Cenas da Revolução de 17
cena VIII
Kornilov
"The reminscences of my childhood
in Simbirsk connect me
with the Lenin (Ulianov) family.
In my youth fate brought me
together with Korniloff."
Kerensky, The Catastrophe
[O militar golpista de direita retratado por Kerenski]
A
capital do Turquestão Russo era, acima de tudo, um centro militar. Muitas das
figuras principais da Grande Guerra, particularmente os oficiais do
Estado-Maior, serviram em algum momento de suas carreiras em Tashkent. Entre
elas estava o jovem capitão Kornilov, que chegou a Tashkent imediatamente após sua
graduação na Academia Militar. De compleição magra, esbelto e rijo, com olhos
amendoados à maneira dos calmucos, Kornilov era de origem simples. (“Eu sou o general Kornilov, camponês, filho de um cossaco” escreveu o futuro general
rebelado em uma das suas proclamações ao povo). O general Kornilov passava
pouco tempo nos salões da moda, embora suas portas estivessem sempre abertas
para qualquer oficial do Estado-Maior, e não tinha gosto pelas damas nem pelas
rodas sociais. Era considerado um bocado tímido e até um tanto
“bárbaro”.
Logo
o capitão Kornilov se tornou o assunto da capital. Tendo dominado um dos
dialetos locais, o capitão se lançou a um empreendimento corajoso.
Sozinho, disfarçado de mercador nativo, ele entrou no estado-tampão entre o
Turkestão e a Índia Britânica, nessa época o coração do Afeganistão, território
proibido para todos os estrangeiros, em especial os militares. No seu retorno a
Tashkent, o jovem capitão se tornou o herói do momento. Contudo, ele não se
deixou levar pelas perspectivas de sucesso social. Logo ele surpreendeu
novamente a “alta sociedade” da capital provincial ao casar-se com a filha de
um oficial de baixa patente. Isso já era demais: as portas da sociedade se fecharam
para ele!
Muitos
anos depois, quase na véspera de sua revolta contra o Governo Provisório, o
General Kornilov, Comandante-em-chefe, tomou café da manhã comigo no Palácio de
Inverno. Depois de uma conversa bastante tensa em meu escritório, tivemos um bate-papo leve no momento do café.
“Você
provavelmente não se lembra de mim”, disse o general Kornilov em tom jocoso.
“Eu costumava visitar a sua família e até dançar em sua casa em Tashkent”.
“É claro que ninguém se esqueceria disso”, respondi, relembrando a
impressão produzida pela sua ousada expedição ao Afeganistão.
Kornilov
permaneceu toda a sua vida um homem de gostos simples, um homem do povo. Não
havia nele nada de um burocrata hereditário ou de um aristocrata latifundiário. Aliás
as três figuras do movimento “branco” – Kornilov, Alexeiev e Denikin – eram
todas de origem humilde e abriram seu caminho até o topo da hierarquia militar
pelos seus próprios esforços. Por serem pobres, eles experimentaram todos os
fardos de uma carreira de oficial no antigo regime. Todos os três eram
decididamente hostis aos elementos privilegiados no exército, representado
pelos Guardas. Todos os três tiveram um brilhante registro na Academia Militar.
Todos os três fizeram avanços rápidos durante a Guerra, que arruinou tantas
carreiras brilhantes, aquele tipo de avanço promovido nos círculos da corte e
nas antessalas ministeriais.
Já
em 1915, Alexeiev chegou ao Quartel-General como chefe do
Estado-Maior do Comandante-em-chefe, o czar Nicolau II. A eclosão da Revolução
encontrou Denikin e Kornilov no front. Ambos fizeram um trabalho
notável em todas as operações no front da Galícia. Em uma operação
desafortunada, no qual mostrou toda a sua ousadia e bravura, Kornilov foi feito
prisioneiro pelos austríacos. Sua fuga audaciosa e seu retorno espetacular às
linhas russas se tornaram uma das fontes de uma espécie de lenda korniloviana, que não chegou a alcançar, porém, as grandes massas populares e a base do
exército.
De
todos os três futuros líderes do Exército Branco, Kornilov era o menos talhado
para o trabalho político. Do outro lado, o general Alexeiev tinha considerável
perspicácia política, mas era demais para um político. Em ciência militar,
Kornilov não era um estrategista, mas somente um tático, o que correspondia
inteiramente à sua natureza impulsiva e irrefletida, dada a não perder tempo em
considerações nos momentos de perigo e agindo com ousadia, rápido como um relâmpago e esquecido das possíveis consequências.
Aparentemente
foi exatamente essa características de grande determinação e zelo, nem sempre
desejáveis em líderes militares responsáveis, o que impediu a ascensão de
Kornilov. Até a Revolução, ele permaneceu na sombra. Depois da Revolução, sua
carreira se desenvolveu contrariamente à vontade de seus superiores militares
imediatos. Sua própria indicação nos primeiros dias da Revolução como
comandante do distrito militar de Petrogrado não conseguiu obter o apoio do general Alexeiev. Contudo, no seu posto o general Kornilov se mostrou
inteiramente fraco, e não conseguindo lidar com a guarnição de
Petrogrado, ele retornou para o front em maio.
Imediatamente
antes da sua renúncia como ministro da guerra, Gutchkov queria indicar Kornilov
comandante do front noroeste, mas encontrou uma forte desaprovação do general
Alexeiev, que, com a ameaça de sua renúncia, obrigou Gutchkov a abandonar essa
intenção. Kornilov se tornou então comandante do 13º exército na Galícia, onde
Zavoiko o encontrou.
Quando,
na época do começo da contra-ofensiva alemã na Galícia, eu sugeri ao general
Brusilov, comandante-em-chefe, a remoção do obviamente incompetente general
Koutor e a sua substituição como comandante do front da Galícia pelo general
Kornilov, eu encontrei em Brusilov a mesma oposição que Gutchov tinha
encontrado em Alexeiev. Mesmo assim, Kornilov foi indicado para o
posto. Contrariando essa oposição das autoridades militares, o general
Kornilov foi nomeado por minha sugestão, em primeiro de agosto, comandante-em-chefe
do exército russo no lugar de Brusilov, que perdeu sua vontade de comandar.
Eu
apresentei esse relato da carreira do general Kornilov para que o leitor possa
entender os eventos que se seguiram e possa imaginar porque eu, até o último
momento, não podia nem poderia ver no general Kornilov um dos conspiradores, a
despeito de todas as indicações de uma conspiração militar em preparação contra
o Governo Provisório e da grande quantidade de evidências que eu reuni a
respeito disso. Ao içá-lo ao posto mais alto do exército, face à
oposição de seus superiores e da sua impopularidade entre a esquerda política, ao ignorar suas declarações extremamente indisciplinadas a respeito do Governo
Provisório e, ao demonstrar em todas essas ocasiões muita paciência, acreditei firmemente que o soldado incomparavelmente corajoso não se envolveria num
esconde-e-esconde político e não atiraria de emboscada.
Para
grande infortúnio da Rússia foi o que aconteceu.
(Alexander F. Kerensky, The Catastrophe: Kerenky's own story of the Russian Revolution, D. Appleton and Company, New York, 1927)