche e de hipotermia, a frustração com as tentativas fracassadas. Perde-se a percepção de que, ao se deixarem levar pela sua inquietude, os filósofos abdicaram de certas coisas, aventuraram-se em certos terrenos difíceis ou proibidos, perderam-se, reencontraram-se e tentaram alcançar o topo. Como sou cético, acredito que, em última instância, todos falharam, mas algumas dessas falhas foram gloriosas e extremamente profícuas. Essas falhas são as obras dos grandes filósofos com sua massa contraditória de problemas não-resolvidos que continuam a nos solicitar através da espessura do tempo. Essa massa de problemas está acima e além das  "ideias" atribuídas a um filósofo.

O que eu acho intolerável no ensino da filosofia como história das ideias é que a filosofia seja apresentada pelos seus resultados (que podem ser refutados ou simplesmente relativizados de acordo com o tempo e o lugar em que foram elaborados) e não pelo seu movimento (que é um impulso vital e intelectual que dispensa justificativas). Os pensadores que tentaram descrever e apreender esse movimento, como é o caso de Hegel, de Husserl e Wittgenstein, lançaram-se a uma empreitada extremamente difícil para eles e para nós, seus leitores. 


Dito isso, fique claro que não estou recusando que a filosofia, mesmo na forma de história das ideias, deva ser ensinada para os estudantes do Ensino Médio. Acho bem vindo qualquer esforço de aproximar os jovens da filosofia e acredito que esse ensino pode estimulá-los a sair do conforto da mediocridade midiática em que muitos deles foram educados desde o berço. Além disso, é preciso acreditar na capacidade de aprendizado dos alunos e buscar os instrumentos que possam auxiliá-los. Todavia, há um quarto de século eu decidi que eu faria isso como professor de literatura e eu manteria a filosofia como o território selvagem que é preciso percorrer off-road. 



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domingo, 4 de fevereiro de 2018

Lisboa, Largo do Calvário, 11 de janeiro de 2018
















Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Porque sequer atribuo eu
Beleza às coisas.

Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe
Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então porque digo eu das coisas: são belas?

Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as coisas,
Perante as coisas que simplesmente existem.

Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!


(Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, XXVI)









O Sobrinho de Enesidemo está de volta.