Karma
Nasci numa família de gente simples, com pouca ou nenhuma formação escolar. Meu avô só aprendeu a ler aos cinquenta anos de idade. Minha avó morreu analfabeta com quase cem anos. Eles tinham um repertório imenso de histórias exemplares para todas as situações da vida cotidiana, acompanhadas de provérbios, que eram a chancela da sabedoria popular construída no eterno embate com os percalços da realidade. Eles ensinavam a resignação: “Mais vale um pássaro na mão do que dois voando”, a prudência: “O que não serve mais se guarda por cem anos”, um certo ceticismo diante de tudo o que é ruidoso e vistoso demais: “Cão que ladra não morde”, “Nem tudo o que reluz é ouro”. Os provérbios alertavam, sobretudo, para as consequências de nossas as ações: “O que aqui se faz, aqui se paga”, “Tudo o que sobe, tem que descer”, “Quem semeia vento, colhe tempestade”, “Quem tudo quer, tudo perde”, “Deus ajuda quem madruga”, “Quem espera, sempre alcança”.
Como
acontece nos contos de fadas, uma regra de equilíbrio, natural ou sobrenatural,
distribuiria os prêmios e os castigos conforme os méritos ou culpas de cada um.
Embora essa distribuição pudesse levar muito tempo - às vezes uma vida toda -,
ela seria certa e infalível. É assim que a gente humilde ensinava o valor de
ser honesto, diligente, paciente, parcimonioso e esforçado e reforçava, junto
com os liames sociais fundamentais, o seu próprio papel de gente humilde,
disposta a trabalhar duro. No entanto, não acredito que essa crença
num sistema de compensações seja apenas um engodo ideológico destinado a manter
os pobres na sua posição subalterna. O espiritismo kardecista e o otimismo de
auto-ajuda são duas versões da mesma teoria do equilíbrio amplamente
disseminadas pela pequena-burguesia middlebrow, assim como os estratos
superiores e instruídos acreditam na autorregulação do mercado e os intelectuais
de esquerda alimentam expectativas sobre os pontos de ruptura no processo
histórico, social e político: “A burguesia produz, sobretudo, seus próprios
coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”
(Marx e Engels, Manifesto do Partido Comunista, fim da seção
I).
A
crença num sistema de equilíbrio compensatório que governaria a vida humana, a
história e a natureza está demasiado entranhada em cada um de nós e sustenta a
nossa vida prática, afetiva e nossas interações sociais. Precisamos da ideia de
que nossas ações e decisões são capazes de garantir a continuidade da ordem das
coisas ou a sua mudança. É como se, pela crença num mundo que é justo de
maneira profunda, pudéssemos superar a opacidade insondável do futuro,
garantindo que as recompensas e as punições virão, mais cedo ou mais tarde, em
proporção ao que é feito no presente. Junto à porta da cafeteria em que tomo um
cappuccino com a Ludmila, uma placa diz “Gentileza gera gentileza”. É
reconfortante pensar assim e não é de todo falso. Ações violentas podem, de
fato, levar a reações violentas, assim como a polidez, ao invés da rudeza,
parece ter mais chance de suscitar reações polidas. Mas isso não é certo nem inevitável. Às vezes a ação violenta é necessária para uma
paz duradoura. O trabalho duro e diligente frequentemente não é remunerado, ao passo que a desonestidade foi o caminho para
a riqueza de muitas famílias que hoje se dizem horrorizadas com a corrupção moral dos que
estão tentando subir pela mesma escada. A autorregulação do mercado com base na ação
de agentes responsáveis e racionais parece tão utópica quanto uma sociedade
comunista em que cada um contribui responsavelmente de acordo com suas
capacidades e recebe de acordo com suas necessidades. Não há razão
para pensar que feridas do espírito se curarão a si mesmas, nem que aquele que
salva aparecerá justamente onde cresce o perigo, como Hegel e Hölderlin
pensaram. Os crimes nem sempre são acompanhados de castigo, tampouco é certo que as culpas sejam seguidas de remorso; às vezes os filhos não expiam os pecados dos pais. Ao contrário do que creem os economistas, existem, sim, almoço gratuitos (e não estou me referindo ao assistencialismo dirigido aos
pobres, mas ao “boca livre” generosamente fornecido aos estratos mais elevados
do mundo financeiro e empresarial).
Enfim,
o mundo não é justo. Estamos sós e sem Deus. Mas isso nada indica que, num
mundo sem Deus, tudo é possível. Na natureza, há uma margem de previsibilidade
de acordo com os modelos laboriosamente construídos pela investigação
científica. Nas relações humanas, há certos padrões de ação e de resposta que
se manifestam no plano psicológico, sociológico, econômico e político. Todavia,
esses fragmentos de ordem e de equilíbrio somente puderam ser alcançados por
uma profilaxia intelectual, que não nos garante o prêmio da verdade.
A
douta ignorância, na qual tanto insisto, está em abandonar o conforto dos
contos de fadas, da sabedoria popular, do otimismo de auto-ajuda, da certeza do
karma e da mão invisível deste ou daquele deus, quer se chame Providência, a Ordem, o
Progresso, o Mercado, a História ou o Horóscopo. Temos que caminhar sobre
finas cordas de conjeturas entre imensas áreas de obscuridade, identificando
penosamente algumas estruturas de equilíbrio ou alguns eventos
randômicos.
Aqueles
que acreditam que o mundo seja fundamentalmente justo, isto é, dotado de algum
equilíbrio profundo e intrínseco, não entendem que os processos podem ser e
frequentemente são cegos e que as atribuições de responsabilidade ou de
causalidade são complexas e difíceis. Essas pessoas procuram méritos
e culpas por toda parte: é preciso que os acontecimentos sejam efeitos de
recompensa ou de punição. Para elas, a prosperidade ou a pobreza é resultado de
mérito ou de culpa, as crises econômicas ou os problemas são consequências das
ações culpadas de alguém, que inevitavelmente terá de pagar pelo que fez. Essa
crença no equilíbrio fundamental do mundo é profundamente arraigada nos seres
humanos, mas pode assumir formas estúpidas e virulentas em situações de
frustração e ressentimento. Muitos passam a acreditar em salvadores
que pregam soluções simples, muitos começam a acusar e a perseguir bodes
expiatórios. Este é o cenário do Brasil nesses meses que antecedem
as eleições presidenciais de 2018. Um cenário em que alguns cães que ladram podem morder ou não.
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