O encerramento deste
blog, anunciado num momento de dor e cansaço, talvez tenha sido prematuro e mal
pensado. Depois de acompanhar uma campanha de baixíssimo nível, feita de
acusações, bravatas, ausência de propostas e notícias fraudulentas; depois de
uma lastimável desarticulação das esquerdas; depois de um atentado, verdadeiro
ou falso, mas tão providencial que foi celebrado como uma "facada
divina" por um pastor aliado do candidato vitorioso; depois da convocação
de um ministério que combina alguns valorosos egressos da West Point brasílica
e algumas insípidas incompetências de sempre, corruptos fisiológicos dos Democratas
e paladinos da Justiça, ríspidos porta-vozes da eficiência do mercado e
pastoras sofridas que acreditam em princesas, pitorescos spenglerianos de
ultimíssima hora e pícaros ávidos como os filhos do capitão; depois
de ler com sentimento de dejà-vu as notícias do escândalo cujo protagonista é um factotum da
família presidencial envolvido numa suspeita movimentação bancária que respinga
lama na esposa e no filho mais velho do capo de Estado; enfim, depois de ler
com atenção tudo o que a imprensa divulgou nos últimos meses, eu percebi que é
melhor adiar o fim deste blog. Não que ele valha muita coisa ou tenha qualquer
pretensão de representar algo importante neste momento, mas diante da derrota
que as forças emancipatórias têm sofrido por toda parte, um gesto a mais de
desistência é justamente o que não se pode conceder ao adversário. A nossa
paralisia facilita seus movimentos. O nosso estupor alimenta a sua audácia. A
nossa mudez engrandece a sua voz. A nossa inteligência inerte dá poder à sua
estupidez ativa.
Todavia, temos que
abandonar desde já a crença consoladora de que o futuro está do nosso lado. O
futuro não está nem do nosso lado nem do de ninguém. O futuro é a rachadura no
presente, que anuncia a destruição de tudo o que existe e de tudo o que
conhecemos, ao mesmo tempo que deixa passar o incerto raio de luz que alimenta
nossas expectativas e nos guia no esforço presente de transformar o mundo.
A dificuldade é que o engajamento – por mais que se queira fundado no
conhecimento das condições presentes e na memória rigorosa das condições
passadas - nunca é independente das nossas expectativas, nutridas pelo medo ou
pela esperança, pois "não há esperança sem medo, nem medo sem
esperança (...) Como consequência, enquanto se está apegado à esperança, tem-se
medo de que a coisa não se realize" (Spinoza, Ética, Parte
III).
Na tentativa de
esconjurar a incerteza do futuro e aliviar o fardo de nossos temores e
aspirações, invocamos rezas, palpites, conjeturas, hipóteses, profecias, previsões do tempo, pareceres dos experts, modelos matemáticos, teorias sobre o sentido da História: toda a gama de
racionalizações do que não poder ser legitimamente conhecido. Esses
recursos seduzem porque toda a ignorância com foro de saber é altiva, loquaz e se presta
ao comércio de opiniões, que é uma das delícias da vida social, ao passo que a
ignorância humilde e consciente de si padece de laconismo. Para escapar à
tolice e à impostura dessas previsões do futuro, seria preciso aderir a uma profilaxia muito mais profunda e
muito mais enérgica do que a providência simples de pensar bem para não dizer
bobagem. Seria preciso ir mais longe e extirpar o próprio medo e, junto com ele, a
esperança.
O adiamento
"Quando da célebre erupção do Helgafell, um vulcão
da ilha de Heimaey, transmitida ao vivo por uma dúzia
de equipes de TV a tossir sem parar, eu vi, sob a chuva sulfúrea
um homem de meia-idade, de suspensórios, que dava de ombros,
sem importar-se muito com a ventania, o calor,
as câmeras, as cinzas, os espectadores (inclusive eu,
acocorado em meu tapete, diante da tela azulada),
e investia com sua mangueira de jardim, delgada mas nítida,
contra a lava, até que finalmente vizinhos, soldados,
colegiais e mesmo bombeiros juntaram-se a ele, todos
apontando mais e mais mangueira para a lava incandescente
que avançava, erguendo um muro cada vez mais alto
de lava fria, endurecida pela água, cinzenta, e com isso
adiaram, não digo para sempre, não, mas ao menos
por enquanto, o naufrágio da civilização ocidental, de sorte que
as pessoas de Heimaey, uma ilha tão distante da Islândia,
a menos que tenham falecido de lá para cá, continuam
até hoje a acordar de manhã em suas casinhas de madeira
colorida e à tarde, longe do olhar das câmeras, regam a alface
adubada pela lava, que dá pés enormes em seus jardins,
só temporariamente, é claro, porém sem pânico".
Hans Magnus Enzensberger, O Naufrágio do Titanic, Canto X,
Companhia das Letras, São Paulo, 2000