quarta-feira, 2 de maio de 2018

Dicionário aleatório #10









Estupidez


Um ladrão norte-americano, ao saber que suco de limão é usado como tinta invisível, passou limonada no rosto para não ser visto pelas câmeras de segurança do banco que ele foi assaltar. Um jovem perguntou ao seu professor de História se Getúlio Vargas tinha cometido suicídio no seu primeiro ou no seu segundo governo. Um grupo de pessoas investiu o dinheiro ganho com muito esforço numa pirâmide financeira que, para surpresa e prejuízo dos participantes, acabou desabando. Outro grupo ainda maior apoia entusiasticamente um candidato que chamam de "mito" justamente por acreditarem na sua verdade e autenticidade, ignorando o  que significa o epíteto que consideram tão elogioso. Uma multidão anuncia que dará seu voto a vários candidatos acusados de corrupção, alegando que "eles roubam, mas fazem".

A estupidez não é apanágio dos ignorantes nem dos que têm Q.I. abaixo da média. Ela se manifesta em todos os escalões da sociedade, em todas as profissões, não importa o sexo, a religião, a etnia, a faixa etária, a classe social ou o nível educacional. 

Quando falamos de estupidez pensamos em situações em que alguém faz declarações dogmáticas que violam a lógica elementar e o conhecimento básico do mundo.  Também nos referimos como estúpidas àquelas pessoas que tentam fazer algo que está obviamente além das suas capacidades físicas ou intelectuais (tentar derrubar um muro com uma cabeçada; fazer investimento contando que flutuações do mercado possam ser previstas)  Ou àquelas  distraídas para além do razoável (sair para viajar deixando o peru para assar no forno). E ainda às que não conseguem controlar seus impulsos (achar engraçado fazer piadas sexistas ou racistas num ambiente diversificado do ponto de vista sexual e racial).

Por que existe estupidez e por que ela é tão generalizada?

A razão disso está nas limitações intrínsecas de nosso conhecimento e da nossa racionalidade. O mundo à nossa volta é extremamente complexo e diversificado. Por um lado, jamais temos todas as informações de que precisamos entendê-lo e tomar assim as decisões corretas. Por outro lado, as informações a que temos acesso são tão numerosas que excedem a nossa capacidade de processamento e análise. Daí a necessidade de atalhos e esquemas simplificados que nos permitam selecionar rapidamente as informações mais relevantes e organizá-las de maneira que façam sentido e sirvam de base para conclusões e decisões. Ocorre que esses atalhos e esquemas, embora sejam úteis em muitas circunstâncias práticas, não podem ser universalizados nem aplicados para decisões de grande alcance porque estão eivados de falácias e de interpretações viciadas. Há muitas formas de cognição enviesada, como achar que se uma ação foi bem sucedida no passado, ela será necessariamente bem sucedida no futuro; julgar que todas as pessoas de um certo grupo étnico sempre agem de certa maneira; acreditar que meu ponto de vista é privilegiado e que, portanto, não estou sujeito aos mesmos erros que os outros, etc. (a Wikipédia faz uma lista de vieses cognitivos bastante longa).

Assim como não podemos nos livrar de certas ilusões perceptivas (os objetos que estão distantes sempre vão parecer pequenos, um lápis imerso na água sempre vai parecer quebrado), não é possível nos livrarmos dos vieses cognitivos, mas podemos acrescentar um sistema de contrapesos, de maneira a mantê-los sob controle a cada momento. Na vida cotidiana, isso é feito pela profilaxia cética. Na pesquisa de alto nível, isso é feito pelo método científico, que nada mais é do que a profilaxia cética elevada ao seu mais alto grau.

O problema da estupidez consiste em ignorar as profilaxias ou considerá-las desnecessárias. O estúpido confia muito em si mesmo. As pessoas estúpidas acham fácil fazer previsões porque acreditam numa espécie de eterno presente em que tudo se mantém mais ou menos dentro das expectativas usuais (o mundo dos estúpidos é a-histórico: no romance 1984, tudo o que os mais velhos se lembram é de que no passado as pessoas usavam chapéus). Mas, de uma maneira tipicamente estúpida, as pessoas estúpidas também contam com a sorte ou o favorecimento divino. Elas esperam que eventos futuros venham a favorecê-las, mesmo que esses eventos sejam altamente improváveis ou até impossíveis. Assim é que uma pessoa estúpida investe dinheiro num esquema escuso com a esperança de ficar rica e, contando com o dinheiro que acreditar que vai ganhar, faz muitas dívidas e depois começa a rezar para que apareça uma solução milagrosa que o salve da insolvência. “Contar com o ovo na barriga da galinha” e acreditar que “para Deus tudo é possível” estão entre os vários vieses cognitivos comuns nas declarações e comportamentos estúpidos, que supõem um mundo mais ordenado e regulado e, ao mesmo tempo, mais arbitrário e aberto do que aquele que as pessoas inteligentes veem, quando avaliam racionalmente as situações segundo a profilaxia cética ou o método científico.

As pessoas inteligentes tendem a olhar a estupidez primeiro com espanto. Diferentemente da racionalidade, que segue uma trilha bastante rígida do ponto de vista lógico e epistemológico, a estupidez é sempre surpreendente. Sem nenhuma rédea lógica e sem nenhum compromisso com a verdade, a estupidez pode seguir qualquer caminho e aparecer nos lugares mais inesperados. Todavia, passada a surpresa, as pessoas inteligentes se limitam a desdenhar e fazer piada a respeito das declarações e incidentes estúpidos, sem reconhecer que devido à sua própria arbitrariedade, a estupidez pode ser muito perigosa. Um estúpido é capaz de causar mal para si mesmo e para as pessoas à sua volta (é claramente o caso das famílias das pessoas que investem dinheiro em pirâmides financeiras). Pior do que isso, num país em crise, muitos estúpidos juntos podem eleger alguns estúpidos aos cargos mais elevados. 




Balazs Aczel, Bence Palfi, Zoltan Kekecs. "What is stupid?: People's conception of unintelligent behavior." Intelligence, Volume 53, November–December 2015 | Heather A. Butler, “Why Do Smart People Do Foolish Things?”, Scientific American, October 2017 | Carlo M. Cipolla, Las leyes fundamentales de la estupidez humana, Crítica, Barcelona, 2013 | Justin Kruger and David Dunning, “Unskilled and Unaware of It: How Difficulties in Recognizing One's Own Incompetence Lead to Inflated Self-Assessments”, Journal of Personality and Social Psychology, 1999, Vol. 77, No. 6. | Amos Tversky and Daniel Kahneman, “Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases”, Science, New Series, Vol. 185, No. 4157. (Sep. 27, 1974) | Daniel Kahneman, Rápido e Devagar: duas formas de pensar, Editora Objetiva, São Paulo, 2012 | David McRaney, Você não é tão esperto quanto pensa, LeYa, São Paulo, 2013 | Robert Musil, O Homem sem Qualidades, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1989 | Herbert A. Simon, Models of Man: Social and Rational, John Wiley and Sons, Inc., New York, 1957









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