domingo, 24 de fevereiro de 2013

Santos F.C.





Carta a  Ludmila Ciuffi 


Lud,


Há 27 anos, você era uma mocinha muito pagã. Apesar do batismo clandestino arranjado pela sua avó Antonieta e dos laivos de história sacra transmitidos pela sua mãe, você era impermeável ao Cristianismo.  Que uma parenta do Frei Galvão fosse tão avessa às usanças da Igreja e tão amiga dos deuses gregos era coisa que consternava. Ainda mais metida naquele ninho de esquerdistas ateus que era a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo na década de 1980, época em que fervor arrefecido dos marxistas de claustro já não podia fazer frente ao frenesi neófito do rebanho nietzschiano. Tínhamos dezoito anos, não éramos felizes e nós o sabíamos. 

No entanto, os caminhos do Senhor são insondáveis e Deus nunca recuou face aos métodos mais escusos. É certo que nas alturas celestes em que se encontra, o beato Frei Galvão, posteriormente canonizado pelo papa João Paulo II, mas já santo na eternidade, intercedeu pela sua jovem parenta transviada.  Como cronista desses sucessos, acredito piamente que não há outra explicação para que você se interessasse por um tipo como eu, a quem coube, na simples condição de instrumento do Senhor, reconduzi-la ao caminho da Igreja. Desde então, quantas devoções e quantas orações não fizemos juntos? Quantas peregrinações aos lugares mais sagrados? O Louvre, o Museu d’Orsay, a Pinacoteca de Brera, os Uffizi, o Groeninge, a Escola de San Rocco, o Jardim Giusti, a charola de Tomar e o claustro dos Jerônimos.

Juntos, sempre juntos, pela intercessão poderosa dos santos, alcançamos a Glória, o Flamengo e a visão beatífica da enseada do Botafogo, que o Todo-Poderoso concedeu ao Brasil como sinal de sua eleição entre as nações.

E a quem senão aos santos devo algumas das mais preciosas amizades que fiz e das conversações mais instrutivas que tive?  

Você se lembra que dirigi a palavra ao Zé Bento pela primeira vez quando ele e eu disputávamos, num sebo de Pinheiros, um exemplar do livro de Fullop-Müller sobre os santos que abalaram o mundo?  Foi mais ou menos na época em que conheci o Rui Andrade, que andava a escrever a tese de doutoramento sobre a Espanha visigótica. Se não me engano, estávamos na sala dos professores do curso Universitário do Tatuapé quando eu fiz menção a Santo Isidoro de Sevilha ou à História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia. Muitas conversas sacras e profanas se seguiram nas famosas “pizzas burlescas” no apartamento dele, ao pé da Anunciação de Fra Angelico. 

A primeira vez que Ezequiel de Olaso falou comigo foi no Colóquio sobre Ceticismo na Universidade de Santa Catarina. Ele estranhara a menção a São Tomé no título da minha apresentação e queria explicações. Dois anos depois, quando saí para o primeiro de inúmeros almoços com o Biasse e o Tércio, a conversa despencou, sabe-se lá por qual razão, sobre Santo Inácio de Loyola, o qual me vi na obrigação de defender contra os escárnios do Biasse, ao mesmo tempo em que talhava uma tenra e suculenta alcatra. 

Não me afligem, porém, as chufas dos incréus. Fui muito favorecido, no amor e na amizade, pelos santos de minha devoção e, como Santo Hilário, padroeiro dos humoristas, quero agora agradecer a graça alcançada.




Parte 1 

 Os clérigos e os historiadores 


a. Onde encontrar um santo?

Para quem é católico, a resposta é fácil: os santos estão guardados nos relicários dos altares e nas criptas das igrejas. É lugar comum entre os historiadores que lidam com o fenômeno da santidade dizer-se que um santo é um “morto de exceção”. No mundo católico, o reconhecimento canônico da santidade é sempre póstumo e muitas vezes tardio. Por isso, o santo existe na forma de relíquia e de relato – embora nem a relíquia nem o relato sejam necessariamente autênticos. 

Em 386, Ambrósio, bispo de Milão, teve uma visão em que dois mártires das primeiras perseguições contra os cristãos revelavam o lugar em que estavam enterrados. O bispo mandou que se cavasse o local e encontrou os corpos ainda bem conservados, junto a uma breve narração escrita pelo escravo que piedosamente lhes dera sepultura e registrara como eles morreram em testemunho da fé. É assim que Giacomo de Varazze, na Legenda Áurea, conta a história dos irmãos mártires Gervásio e Protásio, cujos esqueletos admiramos na cripta da Basílica de Santo Ambrósio em Milão, junto aos restos mortais do célebre bispo e doutor da Igreja que os encontrou. 

foto: Ludmila Ciuffi


O medievalista André Vauchez (“O Santo” em O Homem Medieval, organizado por Jacques Le Goff) argumenta que se tratava de um momento em que, findas as perseguições com o Edito de Milão (313), os bispos se afirmavam como os intermediários entre os fiéis e as autoridades romanas, garantindo a ordem e a proteção daquela porção do povo de Deus que constituía sua clientela. Para reforçar esse papel temporal, os bispos invocavam a autoridade dos apóstolos e dos mártires dos quais se apresentavam como sucessores vivos. Era importante, portanto, colocar-se sob o patronato de um santo, cujas relíquias e relatos estivessem ligados à região em que atuava o bispo. A formação dessas fidelidades de natureza clientelista entre os fiéis e o bispo, o qual se punha sob a proteção sobrenatural de um santo que intercedia no plano celestial, responde pelo aspecto localista que a santidade tem para os católicos. Todo santo é um patrono que tem seus clientes que conhece bem: os homens e mulheres de uma região, os que trabalham num certo ofício, os que sofrem de certas aflições. A devoção do fiel ao santo é uma relação pessoal e clientelista, como Machado de Assis descreveu bem no conto “Entre Santos”. Portanto, não há santos “universais” ou “genéricos”.  Tudo se passa como se a eficácia do santo dependesse da sua especialização e da sua espacialização. Todo santo é santo de um lugar, de uma profissão, de uma condição ou causa, que se justificam pelos relatos autênticos ou apócrifos de que é protagonista.


b. O que distingue um santo dos outros animais?

Ao homem ou mulher cuja santidade foi reconhecida de forma canônica se atribuem três marcas de santidade. Em primeiro lugar, o santo é dotado de virtude exemplar: em vida, ele foi perfeito no amor, na caridade, na fé, na paciência, na temperança, na castidade, na esperança. Em segundo lugar, o corpo do santo é dotado de dons milagrosos que se conservam depois da sua morte e mesmo quando já fragmentado (daí o valor das relíquias): os santos ou as suas relíquias podem curar os enfermos, controlar os elementos da natureza, fazer objetos levitarem; em terceiro lugar, o santo é um intercessor eficaz porque tem comunicação privilegiada com o domínio celestial: ele é um medianeiro entre Deus e os homens comuns.

Para os católicos de tendência mística, é a vida virtuosa e exemplar dos santos que constitui tema de meditação e de inspiração. Para a clientela de pobres e de pessoas carentes, é a combinação da intercessão eficaz e dos dons miríficos que tornam os santos patronos tão poderosos e atrativos. Deles se espera a solução dos problemas, não sermões sobre a correção dos costumes. Vauchez conta o caso de um notário do século XIII que procurou ajuda de um santo ainda vivo, o eremita que mais tarde seria canonizado como São Pedro Marrone. Ao saber que o notário era um devasso, o santo eremita começou a lhe fazer um sermão. De maneira seca e objetiva, o notário respondeu: “Tratemos daquilo que me fez vir aqui”. Diz Vauchez: “Aos olhos do requerente, a função dos santos era curar e não converter”. No fundo, o avarento que dirige sua prece a São Francisco de Sales a fim de obter a cura para sua esposa, no conto de Machado de Assis, não age de modo diferente.


c. Quantas espécies de santos existem?

No capítulo sobre “Todos os Santos” da Legenda Áurea, Giacomo de Varazze divide os santos em quatro grupos: os que foram apóstolos, os que foram mártires, os que confessaram publicamente a sua fé e as virgens.  Essa divisão reflete as concepções da Igreja a respeito da santidade no final da Idade Média, mas não dá conta da multiplicidade de situações que permite o reconhecimento da santidade.  Neste aspecto, as canonizações efetuadas pela Igreja lembram as atribuições do Prêmio Nobel de Literatura: as razões alegadas são tão vagas que ficam aquém de qualquer discussão séria. Por isso, há santos cuja existência simplesmente não podemos compreender. 

Num certo almanaque hagiográfico se lê esta narração sumária da vida de Santa Rita de Cássia, figura popularíssima no mundo católico: 

Nasceu em 1381 em Roccaporena, na Úmbria, Itália. De seu nome de batismo Margherita originou-se o nome Rita, pelo qual é conhecida no mundo católico. Um tanto contrariada, acabou fazendo o gosto dos pais: casou-se com um jovem temperamental e violento e tiveram filhos. Durante os 18 anos seguintes em que esteve casada, tudo fez para que a paz e a harmonia fossem mantidas. E à custa de muita oração conseguiu abrandar o temperamento do marido. Um dia, entretanto, Paulo Ferdinando foi assassinado e jogado è beira de uma estrada. Os dois filhos juraram vingar o pai. Impotente ante o ódio dos filhos, pediu a Deus que os levasse antes que se manchassem de sangue. Seja lá por que desígnios de Deus, suas preces foram ouvidas. Abalada pela morte do marido e dos filhos, quis recolher-se ao convento das agostinianas de Cássia, mas não foi aceita. Rezou, então, fervorosamente aos santos de sua devoção: São João Batista, Santo Agostinho e São Nicolau Tolentino.  Contam os biógrafos que estes santos arrombaram as portas do convento e a fizeram entrar. Por 14 anos, até sua morte, trouxe na testa um estigma, associando-se assim à paixão de Cristo. Morreu no Mosteiro de Cássia em 1457 e foi canonizada em 1900. 
(José Benedito Alves, Os Santos de cada dia, Edições Paulinas)

É evidente que o autor perde a paciência com a eficácia da prece da mãe pela morte de seus filhos  (“Seja lá por que desígnios de Deus, suas preces foram ouvidas”) e toma uma distância prudente do método usado pela gangue de santos protetores para facilitar a admissão de Rita na vida monástica (“Contam os biógrafos que estes santos arrombaram as portas do convento e a fizeram entrar”). Enfim é difícil entusiasmar-se com uma santidade que levou 450 anos para ser reconhecida na forma canônica numa região tão próxima ao Vaticano...  

O fato é que, mesmo para um católico disposto a crer, a diversidade dos santos coloca-os além de qualquer esforço classificatório e de qualquer critério razoável de classificação. A respeito dos esforços da Igreja Medieval em regular os processos de reconhecimento de santidade, “a vontade de controlar com minúcia e a empreitada de homogeneização não puderam resistir à pressão de uma realidade religiosa vasta e  variada demais” (Sofia Boesch Gajano, “Santidade” in Dicionário Temático do Ocidente Medieval).


d. Todas as vidas de santos são fraudes piedosas?

A medievalista Chiara Frugoni demonstrou brilhantemente como a Igreja medieval procurou conter, amansar e domesticar aquele fenômeno extraordinário que era a santidade de Francisco de Assis:

No final da vida, Francisco se sentia cada vez mais acossado e oprimido pela Igreja preocupada em normatizar e aplainar um projeto de vida cristã (praticar a pobreza e o amor evangélico) que, se fosse realmente posto em prática, teria sido revolucionário e perigoso para a própria estrutura eclesiástica. (Vida de um homem: Francisco de Assis, cap. 6)

Por meio da análise comparativa dos relatos e da iconografia, ela expôs a distância entre a santidade viva do homem Francisco e a santidade canônica produzida pela necessidade de contornar conflitos que prejudicariam a Igreja e a Ordem Franciscana. Essas intervenções eclesiásticas resultaram, entre outras coisas, na representação de um São Francisco que fala aos pássaros, num afã evangélico inofensivo e um tanto amalucado:

Gostaria agora de apontar um fato bastante estranho. Nas imagens, Francisco, que passou a vida pregando, nunca aparece diante de um público de homens e mulheres, mas apenas de pássaros (em inúmeras dessas pinturas, notamos claramente aves aquáticas, garças e cegonhas, e até aves de rapina, a demonstrarem uma clara compreensão da prédica). A ausência de uma audiência humana, substituída pela emplumada, pode ser entendida como uma autêntica censura: mostra o desígnio da Igreja em relação a um religioso muito peculiar, ainda demasiado similar a um laico. Aos laicos que, na época de Francisco, pedem para pregar, a Igreja nega categoricamente sua autorização, considerando que apenas o clero está à altura da difícil tarefa de explicar a profundidade das Sagradas Escrituras. Aliás, trata-se de um pedido muito perigoso de se fazer, facilmente caracterizado como franca manifestação de heresia. (cap. 4)

Chiara Frugoni mostrou também que as tradicionais representações de São Francisco no momento de receber os estigmas tem as marcas da intervenção dos líderes da Ordem Franciscana da geração que se seguiu à morte de Francisco. O primeiro biógrafo de Francisco, Tomás de Celano narra que os estigmas tinham sido produzidos pelo próprio corpo de Francisco depois da aparição de um serafim. Segundo São Boaventura, que se tornou líder da Ordem Franciscana, foi o próprio Cristo crucificado que apareceu a Francisco, imprimindo-lhe os estigmas “como se o selo se imprimisse na cera que o fogo derretera”. Os estigmas de Francisco não eram apenas semelhantes aos ferimentos de Cristo, eram a cópia exata desses ferimentos e, portanto, eram sinais da perfeição de Francisco.

Ao fazer com que os estigmas assumissem a marca divina, Boaventura tornou aquela perfeição inatingível: de um lado, Francisco permanecia o santo a ser venerado, ainda mais por trazer na carne as feridas de Cristo, mas de outro lado, e precisamente por essa razão, os frades não eram obrigados a imitar o fundador, a permanecerem fiéis a suas incômodas palavras, a seu projeto de vida cristã. A santidade de Francisco tinha se tornado inacessível e inimitável. Os frades, mesmo continuando a prestar uma extrema devoção a Francisco, deviam seguir outros modelos, copiar a conduta de vida de outros homens de virtudes mais simples e condescendentes. A iniciativa de Boaventura foi uma operação política ditada pela necessidade de acabar com a discórdia, mas transformou profundamente a herança espiritual de Francisco (cap. 6).

O que há de fascinante no estudo dos santos da Igreja católica é esse processo inventivo de produção de relatos e relíquias. Os corpos de Protásio e Gervásio vieram à luz por obra da arqueologia onírica do bispo Ambrósio, segundo o mesmo método que havia permitido a Santa Helena, mãe de Constantino, “descobrir” o paradeiro da Santa Cruz e o local do Santo Sepulcro. Outros santos existem até sem outro suporte que o mito. Na Legenda Áurea, lemos que as discrepâncias entre os relatos da vida de São Jorge da Capadócia levaram o Concílio de Nicéia a considerá-los apócrifos em 325. Isso nunca impediu que São Jorge fosse patrono da Inglaterra e de uma vasta e impaciente clientela de torcedores do Corinthians F. C. 

Nas regiões mais pobres do mundo católico, não cessam de surgir santos populares. Há uma demanda contínua por santos que atendam os novos deserdados da Terra. Trata-se apenas de ilusão coletiva? 

Não cabe aos historiadores dar resposta a esta pergunta. Quanto aos teólogos, eles são vezeiros nas práticas de interpretação vetadas pela boa filologia. Portanto, prefiro não os consultar.



Parte 2  

Como de costume, o filósofo mete o bedelho 



Os “mortos de exceção” foram instrumentais para a Igreja e podem ser fascinantes para o historiador, mas dizem pouco aos filósofos. A própria palavra “santo” tem má reputação, como sugerem as canonizações de “São Max Stirner” e  de “São Bruno Bauer” efetuadas por Marx em seu ataque à ideologia alemã.  É que tanto a santidade canônica, inventada e administrada pela elite eclesiástica, quanto as santidades proclamadas pelas populações pobres que demandam milagres repugnam ao filósofo pelo que tem de falso, incerto, enganoso e ilusório. Além disso, a história da filosofia é marcada pelas tentativas de elaboração de uma moral isenta de elementos religiosos ou sobrenaturais. Isso faz com que os santos apareçam aberrações religiosas  destituídas de qualquer papel normativo numa ética laica. 

Acredito, porém, que os santos não precisam ser as criaturas semi-míticas que certas comunidades cristãs veneram. Devemos reconhecer que há formas não-religiosas de santidade. Isso não significa negar os santos reconhecidos ao longo dos séculos pela Igreja e pelos fiéis, mas reformular as condições de sua santidade de maneira mais abrangente e laica. Dado o estado incipiente em que se encontra meu pensamento sobre o assunto, só posso oferecer uma série de proposições avulsas, das quais a ordem das razões ainda me escapa.


Proposição I
O santo não é uma “bela alma” pacífica e satisfeita. Os santos são tomados por impulsos violentos e convulsivos. “Sangue! Sangue! Sangue!” exclamava Catarina de Siena pouco antes de morrer (Lodovico Ferretti, Santa Caterina di Siena, Edizioni Cantagalli).

Um santo precisa de inimigos contra os quais esses impulsos possam ser dirigidos: todo São Jorge precisa de um dragão.  A respeito de São Francisco, admirado pela sua suposta mansidão, Chiara Frugoni relata:

Francisco sempre manifestou perante o dinheiro, mesmo a moedinha de ínfimo valor, uma reação de repugnância quase doentia, de ex-comerciante consciente dos estragos decorrentes da posse monetária, que extinguem todo o desejo de caridade em favor da cobiça e da avareza. Não hesitava em punir os companheiros pela menor infração a esse respeito; era um homem de paixões fortes e, portanto, capaz de manifestar grande cólera. Certo dia, um devoto entrou na igrejinha da Porciúncula e deixou dinheiro perto do crucifixo. Um frade, ao passar, recolheu e jogou imediatamente o dinheiro no parapeito da janela. Francisco repreendeu asperamente o frade, obrigando-o a pegá-las e mantê-las na boca até ir depositá-las no esterco de um asno. (Vida de um homem: Francisco de Assis, cap.3)


Proposição II
O santo experimenta de maneira radical as contradições e limites da condição humana: a dor e o gozo, o vazio e a plenitude, a fome e a saciedade, o desprezo e a humildade, o orgulho e a modéstia, a humilhação e a exaltação, a carência e a abundância. 


Proposição III
O santo radicaliza a experiência humana porque faz um dom desmedido de si mesmo. Portanto, o santo não é comedido, prudente, moderado. O santo se opõe à esfera da moral e da economia da escassez que pauta o modo de vida cotidiano da humanidade. Suas ações se inscrevem no âmbito daquilo que George Bataille chamava de “economia geral”, a economia do excesso que se manifesta na prática do dom gratuito, das grandes despesas sem contrapartida (como no ritual do potlatch praticado por algumas tribos indígenas da América do Norte) e do sacrifício. O santo busca o incomensurável: ele dá um salto infinito, como dizia Kierkegaard do homem que tem fé.

Proposição IV
Ao radicalizar a experiência humana, o santo se torna inspirador e digno de imitação pelo desafio proposto, mas ao mesmo tempo a singularidade e a temeridade de seu percurso o tornam inimitável. É impossível e perigoso querer ser Francisco de Assis, Catarina de Siena, Inácio de Loyola ou Teresa d´Ávila. O caminho da imitação tem dois destinos possíveis: o surgimento de outro santo singular e inimitável ou a destruição de um ser humano.


Proposição V
Por causa da singularidade irredutível da experiência que cada santo viveu, não há nem pode haver regra que delimite a santidade. Não há conceito nem cânone de santidade. Há apenas a multidão de santos ligados mais por coincidências do que por semelhanças de família. 


Proposição VI
Diante da exemplaridade inimitável dos santos, a reverência que lhes é devida é a admiração pelo desafio que fizeram à moral e à economia da escassez, cujas normas permeiam o conjunto da experiência cotidiana dos seres humanos quase em sua totalidade. Os santos testemunham a existência de algo que a religião chama de Deus, mas os pensadores laicos podem chamar de ideal de abundância. 



Lud, 

Um ano antes de morrer, um famoso jazzista afro-americano declarou que entre seus planos estava o tornar-se um santo. Reconhecendo este legítimo desejo de santidade, alguns dos seus fãs criaram uma igreja dedicada a Saint John Coltrane

É claro que havia, da parte dos fãs, uma legítima demanda de santidade, mas vejo nisso também um tributo à economia da abundância de que o disco “A Love Supreme” é um exemplo musical poderoso, e que, como devoto, quero continuar comungando contigo.

Pelo aniversário de 27 anos daquele dia sagrado em que nos vimos pela primeira vez, um beijo desmedido. 





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