domingo, 20 de maio de 2018

Dicionário aleatório #12








Karma


Nasci numa família de gente simples, com pouca ou nenhuma formação escolar. Meu avô só aprendeu a ler aos cinquenta anos de idade. Minha avó morreu analfabeta com quase cem anos. Eles tinham um repertório imenso de histórias exemplares para todas as situações da vida cotidiana, acompanhadas de provérbios, que eram a chancela da sabedoria popular construída no eterno embate com os percalços da realidade. Eles ensinavam a resignação: “Mais vale um pássaro na mão do que dois voando”, a prudência: “O que não serve mais se guarda por cem anos”,  um certo ceticismo diante de tudo o que é ruidoso e vistoso demais: “Cão que ladra não morde”, “Nem tudo o que reluz é ouro”. Os provérbios alertavam, sobretudo, para as consequências de nossas as ações: “O que aqui se faz, aqui se paga”, “Tudo o que sobe, tem que descer”, “Quem semeia vento, colhe tempestade”, “Quem tudo quer, tudo perde”, “Deus ajuda quem madruga”, “Quem espera, sempre alcança”.

Como acontece nos contos de fadas, uma regra de equilíbrio, natural ou sobrenatural, distribuiria os prêmios e os castigos conforme os méritos ou culpas de cada um. Embora essa distribuição pudesse levar muito tempo - às vezes uma vida toda -, ela seria certa e infalível. É assim que a gente humilde ensinava o valor de ser honesto, diligente, paciente, parcimonioso e esforçado e reforçava, junto com os liames sociais fundamentais, o seu próprio papel de gente humilde, disposta a trabalhar duro.  No entanto, não acredito que essa crença num sistema de compensações seja apenas um engodo ideológico destinado a manter os pobres na sua posição subalterna. O espiritismo kardecista e o otimismo de auto-ajuda são duas versões da mesma teoria do equilíbrio amplamente disseminadas pela pequena-burguesia middlebrow, assim como os estratos superiores e instruídos acreditam na autorregulação do mercado e os intelectuais de esquerda alimentam expectativas sobre os pontos de ruptura no processo histórico, social e político: “A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis” (Marx e Engels, Manifesto do Partido Comunista, fim da seção I).  

A crença num sistema de equilíbrio compensatório que governaria a vida humana, a história e a natureza está demasiado entranhada em cada um de nós e sustenta a nossa vida prática, afetiva e nossas interações sociais. Precisamos da ideia de que nossas ações e decisões são capazes de garantir a continuidade da ordem das coisas ou a sua mudança. É como se, pela crença num mundo que é justo de maneira profunda, pudéssemos superar a opacidade insondável do futuro, garantindo que as recompensas e as punições virão, mais cedo ou mais tarde, em proporção ao que é feito no presente. Junto à porta da cafeteria em que tomo um cappuccino com a Ludmila, uma placa diz “Gentileza gera gentileza”. É reconfortante pensar assim e não é de todo falso. Ações violentas podem, de fato, levar a reações violentas, assim como a polidez, ao invés da rudeza, parece ter mais chance de suscitar reações polidas. Mas isso não é certo nem inevitável. Às vezes a ação violenta é necessária para uma paz duradoura. O trabalho duro e diligente frequentemente não é remunerado, ao passo que a desonestidade foi o caminho para a riqueza de muitas famílias que hoje se dizem horrorizadas com a corrupção moral dos que estão tentando subir pela mesma escada. A autorregulação do mercado com base na ação de agentes responsáveis e racionais parece tão utópica quanto uma sociedade comunista em que cada um contribui responsavelmente de acordo com suas capacidades e recebe de acordo com suas necessidades.  Não há razão para pensar que feridas do espírito se curarão a si mesmas, nem que aquele que salva aparecerá justamente onde cresce o perigo, como Hegel e Hölderlin pensaram. Os crimes nem sempre são acompanhados de castigo, tampouco é certo que as culpas sejam seguidas de remorso; às vezes os filhos não expiam os pecados dos pais. Ao contrário do que creem os economistas, existem, sim, almoço gratuitos (e não estou me referindo ao assistencialismo dirigido aos pobres, mas ao “boca livre” generosamente fornecido aos estratos mais elevados do mundo financeiro e empresarial).

Enfim, o mundo não é justo. Estamos sós e sem Deus. Mas isso nada indica que, num mundo sem Deus, tudo é possível. Na natureza, há uma margem de previsibilidade de acordo com os modelos laboriosamente construídos pela investigação científica. Nas relações humanas, há certos padrões de ação e de resposta que se manifestam no plano psicológico, sociológico, econômico e político. Todavia, esses fragmentos de ordem e de equilíbrio somente puderam ser alcançados por uma profilaxia intelectual, que não nos garante o prêmio da verdade.

A douta ignorância, na qual tanto insisto, está em abandonar o conforto dos contos de fadas, da sabedoria popular, do otimismo de auto-ajuda, da certeza do karma e da mão invisível deste ou daquele deus, quer se chame Providência, a Ordem, o Progresso, o Mercado, a História ou o Horóscopo. Temos que caminhar sobre finas cordas de conjeturas entre imensas áreas de obscuridade, identificando penosamente algumas estruturas de equilíbrio ou alguns eventos randômicos.  

Aqueles que acreditam que o mundo seja fundamentalmente justo, isto é, dotado de algum equilíbrio profundo e intrínseco, não entendem que os processos podem ser e frequentemente são cegos e que as atribuições de responsabilidade ou de causalidade são complexas e difíceis.  Essas pessoas procuram méritos e culpas por toda parte: é preciso que os acontecimentos sejam efeitos de recompensa ou de punição. Para elas, a prosperidade ou a pobreza é resultado de mérito ou de culpa, as crises econômicas ou os problemas são consequências das ações culpadas de alguém, que inevitavelmente terá de pagar pelo que fez. Essa crença no equilíbrio fundamental do mundo é profundamente arraigada nos seres humanos, mas pode assumir formas estúpidas e virulentas em situações de frustração e ressentimento. Muitos passam a acreditar em salvadores que pregam soluções simples, muitos começam a acusar e a perseguir bodes expiatórios. Este é o cenário do Brasil nesses meses que antecedem as eleições presidenciais de 2018. Um cenário em que alguns cães que ladram podem morder ou não.













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