domingo, 24 de fevereiro de 2013

Santos F.C.





Carta a  Ludmila Ciuffi 


Lud,


Há 27 anos, você era uma mocinha muito pagã. Apesar do batismo clandestino arranjado pela sua avó Antonieta e dos laivos de história sacra transmitidos pela sua mãe, você era impermeável ao Cristianismo.  Que uma parenta do Frei Galvão fosse tão avessa às usanças da Igreja e tão amiga dos deuses gregos era coisa que consternava. Ainda mais metida naquele ninho de esquerdistas ateus que era a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo na década de 1980, época em que fervor arrefecido dos marxistas de claustro já não podia fazer frente ao frenesi neófito do rebanho nietzschiano. Tínhamos dezoito anos, não éramos felizes e nós o sabíamos. 

No entanto, os caminhos do Senhor são insondáveis e Deus nunca recuou face aos métodos mais escusos. É certo que nas alturas celestes em que se encontra, o beato Frei Galvão, posteriormente canonizado pelo papa João Paulo II, mas já santo na eternidade, intercedeu pela sua jovem parenta transviada.  Como cronista desses sucessos, acredito piamente que não há outra explicação para que você se interessasse por um tipo como eu, a quem coube, na simples condição de instrumento do Senhor, reconduzi-la ao caminho da Igreja. Desde então, quantas devoções e quantas orações não fizemos juntos? Quantas peregrinações aos lugares mais sagrados? O Louvre, o Museu d’Orsay, a Pinacoteca de Brera, os Uffizi, o Groeninge, a Escola de San Rocco, o Jardim Giusti, a charola de Tomar e o claustro dos Jerônimos.

Juntos, sempre juntos, pela intercessão poderosa dos santos, alcançamos a Glória, o Flamengo e a visão beatífica da enseada do Botafogo, que o Todo-Poderoso concedeu ao Brasil como sinal de sua eleição entre as nações.

E a quem senão aos santos devo algumas das mais preciosas amizades que fiz e das conversações mais instrutivas que tive?  

Você se lembra que dirigi a palavra ao Zé Bento pela primeira vez quando ele e eu disputávamos, num sebo de Pinheiros, um exemplar do livro de Fullop-Müller sobre os santos que abalaram o mundo?  Foi mais ou menos na época em que conheci o Rui Andrade, que andava a escrever a tese de doutoramento sobre a Espanha visigótica. Se não me engano, estávamos na sala dos professores do curso Universitário do Tatuapé quando eu fiz menção a Santo Isidoro de Sevilha ou à História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia. Muitas conversas sacras e profanas se seguiram nas famosas “pizzas burlescas” no apartamento dele, ao pé da Anunciação de Fra Angelico. 

A primeira vez que Ezequiel de Olaso falou comigo foi no Colóquio sobre Ceticismo na Universidade de Santa Catarina. Ele estranhara a menção a São Tomé no título da minha apresentação e queria explicações. Dois anos depois, quando saí para o primeiro de inúmeros almoços com o Biasse e o Tércio, a conversa despencou, sabe-se lá por qual razão, sobre Santo Inácio de Loyola, o qual me vi na obrigação de defender contra os escárnios do Biasse, ao mesmo tempo em que talhava uma tenra e suculenta alcatra. 

Não me afligem, porém, as chufas dos incréus. Fui muito favorecido, no amor e na amizade, pelos santos de minha devoção e, como Santo Hilário, padroeiro dos humoristas, quero agora agradecer a graça alcançada.




Parte 1 

 Os clérigos e os historiadores 


a. Onde encontrar um santo?

Para quem é católico, a resposta é fácil: os santos estão guardados nos relicários dos altares e nas criptas das igrejas. É lugar comum entre os historiadores que lidam com o fenômeno da santidade dizer-se que um santo é um “morto de exceção”. No mundo católico, o reconhecimento canônico da santidade é sempre póstumo e muitas vezes tardio. Por isso, o santo existe na forma de relíquia e de relato – embora nem a relíquia nem o relato sejam necessariamente autênticos. 

Em 386, Ambrósio, bispo de Milão, teve uma visão em que dois mártires das primeiras perseguições contra os cristãos revelavam o lugar em que estavam enterrados. O bispo mandou que se cavasse o local e encontrou os corpos ainda bem conservados, junto a uma breve narração escrita pelo escravo que piedosamente lhes dera sepultura e registrara como eles morreram em testemunho da fé. É assim que Giacomo de Varazze, na Legenda Áurea, conta a história dos irmãos mártires Gervásio e Protásio, cujos esqueletos admiramos na cripta da Basílica de Santo Ambrósio em Milão, junto aos restos mortais do célebre bispo e doutor da Igreja que os encontrou. 

foto: Ludmila Ciuffi


O medievalista André Vauchez (“O Santo” em O Homem Medieval, organizado por Jacques Le Goff) argumenta que se tratava de um momento em que, findas as perseguições com o Edito de Milão (313), os bispos se afirmavam como os intermediários entre os fiéis e as autoridades romanas, garantindo a ordem e a proteção daquela porção do povo de Deus que constituía sua clientela. Para reforçar esse papel temporal, os bispos invocavam a autoridade dos apóstolos e dos mártires dos quais se apresentavam como sucessores vivos. Era importante, portanto, colocar-se sob o patronato de um santo, cujas relíquias e relatos estivessem ligados à região em que atuava o bispo. A formação dessas fidelidades de natureza clientelista entre os fiéis e o bispo, o qual se punha sob a proteção sobrenatural de um santo que intercedia no plano celestial, responde pelo aspecto localista que a santidade tem para os católicos. Todo santo é um patrono que tem seus clientes que conhece bem: os homens e mulheres de uma região, os que trabalham num certo ofício, os que sofrem de certas aflições. A devoção do fiel ao santo é uma relação pessoal e clientelista, como Machado de Assis descreveu bem no conto “Entre Santos”. Portanto, não há santos “universais” ou “genéricos”.  Tudo se passa como se a eficácia do santo dependesse da sua especialização e da sua espacialização. Todo santo é santo de um lugar, de uma profissão, de uma condição ou causa, que se justificam pelos relatos autênticos ou apócrifos de que é protagonista.


b. O que distingue um santo dos outros animais?

Ao homem ou mulher cuja santidade foi reconhecida de forma canônica se atribuem três marcas de santidade. Em primeiro lugar, o santo é dotado de virtude exemplar: em vida, ele foi perfeito no amor, na caridade, na fé, na paciência, na temperança, na castidade, na esperança. Em segundo lugar, o corpo do santo é dotado de dons milagrosos que se conservam depois da sua morte e mesmo quando já fragmentado (daí o valor das relíquias): os santos ou as suas relíquias podem curar os enfermos, controlar os elementos da natureza, fazer objetos levitarem; em terceiro lugar, o santo é um intercessor eficaz porque tem comunicação privilegiada com o domínio celestial: ele é um medianeiro entre Deus e os homens comuns.

Para os católicos de tendência mística, é a vida virtuosa e exemplar dos santos que constitui tema de meditação e de inspiração. Para a clientela de pobres e de pessoas carentes, é a combinação da intercessão eficaz e dos dons miríficos que tornam os santos patronos tão poderosos e atrativos. Deles se espera a solução dos problemas, não sermões sobre a correção dos costumes. Vauchez conta o caso de um notário do século XIII que procurou ajuda de um santo ainda vivo, o eremita que mais tarde seria canonizado como São Pedro Marrone. Ao saber que o notário era um devasso, o santo eremita começou a lhe fazer um sermão. De maneira seca e objetiva, o notário respondeu: “Tratemos daquilo que me fez vir aqui”. Diz Vauchez: “Aos olhos do requerente, a função dos santos era curar e não converter”. No fundo, o avarento que dirige sua prece a São Francisco de Sales a fim de obter a cura para sua esposa, no conto de Machado de Assis, não age de modo diferente.


c. Quantas espécies de santos existem?

No capítulo sobre “Todos os Santos” da Legenda Áurea, Giacomo de Varazze divide os santos em quatro grupos: os que foram apóstolos, os que foram mártires, os que confessaram publicamente a sua fé e as virgens.  Essa divisão reflete as concepções da Igreja a respeito da santidade no final da Idade Média, mas não dá conta da multiplicidade de situações que permite o reconhecimento da santidade.  Neste aspecto, as canonizações efetuadas pela Igreja lembram as atribuições do Prêmio Nobel de Literatura: as razões alegadas são tão vagas que ficam aquém de qualquer discussão séria. Por isso, há santos cuja existência simplesmente não podemos compreender. 

Num certo almanaque hagiográfico se lê esta narração sumária da vida de Santa Rita de Cássia, figura popularíssima no mundo católico: 

Nasceu em 1381 em Roccaporena, na Úmbria, Itália. De seu nome de batismo Margherita originou-se o nome Rita, pelo qual é conhecida no mundo católico. Um tanto contrariada, acabou fazendo o gosto dos pais: casou-se com um jovem temperamental e violento e tiveram filhos. Durante os 18 anos seguintes em que esteve casada, tudo fez para que a paz e a harmonia fossem mantidas. E à custa de muita oração conseguiu abrandar o temperamento do marido. Um dia, entretanto, Paulo Ferdinando foi assassinado e jogado è beira de uma estrada. Os dois filhos juraram vingar o pai. Impotente ante o ódio dos filhos, pediu a Deus que os levasse antes que se manchassem de sangue. Seja lá por que desígnios de Deus, suas preces foram ouvidas. Abalada pela morte do marido e dos filhos, quis recolher-se ao convento das agostinianas de Cássia, mas não foi aceita. Rezou, então, fervorosamente aos santos de sua devoção: São João Batista, Santo Agostinho e São Nicolau Tolentino.  Contam os biógrafos que estes santos arrombaram as portas do convento e a fizeram entrar. Por 14 anos, até sua morte, trouxe na testa um estigma, associando-se assim à paixão de Cristo. Morreu no Mosteiro de Cássia em 1457 e foi canonizada em 1900. 
(José Benedito Alves, Os Santos de cada dia, Edições Paulinas)

É evidente que o autor perde a paciência com a eficácia da prece da mãe pela morte de seus filhos  (“Seja lá por que desígnios de Deus, suas preces foram ouvidas”) e toma uma distância prudente do método usado pela gangue de santos protetores para facilitar a admissão de Rita na vida monástica (“Contam os biógrafos que estes santos arrombaram as portas do convento e a fizeram entrar”). Enfim é difícil entusiasmar-se com uma santidade que levou 450 anos para ser reconhecida na forma canônica numa região tão próxima ao Vaticano...  

O fato é que, mesmo para um católico disposto a crer, a diversidade dos santos coloca-os além de qualquer esforço classificatório e de qualquer critério razoável de classificação. A respeito dos esforços da Igreja Medieval em regular os processos de reconhecimento de santidade, “a vontade de controlar com minúcia e a empreitada de homogeneização não puderam resistir à pressão de uma realidade religiosa vasta e  variada demais” (Sofia Boesch Gajano, “Santidade” in Dicionário Temático do Ocidente Medieval).


d. Todas as vidas de santos são fraudes piedosas?

A medievalista Chiara Frugoni demonstrou brilhantemente como a Igreja medieval procurou conter, amansar e domesticar aquele fenômeno extraordinário que era a santidade de Francisco de Assis:

No final da vida, Francisco se sentia cada vez mais acossado e oprimido pela Igreja preocupada em normatizar e aplainar um projeto de vida cristã (praticar a pobreza e o amor evangélico) que, se fosse realmente posto em prática, teria sido revolucionário e perigoso para a própria estrutura eclesiástica. (Vida de um homem: Francisco de Assis, cap. 6)

Por meio da análise comparativa dos relatos e da iconografia, ela expôs a distância entre a santidade viva do homem Francisco e a santidade canônica produzida pela necessidade de contornar conflitos que prejudicariam a Igreja e a Ordem Franciscana. Essas intervenções eclesiásticas resultaram, entre outras coisas, na representação de um São Francisco que fala aos pássaros, num afã evangélico inofensivo e um tanto amalucado:

Gostaria agora de apontar um fato bastante estranho. Nas imagens, Francisco, que passou a vida pregando, nunca aparece diante de um público de homens e mulheres, mas apenas de pássaros (em inúmeras dessas pinturas, notamos claramente aves aquáticas, garças e cegonhas, e até aves de rapina, a demonstrarem uma clara compreensão da prédica). A ausência de uma audiência humana, substituída pela emplumada, pode ser entendida como uma autêntica censura: mostra o desígnio da Igreja em relação a um religioso muito peculiar, ainda demasiado similar a um laico. Aos laicos que, na época de Francisco, pedem para pregar, a Igreja nega categoricamente sua autorização, considerando que apenas o clero está à altura da difícil tarefa de explicar a profundidade das Sagradas Escrituras. Aliás, trata-se de um pedido muito perigoso de se fazer, facilmente caracterizado como franca manifestação de heresia. (cap. 4)

Chiara Frugoni mostrou também que as tradicionais representações de São Francisco no momento de receber os estigmas tem as marcas da intervenção dos líderes da Ordem Franciscana da geração que se seguiu à morte de Francisco. O primeiro biógrafo de Francisco, Tomás de Celano narra que os estigmas tinham sido produzidos pelo próprio corpo de Francisco depois da aparição de um serafim. Segundo São Boaventura, que se tornou líder da Ordem Franciscana, foi o próprio Cristo crucificado que apareceu a Francisco, imprimindo-lhe os estigmas “como se o selo se imprimisse na cera que o fogo derretera”. Os estigmas de Francisco não eram apenas semelhantes aos ferimentos de Cristo, eram a cópia exata desses ferimentos e, portanto, eram sinais da perfeição de Francisco.

Ao fazer com que os estigmas assumissem a marca divina, Boaventura tornou aquela perfeição inatingível: de um lado, Francisco permanecia o santo a ser venerado, ainda mais por trazer na carne as feridas de Cristo, mas de outro lado, e precisamente por essa razão, os frades não eram obrigados a imitar o fundador, a permanecerem fiéis a suas incômodas palavras, a seu projeto de vida cristã. A santidade de Francisco tinha se tornado inacessível e inimitável. Os frades, mesmo continuando a prestar uma extrema devoção a Francisco, deviam seguir outros modelos, copiar a conduta de vida de outros homens de virtudes mais simples e condescendentes. A iniciativa de Boaventura foi uma operação política ditada pela necessidade de acabar com a discórdia, mas transformou profundamente a herança espiritual de Francisco (cap. 6).

O que há de fascinante no estudo dos santos da Igreja católica é esse processo inventivo de produção de relatos e relíquias. Os corpos de Protásio e Gervásio vieram à luz por obra da arqueologia onírica do bispo Ambrósio, segundo o mesmo método que havia permitido a Santa Helena, mãe de Constantino, “descobrir” o paradeiro da Santa Cruz e o local do Santo Sepulcro. Outros santos existem até sem outro suporte que o mito. Na Legenda Áurea, lemos que as discrepâncias entre os relatos da vida de São Jorge da Capadócia levaram o Concílio de Nicéia a considerá-los apócrifos em 325. Isso nunca impediu que São Jorge fosse patrono da Inglaterra e de uma vasta e impaciente clientela de torcedores do Corinthians F. C. 

Nas regiões mais pobres do mundo católico, não cessam de surgir santos populares. Há uma demanda contínua por santos que atendam os novos deserdados da Terra. Trata-se apenas de ilusão coletiva? 

Não cabe aos historiadores dar resposta a esta pergunta. Quanto aos teólogos, eles são vezeiros nas práticas de interpretação vetadas pela boa filologia. Portanto, prefiro não os consultar.



Parte 2  

Como de costume, o filósofo mete o bedelho 



Os “mortos de exceção” foram instrumentais para a Igreja e podem ser fascinantes para o historiador, mas dizem pouco aos filósofos. A própria palavra “santo” tem má reputação, como sugerem as canonizações de “São Max Stirner” e  de “São Bruno Bauer” efetuadas por Marx em seu ataque à ideologia alemã.  É que tanto a santidade canônica, inventada e administrada pela elite eclesiástica, quanto as santidades proclamadas pelas populações pobres que demandam milagres repugnam ao filósofo pelo que tem de falso, incerto, enganoso e ilusório. Além disso, a história da filosofia é marcada pelas tentativas de elaboração de uma moral isenta de elementos religiosos ou sobrenaturais. Isso faz com que os santos apareçam aberrações religiosas  destituídas de qualquer papel normativo numa ética laica. 

Acredito, porém, que os santos não precisam ser as criaturas semi-míticas que certas comunidades cristãs veneram. Devemos reconhecer que há formas não-religiosas de santidade. Isso não significa negar os santos reconhecidos ao longo dos séculos pela Igreja e pelos fiéis, mas reformular as condições de sua santidade de maneira mais abrangente e laica. Dado o estado incipiente em que se encontra meu pensamento sobre o assunto, só posso oferecer uma série de proposições avulsas, das quais a ordem das razões ainda me escapa.


Proposição I
O santo não é uma “bela alma” pacífica e satisfeita. Os santos são tomados por impulsos violentos e convulsivos. “Sangue! Sangue! Sangue!” exclamava Catarina de Siena pouco antes de morrer (Lodovico Ferretti, Santa Caterina di Siena, Edizioni Cantagalli).

Um santo precisa de inimigos contra os quais esses impulsos possam ser dirigidos: todo São Jorge precisa de um dragão.  A respeito de São Francisco, admirado pela sua suposta mansidão, Chiara Frugoni relata:

Francisco sempre manifestou perante o dinheiro, mesmo a moedinha de ínfimo valor, uma reação de repugnância quase doentia, de ex-comerciante consciente dos estragos decorrentes da posse monetária, que extinguem todo o desejo de caridade em favor da cobiça e da avareza. Não hesitava em punir os companheiros pela menor infração a esse respeito; era um homem de paixões fortes e, portanto, capaz de manifestar grande cólera. Certo dia, um devoto entrou na igrejinha da Porciúncula e deixou dinheiro perto do crucifixo. Um frade, ao passar, recolheu e jogou imediatamente o dinheiro no parapeito da janela. Francisco repreendeu asperamente o frade, obrigando-o a pegá-las e mantê-las na boca até ir depositá-las no esterco de um asno. (Vida de um homem: Francisco de Assis, cap.3)


Proposição II
O santo experimenta de maneira radical as contradições e limites da condição humana: a dor e o gozo, o vazio e a plenitude, a fome e a saciedade, o desprezo e a humildade, o orgulho e a modéstia, a humilhação e a exaltação, a carência e a abundância. 


Proposição III
O santo radicaliza a experiência humana porque faz um dom desmedido de si mesmo. Portanto, o santo não é comedido, prudente, moderado. O santo se opõe à esfera da moral e da economia da escassez que pauta o modo de vida cotidiano da humanidade. Suas ações se inscrevem no âmbito daquilo que George Bataille chamava de “economia geral”, a economia do excesso que se manifesta na prática do dom gratuito, das grandes despesas sem contrapartida (como no ritual do potlatch praticado por algumas tribos indígenas da América do Norte) e do sacrifício. O santo busca o incomensurável: ele dá um salto infinito, como dizia Kierkegaard do homem que tem fé.

Proposição IV
Ao radicalizar a experiência humana, o santo se torna inspirador e digno de imitação pelo desafio proposto, mas ao mesmo tempo a singularidade e a temeridade de seu percurso o tornam inimitável. É impossível e perigoso querer ser Francisco de Assis, Catarina de Siena, Inácio de Loyola ou Teresa d´Ávila. O caminho da imitação tem dois destinos possíveis: o surgimento de outro santo singular e inimitável ou a destruição de um ser humano.


Proposição V
Por causa da singularidade irredutível da experiência que cada santo viveu, não há nem pode haver regra que delimite a santidade. Não há conceito nem cânone de santidade. Há apenas a multidão de santos ligados mais por coincidências do que por semelhanças de família. 


Proposição VI
Diante da exemplaridade inimitável dos santos, a reverência que lhes é devida é a admiração pelo desafio que fizeram à moral e à economia da escassez, cujas normas permeiam o conjunto da experiência cotidiana dos seres humanos quase em sua totalidade. Os santos testemunham a existência de algo que a religião chama de Deus, mas os pensadores laicos podem chamar de ideal de abundância. 



Lud, 

Um ano antes de morrer, um famoso jazzista afro-americano declarou que entre seus planos estava o tornar-se um santo. Reconhecendo este legítimo desejo de santidade, alguns dos seus fãs criaram uma igreja dedicada a Saint John Coltrane

É claro que havia, da parte dos fãs, uma legítima demanda de santidade, mas vejo nisso também um tributo à economia da abundância de que o disco “A Love Supreme” é um exemplo musical poderoso, e que, como devoto, quero continuar comungando contigo.

Pelo aniversário de 27 anos daquele dia sagrado em que nos vimos pela primeira vez, um beijo desmedido. 





sábado, 16 de fevereiro de 2013

Adendo ao colóquio do Moinho




Carta a Gi Neto


Gi,

Ao sairmos do Moinho D.Quixote, Antonio me disse que a União Europeia foi um belo sonho que não deu certo. Na ocasião, falávamos já das escuras nuvens que se juntavam sobre Frau Merkel. Agora, certamente por razões bem outras, Bento XVI anunciou sua renúncia. Ao que parece nem os alemães estão a dar conta do recado, mas é cedo – sempre é cedo – para fazer previsões.

Meu amigo Roberto Pimentel costumava me contar que, naquela convulsa década de 70 em que a recessão econômica e a impopularidade da realeza faziam os britânicos considerarem pela primeira vez - desde Cromwell - a hipótese de mudança de regime, ele, Roberto, apostava que os únicos monarcas restantes no século XXI seriam o imperador do Japão e o xá da Pérsia. No caso persa, o prognóstico do meu amigo era um autêntico wishful thinking. Ele era fascinado pela imperatriz Farah Diba e duvidava haver gente que não se rendesse a tamanha beleza. Como o mundo veio logo a saber, os sequazes do ayatollah Khomeini não eram muito sensíveis aos argumentos estéticos. Caiu o xá Reza Pahlevi, mas ficaram o imperador do Japão e a soberana do Reino Unido. Sei que você confia ainda na rainha da Inglaterra, mas Her Majesty está tão velhinha... Quase tão cheia de anos quanto o padre acerca do qual Antonio observou tratar-se de um “autêntico seguidor de Cristo”. Parecia-nos ter a idade de quem ouviu parábolas da boca do próprio Jesus...

Os comentários finos e engraçados do Antonio me fizeram rir muitas vezes, mas houve um momento durante o almoço em que o colóquio enveredou para um assunto extremamente sério. Se bem me recordo, e peço perdão se estou a simplificar demasiado, Antonio declarou que a Europa, havendo perdido a primazia política e tecnológica, caminhava para a irrelevância. Você respondeu que os chineses podem construir uma réplica da catedral de Notre-Dame, mas se quiserem conhecer a autêntica, deverão ir a França. Enfim, vocês discutiam o que constitui a força da Europa face aos Estados Unidos, à China e às potências emergentes. 

Joseph Nye, professor de Ciência Política em Harvard, propôs uma distinção que se tornou corrente nesse tipo de debate: o poder pode ser exercido de maneira hard, como manifestação de superioridade económica, técnica e militar, ou pode ser exercido de maneira soft, como capacidade de persuasão com base na atração exercida por certos valores culturais e históricos. Penso que a nossa discussão se coloca no âmbito destes conceitos: a Europa perderá importância mundial pelo declínio do seu hard power ou seguirá como potência incontornável devido a seu soft power?

Por razões pessoais (entre as quais a minha ascendência italiana) e profissionais (sou filósofo formado segundo a tradição francesa e professor de literatura de língua portuguesa), sinto que a história e o destino dos países europeus me diz respeito de maneira profunda. Não vejo a Europa como um campo de curiosidades turísticas, mas como o lugar que me fornece o combustível do pensamento. Como eu disse na primeira carta deste blog, pobres-diabos como eu andam a Europa para aprender. Sempre. 

Por tudo isso, pareceu-me vivamente interessante ouvir dois europeus inteligentes, que conhecem muitos países, apresentarem seus pontos de vista enquanto tranquilamente almoçávamos ao pé do ponto mais ocidental da Europa, num bar simpático cujo nome presta homenagem ao mais universal de todos os personagens da magnífica literatura ibérica. 

Quero agradecer a gentileza que tiveram para conosco e expor algo do que pensei a respeito do colóquio do Moinho. 

1. Os problemas da UE prefigurados na anatomia urbana de Bruxelas

Percebo pouco dos mecanismos económicos e políticos que põem entraves às propostas de solução da crise, mas vejo bem seus efeitos e compreendo a hostilidade dos europeus em relação à burocracia da União Europeia, a começar pelas figuras máximas de Van Rompuy e Durão Barroso – consumados experts na arte da esquivança.

Como amador apaixonado pela história da arquitetura e do urbanismo, sou tentado a ver as desventuras e contradições da União Europeia inscritas ou prefiguradas na paisagem urbana de Bruxelas. 

Deixo de lado o facto bastante estranho de que as instituições executivas da União Europeia tenham sede na capital de um país dividido e de existência problemática, verdadeiro Estado-tampão (assim dizemos no Brasil, não sei se vocês usam tal expressão em Portugal) criado pela diplomacia pós-napoleónica para resolver questões que andam hoje esquecidas.

Também não quero me alongar na recordação do papel sinistro de Bruxelas como capital do mais infame império colonial do século XIX, o que levou Joseph Conrad a escrever: a city that always makes me think of a whited sepulcher (Heart of Darkness).

Bruxelas não é a cidade mais simpática do Universo. O miúdo mijãozinho, único monumento do mundo do qual se podem comprar réplicas de tamanho natural, sempre me pareceu mais acintoso do que gracioso, um anjinho de Rafael que se tornou diureticamente grotesco pelo consumo imoderado de cerveja (que os belgas as tem excelentes, sejamos justos). Muito pior que a incontinência do peralta é a maneira como a especulação imobiliária e a modernização bastarda devastaram o tecido urbano do que já foi a mais setentrional das cidades barrocas. 

Quando se sai da Estação Central, embora a poucas dezenas de metros da maravilhosa Grand Place, qualquer um dotado do mais elementar senso estético é golpeado pela banalidade dos edifícios construídos nos trinta anos gloriosos do pós-guerra. Vi muitas dessas bobagens arquitetónicas em Lisboa, mas longe do centro. Em Bruxelas, elas constituem a norma e avançam até o coração da cidade. 

Como a História se compraz nas repetições perversas e nas inversões tragicómicas, a sinistra capital do rei Leopoldo II veio a tornar-se a insípida capital do império administrado pela Comissão Europeia e pela OTAN. 

É fácil para os burocratas propor políticas de terra devastada quando o horizonte que veem é o da wasteland urbana de Bruxelas.


2. Extra/ ex/ beyond

Se há solução para a crise da zona do euro, é difícil acreditar que ela venha das inúteis reuniões de cúpula em Bruxelas ou das propostas do Parlamento de Estrasburgo. A Cúria de Bruxelas, como a do Vaticano com a qual tem tanta semelhança, limita-se a repetir “Extra ecclesiam nulla salus”, ao que os céticos em geral respondem: “Ex ecclesia nulla salus”.

Tampouco há o que se esperar dos plutocratas que fazem seu convescote anual em Davos, a propósito do qual Emmanuel Carrère e Hélène Devynck publicaram um artigo muito revelador, que li numa revista italiana:

“Uma cosa que stupisce fin dal primo giorno è il profumo di new age che avvolge questo meeting di maschi dominante com vestiti su misura. Il secondo giorno la sensazione diventa inquietante, il terzo non se ne può più, si soffoca in questa nuvola di discorsi e di slogan che sembrano usciti diretamente dai manuali di sviluppo personale e di positive thinking. Certo, non avevamo bisogno di venire fin qui per avere conferma che essere ottimisti è più facile per i ricchi che per i poveri, ma l’inflazione di otimismo, scollegato da qualunque esperienza ordinária, è talmente grande que l’osservatore più moderato oscila tra un’indignazione rivoluzionaria (se si è idealisti) e il sarcasmo più nero (se si è misantropi) (...) Ci piacerebbe scherzare senza ritegno davanti a questi chilometri di comunicati esaltati e ampollosi che invitano a “improve the state of the world”, “expect the unexpected”, “face the talent challenge” o (è il nostro preferito) “enter the human age”. Sì, avete letto bene, grazie a Davos possiamos entrare nell’epoca degli esseri umani. Era ora!
(...)
Qualcuno ha fatto notare l’uso smodato che si fa a Davos della parola “beyond”. L’impresa del tipo che si ocupa dei cocktail si chiama Beyond Liquids. Abbiamo anche il biglietto da visita di qualcuno di cui non abbiamo capito molto bene l’attività, ma che in ogni modo la svolge all’insegna “davosiana” di Beyond Global: sì, al di là del globale. (...) Per quanto ci riguarda, anche se non conosciamo l’indice del numero in cui questo articolo troverà posto, siamo convinti che si parlerà di persone che in Grecia, in Spagna o in Portogallo non sono affato beyond  la disoccupazione, beyond le cambiali a pagare, beyond i guai inestricabili della vita. Probabilmente è caratteristico delle classi dirigenti di tutti i tempi non avere nessuna idea o avere solo delle idee astratte, statistiche, di come vive davvero la gente comune.” 

(Quattro Giorni a Davos,  Internazionale n. 983 18/24 gennaio 2013)


3. Os euro-pessimistas tem razão do ponto de vista prático

A imprensa brasileira, seguindo os jornais de língua inglesa, usa a expressão “euro-pessimismo” para nomear - sem distinções - todas as opiniões negativas a respeito da situação e do destino da Europa, quer venham essas opiniões de europeus ou de não-europeus.

Nesse sentido impreciso, temos euro-pessimistas aos montes no Brasil. Alguns deles, por patriotismo, esperam que o mal da Europa nos proporcione bons negócios; outros desejam revanche pelas regras protecionistas da UE que tanto prejudicam as exportações brasileiras de carne. Exatamente o tipo de gente que acha bem feito que os franceses descubram estarem a comer carne de cavalos romenos ao invés de nacos do bom gado limusino. Também há os que, contrários à colaboração entre as nações da América do Sul segundo o modelo do antigo Mercado Comum Europeu, torcem pelo colapso da União Europeia, que viria bem a calhar como argumento contra o esforço de união supranacional. Por fim, de uns tempos para cá, muitas pessoas, para fazer figura de inteligentes, puseram-se a falar mal da Europa. Alguns são intelectuais que devem sua boa formação às universidades europeias, mas estão ansiosos para cuspir no prato em que comeram. Outros são apenas ignorantões provincianos que arrotam ditos sobre coisas que nunca viram.

Para as finalidades de meu argumento, proponho distinguir entre os que desejam lucrar com a crise europeia e os que desejam uma solução, mas desesperam dela. Na falta de nome mais adequado para os primeiros, chamá-los-ei “euro-abutres”. Aos segundos, reservo o nome “euro-pessimistas”.

Contra a maré montante de euro-pessimismo, tomado na acepção indicada, aparecem por toda a parte os euro-otimistas que insistem na afirmação de que a Europa tem recursos para sobrepujar as dificuldades pelas quais passa. Um exemplo desta linha é o blog Letters from Europe :


In recent years there has never been a lack of prophets, both foreign and domestic, predicting the doom of decadent Europe: Infertile “native” Europeans will be displaced by Muslim immigrants and their descendents, virile Americans and their soldiery are the only things keeping ungrateful Europeans safe or, most common nowadays, the Chinese will economically devour us.
Of course, each of these allegations has their truthiness. They can resonate with our lived day-to-day reality of poor race relations and today’s bad economic times to broader angst at living in postmodern civilization.

However, having consulted the facts, not just the feeling in our guts, let me go on the record: I don’t believe one bit of it. The citizens of the European Union, as a whole, have some of the healthiest, wealthiest, most peaceful and productive lives of the whole of humanity.

In this, we are up there with the rest of what we used to call the “First World”, along with North America and Japan, later joined by a few small East Asian countries (notably Hong Kong, Singapore, South Korea and Taiwan). I would go on to say, however, that not only are the Europeans among this enviable class of nations, but we are, in fact, decidedly less “decadent” than some of our peers. Let me say why.

(In Defense of Decadent Europe: Is it “the best place on Earth to be born”? July 10, 2012)

Outro exemplo é o blog The Edgy Optimist em que Zachary Karabell escreveu na semana passada:

Euro scorn is thoroughly in vogue, in the United States and throughout Europe. You will find no greater dismissiveness than on the streets of London. And when the EU was awarded the Nobel Prize last October, Greeks derided it as a cruel joke. We’re in the midst of economic war and being turned into a colony, scoffed one politician. On Wall Street, I regularly hear traders snicker about the fate of Europe – when they’re not in full panic mode. In Europe itself, the mood is often far darker.

And yet, the union prevails. The point of the Nobel award was to highlight how remarkable an achievement this has been, and what better time to highlight that than at a dark hour. Seventy years ago, European nations were annihilating one another, and they had been fighting bloody wars almost without respite for centuries and centuries. Now, worst-case scenarios have Greece returning to the drachma; Catalonia becoming independent; and London taking leave of an organization of which it has never fully been a part. Today’s worst-case scenarios would have been yesteryear’s dreams.

(…) There is no exit strategy, no Grexit strategy, no viable path to unwind the union or the euro except at such monumental cost that the pain of trying to move forward is a better trade than the agony of dissolution. 

(Another ill-advised rush towards Euro-pessimism, February 8, 2013)

Nos dois textos, a crítica ao euro-pessimismo é correta teoricamente, isto é, do ponto de vista dos princípios e formas que fundamentam a existência da União Europeia: entendimento ao invés de guerra; cooperação ao invés de isolamento; metas elevadas de bem-estar social; intervenção reguladora do Estado na economia; defesa dos direitos humanos. 

Os euro-pessimistas, na acepção que indiquei acima, são justamente aqueles que se irritam com o facto de que esses princípios elevados não foram atingidos a contento ou foram deturpados pelos governos nacionais e pelos burocratas de Bruxelas. A principal razão do euro-pessimismo é a indignação  com a discrepância entre a Europa dos tratados e das proclamações oficiais e a Europa das ruas, a Europa da gente comum. Os euro-pessimistas perderam a sua paciência com essa Europa que dá ampla mobilidade ao trabalhador, mas não dá emprego. Os euro-pessimistas não discordam dos princípios que fundamentam os tratados: eles os querem ver integralmente realizados. Se há protestos, greves, manifestações e movimentos de ocupação, tudo isso é, em verdade, uma exigência de que altos princípios que os líderes proclamam sejam colocados em prática. Os euro-pessimistas querem que a Europa se torne efetivamente a Europa.

Daí a irritação cotidiana que muitas vezes ganha a forma de discurso nacionalista, mesmo naqueles países que sempre foram adversos às patriotadas chauvinistas. É assim que eu leio a mensagem que um furioso leitor holandês enviou ao blog The Edgy Optimist:

Zachary, you must be a EU employee earning +€16000/month plus perks.
Otherwise I suggest that you speak to thousands of pensioners in the Netherlands who see their pension cut down because “we have to do it from Europe”. (sic)

Em outras palavras, o holandês furioso está a dizer: Ó burocratas de Bruxelas, deixai que nossos velhinhos tenham a dignidade que a União Europeia sempre nos prometeu! 

A meu ver, os euro-otimistas tem razão (em termos teóricos) em valorar os altos princípios morais e políticos que fundamentam a União Europeia, mas também os euro-pessimistas tem razão (em termos práticos e morais) quando se queixam de que as coisas não vão como deveriam.

O facto é que, serenos ou furiosos, gregos, italianos, franceses, espanhóis e portugueses sabem muito bem o que lhes falta. E se sabem é porque a civilização construída pelos europeus, ao longo de séculos de conflitos e acordos, conseguiu definir para si mesma e para grande parte do mundo os cânones e padrões de liberdade e bem-estar. E teve bastante êxito na realização desses cânones. Uma prova disso é que, a despeito da gravidade da crise, o padrão de vida médio dos portugueses é superior ao dos brasileiros, e isso não mudará tão cedo.


4. Nietzsche, Orson Welles e os cavalos de Turim

A crise da zona do euro reforçou as velhas especulações sobre a decadência da Europa. A ladainha de Nietzsche, repetida por muitos de seus admiradores, entre os quais os saudosos dos impérios coloniais, é bem conhecida: a democracia, o desejo de paz e a busca de bem-estar destruíram as ousadas virtudes guerreiras que sempre responderam pelas conquistas intelectuais e artísticas dos “bons europeus”. Uma perfeita síntese dessa perspectiva nos foi dada pelo personagem Harry Lime, interpretado por Orson Welles em The Third Man

In Italy for 30 years under the Borgias they had warfare, terror, murder, and bloodshed, but they produced Michelangelo, Leonardo da Vinci, and the Renaissance. In Switzerland they had brotherly love - they had 500 years of democracy and peace, and what did that produce? The cuckoo clock. 

Nesta perspectiva, a decadente Europa se teria tornado uma enorme e tediosa Suiça, totalmente à mercê das hordas de imigrantes, da voracidade dos capitalistas-comunistas chineses, da insensatez dos terroristas islâmicos, da incompetência económica e da mediocridade da classe dirigente europeia. 

Esse tipo de filosofia da história é bastante difundido por acomodar-se bem aos preconceitos de cada enunciador e aos ventos do momento. O método é simples: cada qual escolhe a época que mais lhe apraz, faz dela um quadro ideal e passa a medir todas as outras épocas de acordo com a medida inventada ao sabor do arbítrio pessoal. Usando com desenvoltura o método referido, Nietzsche chegou a escrever que a decadência europeia começara com... Sócrates! (Não é estranho que, mais tarde, estivesse a abraçar cavalos em Turim)

Jean-Christian Lambelet, que atualmente leciona em Lausanne e ainda não foi visto aos abraços com os amáveis equinos, assim avaliou as constantes declarações a respeito da decadência europeia:

Faut-il s'alarmer de cet apparent déclin ? A mon avis, ce genre de spéculations  à la Spengler, Toynbee et Valéry ou, plus près de nous, à la Fukuyama et Huntington fournit une excellente matière pour les conversations de cocktails, mais n'est guère à prendre au sérieux. S'il est vrai que l'Europe a dominé le monde pendant quelque deux siècles, grosso modo du début du XVIIIe au début du XXe, c'était une situation historiquement anormale et nécessairement éphémère. En outre, de bons historiens affirment que l'expansion coloniale dans les régions d'Outre-Mer a entraîné, en fin de compte et par solde net, une perte de substance humaine et économique pour l'Europe. Dès lors, un monde multipolaire, dont les pôles seraient en concurrence et où l'Europe serait un acteur parmi d'autres, est probablement préférable à un monde euro-centrique, y compris pour l'Europe. Plus généralement, la notion même de décadence est une invention d'historiens ou de certains historiens. L'Europe est certes en pleine mutation, comme d'ailleurs le reste du monde, mais toutes les indications qui, comme celles ci-dessus, peuvent être interprétées dans le sens d'une décadence pourraient tout aussi bien signifier la naissance d'une nouvelle société, peut-être meilleure que l'ancienne. 

Ce ne sont évidemment pas les problèmes qui manquent dans les pays d'Europe, de la nécessité de s'adapter  à  un contexte mondial toujours changeant,  à la mise en place d'un nouvel état social, à la nécessité de réaliser un équilibre entre immigration et cohésion sociale, etc. C'est  à ces problèmes qu'il faut que nous nous attaquions sérieusement et efficacement, mais laissons aux historiens des générations futures le soin de caractériser notre époque em termes normatifs. Bref, comme le disait Voltaire, avant toute chose "cultivons notre jardin" - et cultivons-le aussi bien que possible.

(L’Europe, un continente en pleine décadence? Le 30 avril 1997)


5. Acácio e os emergentes

A crise econômica na zona do euro, tão sofrida na Europa Meridional, um dia chegará a seu termo como sói ocorrer com todas as crises. Eis o que prevê o Conselheiro Acácio. No entanto, o poder das nações-continentes - a China, a Rússia, a Índia e o Brasil - não vai parar de aumentar e o poder dos Estados Unidos não vai diminuir, ao contrário do que desejam os US-vultures.

Quase nada sei dos nossos colegas do BRIC. A suposta existência do bloco multiplicou os gestos diplomáticos e as trocas de elogios entre os chefes dos Estados integrantes, mas russos, chineses e indianos e brasileiros seguem como incógnitas uns para os outros.

No Brasil, é cedo para sonhar com grandezas, apesar das ejaculações precoces de alguns exaltados. Nosso esforço ainda é o de superar a miséria, a fome, a violência, o crime, a destruição dos recursos naturais, a incompetência secular de nossa elite e a corrupção política. No instante em que escrevo essas palavras, nossos jornais  anunciam que há 2, 5 milhões de brasileiros fora do alcance dos programas de assistência à pobreza extrema (ou seja, gente que vive sem saneamento básico, com menos de 27 euros per capita ao mês, segundo o critério adotado pelas autoridades brasileiras). 

Há muito por fazer. Os brasileiros devem vencer a sua negligência e imprevidência. Devem superar sua aversão pelo planeamento racional. Devem parar de acreditar que é possível vencer a corrida tomando atalhos.

Os emergentes ameaçam a União Europeia? Sim e não.

Sim, na medida em que os europeus deverão ser criativos para enfrentar à altura a concorrência e as demandas dos países emergentes.

Não, na medida em que o modelo europeu de bem-estar, paz e entendimento parlamentar é superior a tudo aquilo que os países do BRIC podem oferecer. A Europa ainda é nossa mestra. Ela dispõe de muito hard power e é quase inquestionável no soft power. Por isso, chineses, brasileiros e russos se acotovelam diante dos monumentos da civilização europeia. Por isso, o conhecimento das línguas europeias ainda é uma exigência fundamental para os homens cultos de todas as nações do planeta. 

Para nós, é difícil acreditar que a Europa esteja em perigo.


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Antes de parar e pedir perdão por ter sido tão prolixo, quero contar uma anedota verídica. No sábado, depois que vocês nos deixaram no hotel, Ludmila e eu resolvemos dar umas voltas na Baixa. Pegamos o metro ali mesmo na estação Marquês de Pombal e descemos no Terreiro do Paço. Muito embora o dia tivesse sido extremamente agradável, eu andava com o humor um tanto cheio de sombras por conta dos assuntos graves que discutíramos. De volta para o hotel, pareceu-me que as alças em que os passageiros se apoiam no comboio eram pequenas forcas. Fiz uma foto. O que lhe parece?




Lembranças afetuosas ao Antonio e ao Júnior.