Cenas da Revolução de 17
cena X
Lenin
Lenin
Durante todo esse período momentoso,
Lenin se mostrou maior como estrategista do que como tático. Vivendo escondido
primeiro em Helsingfors, depois em Viborg, perto de Petrogrado, chegando na
capital apenas em 20 de outubro, dependente da informação dos jornais que lhe
chegavam às mãos com algum atraso e dos encontros clandestinos com os membros
confiáveis do partido, era natural que seu julgamento fosse falho em relação a
alguns detalhes do levante planejado. Ele estava convencido, por exemplo, de
que o sucesso seria mais certo em Moscou do que em Petrogrado e recomendava que
o levante começasse em Moscou. Na verdade, Petrogrado caiu nas mãos dos
bolcheviques quase sem luta, ao passo que vários dias de combate sanguinário
foram necessários para conquistar Moscou. (...)
Mas esses eram apenas erros de pouca
monta na avaliação dos detalhes, que poderiam ser corrigidos no desenvolvimento
da ação. A grandeza indisputável de Lenin como líder revolucionário estava no
fato de que ele percebeu imediatamente, após o colapso de Kornilov, que o tempo
para a ação tinha chegado, de que ele sustentou sua visão com argumentos
políticos de lógica implacável, disparados com paixão revolucionária, e de que
ele nunca relaxou sua pressão sobre o Comitê Central do partido (em que alguns
membros demonstravam hostilidade ou pouco entusiasmo com a insistência num levante)
até que a oposição fosse esmagada e a organização do partido tivesse se
alinhado com suas propostas. Aliás todo o conjunto do pensamento político de
Lenin e dos traços mais salientes da sua personalidade estão refletidos com
espantosa vivacidade nas cartas e panfletos que ele publicou em rápida sucessão
naquele momento: “Os bolcheviques devem tomar o poder”, “Marxismo e
Insurreição”, “Podem os bolcheviques manter o poder de Estado?”, “A crise está
madura” etc.
De maneira geral, o estilo de Lenin não
tinha nada de especial nem pretendia ter. Havia, porém, uma eloquência genuína
na aspereza, dureza e timbre metálico de muitas frases nesses apelos ao
levante. O que poderia ser mais forte, simples e decisivo do que a abertura de
sua carta endereçada ao Comitê Central e aos comitês do partido em Moscou e
Petrogrado: “Tendo obtido a maioria no Soviete dos Trabalhadores e Soldados em
ambas as capitais, os bolcheviques podem e devem tomar o poder do Estado em
suas mãos”. Ou o que poderia ser uma avaliação psicológica mais aguda das
condições de uma revolução bem-sucedida do que o excerto seguinte de “Marxismo
e Insurreição”: “Uma insurreição deve apoiar-se num momento de
virada na história de uma grande revolução, quando é maior a atividade nas fileiras
mais avançadas do povo e quando são maiores as hesitações nas fileiras dos
inimigos e dos amigos da revolução que se mostram fracos, frouxos e indecisos”.
Estas duas cartas foram lidas e
discutidas na sessão do Comitê Central do partido em 28 de setembro. Lenin não
apenas esboçava argumentos teóricos para uma tomada armada do poder, mas também
um plano de ação bem definido. No entanto, essas cartas tiveram uma recepção
fria. (...)
Todavia o momento e a crescente
atmosfera revolucionária estavam do lado de Lenin. Em 12 de outubro, ele
reforçou seu ponto de vista com outro artigo, “A crise está madura”, que começa
com o grosseiro equívoco de que “estamos no limiar de uma revolução proletária
mundial” mas faz uma análise correta das condições internas da Rússia,
sublinhando pontos como os levantes camponeses que incendiavam o campo, a
despeito de Kerensky, um socialista revolucionário, ser o chefe de governo; as
tropas finlandesas e a frota do Báltico terem deixado o governo; o testemunho
geral de que os soldados não iriam mais lutar; o movimento em direção ao
bolchevismo refletido nas eleições municipais de Moscou.
Chama a atenção que durante todo o
período crítico de preparo para o risco supremo do levante, Lenin mostrou pouco
caso quanto às exigências estritas de disciplina no partido. Ele passou por
cima do Comitê Central em mais de uma ocasião, enviando cópias de suas
mensagens às organizações partidárias locais, entrando em contato direto com
aqueles que ele via como os partidários mais confiáveis da insurreição,
certificando-se de que cópias extras de seus apelos chegassem às mãos dos
trabalhadores mais ativos ligados ao partido. Trotsky declara que no meio de
outubro, Lenin anunciou sua renúncia como membro do Comitê Central “para ter
liberdade de promover agitação nas fileiras inferiores do partido e no
congresso do partido”. A renúncia não foi aceita e o incidente foi rapidamente
encerrado, mas é sintomático do impulso infatigável de Lenin o medo de perder a
oportunidade de um levante bem-sucedido. Entre 16 e 20 de outubro, ele mandou
uma carta diretamente aos membros dos comitês de Petrogrado e Moscou, cujo
conteúdo geral se resume às seguintes frases: “Esperar é um crime. Os
bolcheviques não têm o direito de esperar até o Congresso dos Sovietes, eles devem
agir imediatamente... Adiar é um crime. Esperar o Congresso dos Sovietes é um
apego infantil à formalidade, é um vergonhoso apego à formalidade, uma traição
da Revolução”.
Nenhuma imagem do pensamento de Lenin
nessa época seria completa sem uma menção ao seu notável panfleto “Podem os
bolcheviques manter o poder do Estado?”, amplamente dedicado a refutar os
argumentos apresentados por Maxim Gorky no seu jornal Novaya Zhizn (Vida Nova):
“Depois da revolução de 1905, 130.000 senhores de terra governaram a Rússia. E
240.000 membros do partido bolchevique não poderiam governar a Rússia em nome
dos interesses dos pobres e contra os ricos? ... O Estado é uma concepção de
classe. O Estado é um órgão ou máquina de violência de uma classe contra
outras. Na medida em que ele é uma máquina de tirania da burguesia sobre o
proletariado, só pode haver um único slogan proletário: a destruição do Estado.
E quando o Estado for proletário, quando ele for uma máquina de tirania do
proletariado sobre a burguesia, então seremos a favor da autoridade firme e do
centralismo, de maneira completa e sem reservas... Uma revolução popular, real
e profunda é um processo incrivelmente tormentoso de morte da velha ordem
social e nascimento da nova, de uma nova maneira de viver para dezenas de
milhões de pessoas. A revolução é a mais feroz, aguda e desesperada luta de
classes e guerra civil. Nenhuma grande revolução na história se realizou sem
guerra civil... E quando o último dos trabalhadores não-qualificados, cada
cozinheira, cada lavrador empobrecido ver, não apenas pelos jornais, mas com os
próprios olhos, que o poder proletário não rasteja diante dos ricos, mas ajuda
os pobres, que não foge das medidas revolucionárias, que toma o excedente dos
ociosos para dá-los aos famintos, que assenta os sem-teto nos apartamentos dos
ricos, que obriga os ricos a pagar pelo leite, mas não lhes dá nenhuma gota de
leite até que as crianças das famílias mais pobres sejam alimentadas, que
transfere a terra para quem labuta, que põe as fábricas e os bancos sob o
controle dos trabalhadores, que pune séria e imediatamente os milionários que
escondem suas riquezas, quando os pobres virem e sentirem isso,
então nenhum poder dos capitalistas e dos kulaks, nenhum poder capital
financeiro internacional, que roubou milhões, poderá vencer a revolução do
povo. Pelo contrário, é a revolução que conquistará todo o mundo, por causa dos
levantes socialistas que amadurecem em todos os países”.
Se a esse feroz evangelho da luta de
classes adicionarmos o toque de acre desprezo com que Lenin se refere, neste
panfleto, a um engenheiro ex-bolchevique que levantou a objeção de que os
trabalhadores da Rússia eram muito ignorantes e atrasados para fazer uma
revolução exitosa (“Ele estaria pronto a reconhecer a revolução social se a
história conduzisse a isso de maneira tão pacifica, tranquila, suave e exata
quanto um trem expresso alemão que se aproxima da estação e o condutor abre as
portas anunciando: Estação Revolução Social. Desçam todos”), nós teremos uma
boa visão psicológica da condição interior do homem que logo iria derrubar o
instável poder de Kerensky.
(William
Henry Chamberlain, The Russian Revolution, Volume One, The
Universal Library, New York, 1977, pp. 287-290)