Estupidez
Um ladrão norte-americano, ao saber que suco de limão é usado como
tinta invisível, passou limonada no rosto para não ser visto pelas câmeras de
segurança do banco que ele foi assaltar. Um jovem perguntou ao seu professor de
História se Getúlio Vargas tinha cometido suicídio no seu primeiro ou no seu
segundo governo. Um grupo de pessoas investiu o dinheiro
ganho com muito esforço numa pirâmide financeira que, para surpresa e prejuízo
dos participantes, acabou desabando. Outro grupo ainda maior apoia entusiasticamente um
candidato que chamam de "mito" justamente por acreditarem na sua
verdade e autenticidade, ignorando o que significa o epíteto que consideram tão elogioso. Uma multidão anuncia que dará seu voto a vários candidatos acusados de corrupção, alegando que
"eles roubam, mas fazem".
A estupidez não é apanágio dos ignorantes nem dos
que têm Q.I. abaixo da média. Ela se manifesta em todos os escalões da
sociedade, em todas as profissões, não importa o sexo, a religião, a etnia, a
faixa etária, a classe social ou o nível educacional.
Quando falamos de estupidez pensamos em situações
em que alguém faz declarações dogmáticas que violam a lógica elementar e o
conhecimento básico do mundo. Também nos referimos como estúpidas
àquelas pessoas que tentam fazer algo que está obviamente além das suas
capacidades físicas ou intelectuais (tentar derrubar um muro com uma cabeçada;
fazer investimento contando que flutuações do mercado possam ser
previstas) Ou àquelas distraídas para além do razoável (sair para
viajar deixando o peru para assar no forno). E ainda às que não conseguem
controlar seus impulsos (achar engraçado fazer piadas sexistas ou racistas num
ambiente diversificado do ponto de vista sexual e racial).
Por que existe estupidez e por que ela é tão
generalizada?
A razão disso está nas limitações intrínsecas de
nosso conhecimento e da nossa racionalidade. O mundo à nossa volta é
extremamente complexo e diversificado. Por um lado, jamais temos todas as
informações de que precisamos entendê-lo e tomar assim as decisões corretas. Por
outro lado, as informações a que temos acesso são tão numerosas que excedem a
nossa capacidade de processamento e análise. Daí a necessidade de atalhos e
esquemas simplificados que nos permitam selecionar rapidamente as informações
mais relevantes e organizá-las de maneira que façam sentido e sirvam de base
para conclusões e decisões. Ocorre que esses atalhos e esquemas, embora sejam
úteis em muitas circunstâncias práticas, não podem ser universalizados nem
aplicados para decisões de grande alcance porque estão eivados de falácias e de
interpretações viciadas. Há muitas formas de cognição enviesada, como achar que
se uma ação foi bem sucedida no passado, ela será necessariamente bem sucedida
no futuro; julgar que todas as pessoas de um certo grupo étnico sempre agem de
certa maneira; acreditar que meu ponto de vista é privilegiado e que, portanto,
não estou sujeito aos mesmos erros que os outros, etc. (a Wikipédia faz uma lista de vieses
cognitivos bastante longa).
Assim como não podemos nos livrar de certas
ilusões perceptivas (os objetos que estão distantes sempre vão parecer
pequenos, um lápis imerso na água sempre vai parecer quebrado), não é possível
nos livrarmos dos vieses cognitivos, mas podemos acrescentar um sistema de
contrapesos, de maneira a mantê-los sob controle a cada momento. Na vida
cotidiana, isso é feito pela profilaxia cética. Na pesquisa de alto nível, isso
é feito pelo método científico, que nada mais é do que a profilaxia cética
elevada ao seu mais alto grau.
O problema da estupidez consiste em ignorar as
profilaxias ou considerá-las desnecessárias. O estúpido confia muito em si
mesmo. As pessoas estúpidas acham fácil fazer previsões porque acreditam numa
espécie de eterno presente em que tudo se mantém mais ou menos dentro das
expectativas usuais (o mundo dos estúpidos é a-histórico: no romance 1984, tudo
o que os mais velhos se lembram é de que no passado as pessoas usavam chapéus).
Mas, de uma maneira tipicamente estúpida, as pessoas estúpidas também contam
com a sorte ou o favorecimento divino. Elas esperam que eventos futuros venham
a favorecê-las, mesmo que esses eventos sejam altamente improváveis ou até
impossíveis. Assim é que uma pessoa estúpida investe dinheiro num esquema
escuso com a esperança de ficar rica e, contando com o dinheiro que acreditar
que vai ganhar, faz muitas dívidas e depois começa a rezar para que apareça uma
solução milagrosa que o salve da insolvência. “Contar com o ovo na barriga da
galinha” e acreditar que “para Deus tudo é possível” estão entre os vários
vieses cognitivos comuns nas declarações e comportamentos estúpidos, que supõem um mundo mais ordenado e regulado e, ao mesmo tempo, mais
arbitrário e aberto do que aquele que as pessoas inteligentes veem, quando
avaliam racionalmente as situações segundo a profilaxia cética ou o método
científico.
As pessoas inteligentes tendem a olhar a estupidez
primeiro com espanto. Diferentemente da racionalidade, que segue uma trilha bastante
rígida do ponto de vista lógico e epistemológico, a estupidez é sempre
surpreendente. Sem nenhuma rédea lógica e sem nenhum compromisso com a verdade,
a estupidez pode seguir qualquer caminho e aparecer nos lugares mais
inesperados. Todavia, passada a surpresa, as pessoas inteligentes se limitam a
desdenhar e fazer piada a respeito das declarações e incidentes estúpidos, sem
reconhecer que devido à sua própria arbitrariedade, a estupidez pode ser muito
perigosa. Um estúpido é capaz de causar mal para si mesmo e para as pessoas à
sua volta (é claramente o caso das famílias das pessoas que investem dinheiro
em pirâmides financeiras). Pior do que isso, num país em crise, muitos
estúpidos juntos podem eleger alguns estúpidos aos cargos mais elevados.
Balazs Aczel, Bence Palfi, Zoltan Kekecs.
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