segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O adiamento








O encerramento deste blog, anunciado num momento de dor e cansaço, talvez tenha sido prematuro e mal pensado. Depois de acompanhar uma campanha de baixíssimo nível, feita de acusações, bravatas, ausência de propostas e notícias fraudulentas; depois de uma lastimável desarticulação das esquerdas; depois de um atentado, verdadeiro ou falso, mas tão providencial que foi celebrado como uma "facada divina" por um pastor aliado do candidato vitorioso; depois da convocação de um ministério que combina alguns valorosos egressos da West Point brasílica e algumas insípidas incompetências de sempre, corruptos fisiológicos dos Democratas e paladinos da Justiça, ríspidos porta-vozes da eficiência do mercado e pastoras sofridas que acreditam em princesas, pitorescos spenglerianos de ultimíssima hora e pícaros ávidos como os filhos do capitão; depois de ler com sentimento de dejà-vu as notícias do escândalo cujo protagonista é um factotum da família presidencial envolvido numa suspeita movimentação bancária que respinga lama na esposa e no filho mais velho do capo de Estado; enfim, depois de ler com atenção tudo o que a imprensa divulgou nos últimos meses, eu percebi que é melhor adiar o fim deste blog. Não que ele valha muita coisa ou tenha qualquer pretensão de representar algo importante neste momento, mas diante da derrota que as forças emancipatórias têm sofrido por toda parte, um gesto a mais de desistência é justamente o que não se pode conceder ao adversário. A nossa paralisia facilita seus movimentos. O nosso estupor alimenta a sua audácia. A nossa mudez engrandece a sua voz. A nossa inteligência inerte dá poder à sua estupidez ativa.

Todavia, temos que abandonar desde já a crença consoladora de que o futuro está do nosso lado. O futuro não está nem do nosso lado nem do de ninguém. O futuro é a rachadura no presente, que anuncia a destruição de tudo o que existe e de tudo o que conhecemos, ao mesmo tempo que deixa passar o incerto raio de luz que alimenta nossas expectativas e nos guia no esforço presente de transformar o mundo. A dificuldade é que o engajamento – por mais que se queira fundado no conhecimento das condições presentes e na memória rigorosa das condições passadas - nunca é independente das nossas expectativas, nutridas pelo medo ou pela esperança, pois "não há esperança sem medo, nem medo sem esperança (...) Como consequência, enquanto se está apegado à esperança, tem-se medo de que a coisa não se realize" (Spinoza, Ética, Parte III).  

Na tentativa de esconjurar a incerteza do futuro e aliviar o  fardo de nossos temores e aspirações, invocamos rezas, palpites, conjeturas, hipóteses, profecias, previsões do tempo, pareceres dos experts, modelos matemáticos, teorias sobre o sentido da História: toda a gama de racionalizações do que não poder ser legitimamente conhecido. Esses recursos seduzem porque toda a ignorância com foro de saber é altiva, loquaz e se presta ao comércio de opiniões, que é uma das delícias da vida social, ao passo que a ignorância humilde e consciente de si padece de laconismo. Para escapar à tolice e à impostura dessas previsões do futuro, seria preciso aderir a uma profilaxia muito mais profunda e muito mais enérgica do que a providência simples de pensar bem para não dizer bobagem. Seria preciso ir mais longe e extirpar o próprio medo e, junto com ele, a esperança.

No entanto, sem coragem, energia ou capacidade para um gesto tão radical, seja por causa de alguma falha inscrita na natureza humana ou da nossa mera acomodação ao que está dado - afinal de que valeria tentar mudar as regras da partida em curso-, endossamos, com igual facilidade, tanto o otimismo sazonal da virada de ano e quanto o pessimismo apocalíptico em relação ao Brasil, ao mundo e à espécie humana. Nadamos na contradição e no despropósito, como mostram nossas opiniões cambiantes e incoerentes, retratos de nossa rendição à facticidade e ao impensado. Eis o que um filósofo não pode aceitar e contra o que deve lutar. O enfrentamento que lhe cabe, feito com as armas da crítica, requer a paciência e a serenidade de compreender que a condição precária e provisória do agora exige um constante cuidado, que abre possibilidades futuras sem garanti-las, como descobriram os habitantes de certa ilha vulcânica no poema de Hans Magnus Enzensberger.






O adiamento


"Quando da célebre erupção do Helgafell, um vulcão

da ilha de Heimaey, transmitida ao vivo por uma dúzia

de equipes de TV a tossir sem parar, eu vi, sob a chuva sulfúrea

um homem de meia-idade, de suspensórios, que dava de ombros,

sem importar-se muito com a ventania, o calor,

as câmeras, as cinzas, os espectadores (inclusive eu,

acocorado em meu tapete, diante da tela azulada),

e investia com sua mangueira de jardim, delgada mas nítida,

contra a lava, até que finalmente vizinhos, soldados,

colegiais e mesmo bombeiros juntaram-se a ele, todos

apontando mais e mais mangueira para a lava incandescente

que avançava, erguendo um muro cada vez mais alto

de lava fria, endurecida pela água, cinzenta, e com isso

adiaram, não digo para sempre, não, mas ao menos

por enquanto, o naufrágio da civilização ocidental, de sorte que

as pessoas de Heimaey, uma ilha tão distante da Islândia,

a menos que tenham falecido de lá para cá, continuam

até hoje a acordar de manhã em suas casinhas de madeira

colorida e à tarde, longe do olhar das câmeras, regam a alface

adubada pela lava, que dá pés enormes em seus jardins,

só temporariamente, é claro, porém sem pânico".


Hans Magnus Enzensberger, O Naufrágio do Titanic, Canto X

Companhia das Letras, São Paulo, 2000