terça-feira, 19 de março de 2013

Figuras do Negativo #2






Ensaio sobre The Call of Cthulhu



Escrito em 1926, o conto The Call of Cthulhu, de H.P. Lovecraft, narra as etapas de uma investigação que conduz o narrador a uma descoberta terrível que ameaça não apenas a sua vida, mas a própria ordem moral do mundo. 

Entre os documentos do falecido Professor Angell, especialista em línguas semíticas, o narrador encontrara uma placa de argila de feitura recente, coberta de hieróglifos estranhos, que trazia a figura de uma criatura monstruosa. Tratava-se de um trabalho de Henry Wilcox, um jovem artista local que havia procurado o Professor em busca de esclarecimento sobre a escrita que, em seus sonhos, aparecia acompanhada de um murmúrio incompreensível que repetia as palavras Cthulhu fhtagn e R’lyeh. O velho especialista se interessou pelo caso e descobriu que várias pessoas haviam tido sonhos semelhantes nos dias que se seguiram a um tremor de terra na região. 

O interesse do Professor Angell pelos sonhos bizarros do jovem artista era justificado. Vinte anos antes, quando participava de um congresso de arqueologia, os estudiosos presentes foram procurados por um investigador de polícia de New Orleans. O inspetor Legrasse contou que desbaratara um culto satânico praticado nos pântanos da Luisiana. Quando os policiais efetuaram a prisão dos satanistas, encontraram uma estatueta que representava uma criatura grotesca, com cabeça de lula e corpo de dragão. A base estava coberta de sinais que pareciam hieróglifos, razão pela qual o inspetor Legrasse queria consultar os especialistas do congresso de arqueologia. Nenhum deles, porém, sabia ler aqueles sinais ou estimar a proveniência ou a idade da estatueta, embora certamente fosse antiquíssima. Apenas o antropólogo William Webb se lembrou de ter visto algo parecido quando, numa viagem de pesquisa à Groenlândia, encontrara alguns esquimós que praticavam um ritual especialmente repugnante no qual repetiam o mesmo mantra entoado pelos adoradores do culto na Luisiana: Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn.

O Inspetor Legrasse conseguira saber algo sobre o culto dos pântanos graças às declarações de um dos adoradores presos.  O velho Castro contava que, num passado remotíssimo, chegou à Terra uma civilização vinda das estrelas. Eram os Grandes Anciães que fundaram a cidade de R’lyeh na qual Cthulhu era o sumo sacerdote.  Esses Grandes Anciães estavam agora dormindo e sua cidade jazia no fundo do oceano, mas Cthulhu continuava a comunicar-se com os homens através de sonhos. No momento certo, ele voltaria e os homens passariam a viver além do bem e do mal, matando livremente e subvertendo todas as regras. A frase recitada pelos seus adoradores dizia: “Na sua casa em R’lyeh, Cthulhu morto espera dormindo.”

A leitura das anotações do Professor Angell convenceu o narrador de que estava diante de um assunto digno de investigação científica, que lhe daria notoriedade no campo da antropologia.  Disposto a fazer alguma grande descoberta, o narrador entrevistou Henry Wilcox e visitou o Inspetor Legrasse, mas os resultados não avançaram muito. Quando já desistia da pesquisa, sua atenção foi casualmente atraída pelo fragmento de um jornal de Sidney que estampava a fotografia de uma estatueta grotesca acompanhada da notícia de que, num iate à deriva no Pacífico, haviam sido recolhidos um marinheiro norueguês semi-demente e o ídolo de um monstro com cabeça de lula.

Movido pela curiosidade, o narrador viajou para a Austrália, mas lá soube que o marinheiro Gustav Johansen, já recuperado, voltara para a Noruega. O narrador seguiu para Oslo. A esposa de Johansen lhe comunicou que o marido morrera recentemente, mas permitiu que o narrador levasse consigo as anotações privadas que ele fizera. Como o narrador descobriu, tratava-se de um depoimento muito mais esclarecedor do que as vagas informações fornecidas ao almirantado de Sidney.

Segundo Gustav Johansen, seu barco foi atacado pela tripulação enlouquecida de um iate malaio. Atingido, o barco de Johansen afundou, mas seus companheiros conseguiram tomar o iate e mataram todos os tripulantes numa luta violenta. Sob o comando de Johansen, a viagem prosseguiu até avistarem uma ilha não mapeada, que parecia ter emergido do leito do mar em consequência de um terremoto recente. A ilha estava coberta de construções antigas cuja geometria desafiava a compreensão humana. Ao desembarcarem, os marinheiros foram surpreendidos por um monstro gigantesco, de consistência gelatinosa e cheiro insuportável. Era Cthulhu que saía de seu sono.  Os companheiros de Johansen morreram, mas ele conseguiu voltar ao iate. Ao ver que era perseguido, investiu o barco contra a criatura com cabeça de lula. O monstro gelatinoso explodiu, mas seus restos se juntavam novamente à medida que o barco se afastava. Johansen foi resgatado. A ilha não foi vista novamente: aparentemente descera mais uma vez ao leito do oceano.

O narrador lamenta profundamente ter tomado conhecimento de todo esse horror. Muitos daqueles que souberam da existência de Cthulhu morreram. Talvez é o que lhe tenha acontecido, uma vez que, no começo do conto, os leitores são informados que a narração foi achada entre os papeis do falecido Francis Wayland Thurston, de Boston.


1.
Certos leitores desejam que os livros lhes forneçam uma mitologia cujos elementos canônicos possam ser enumerados com facilidade. Para tais leitores, o prazer da leitura está no reconhecimento e reafirmação dos elementos canônicos. Como as crianças que não se cansam de ouvir certas histórias que já sabem de cor, esses leitores jamais se cansam das aventuras de Ulisses, das desventuras do Quixote, das deduções de Sherlock Holmes, das andanças de Leopold Bloom. A matéria narrada constitui um mito que deve ser rememorado e comemorado, isto é, recordado e partilhado como se tivesse a mesma densidade das realidades vivas. A capacidade de experimentar essa “densidade” passa a ser vista como marca de pertencimento a um grupo. Os joycianos que celebram o Bloom’s Day ou os admiradores de Conan Doyle que procuram a casa (fictícia) de Holmes na Baker Street celebram seus mitos, ao mesmo tempo em que comemoram seu pertencimento a um grupo eleito.  Essa demanda de mitos comemoráveis dentro de uma comunidade restrita explica o entusiasmo duradouro pelos super-heróis, pelas sagas espaciais de Star Wars e Star Trek ou por certas narrativas fantásticas, como The Call of Cthulhu.

Esse modo de leitura é pautado pelo dever de fidelidade ao relato e pela intolerância quanto aos desvios. Como a criança que quer ouvir pela enésima vez a história dos três porquinhos, o fã não aceita versões diferentes. Para ele, há um relato canônico cuja verdade deve ser preservada da contaminação de elementos apócrifos. A leitura de fã é irrepreensível do ponto de vista do cuidado filológico: levantamento de fontes, cotejo das versões, escolha da versão canônica. O resultado desse labor são as grandes compilações enciclopédicas como a Memory Alpha que são objeto de consulta, estudo e deleite dos fãs de Star Trek.

A limitação mais óbvia da leitura de fã é o seu dogmatismo e sua timidez interpretativa. Trata-se de uma leitura que se limita a percorrer os marcos reconhecíveis para... confirmar mais uma vez sua posição no cânone. Não se trata da investigação de um terreno novo, mas da ronda rotineira por ruas bem conhecidas. Os fãs são os obsessivos-compulsivos do mundo da leitura: eles trilham circuitos fechados. Por isso, acredito que o molde de minha leitura não será do seu agrado.



2.

O conto de Lovecraft é dividido em três partes. Na primeira parte, tomamos conhecimento do conteúdo das anotações do Professor Angell a propósito dos sonhos estranhos de Henry Wilcox; na segunda, acompanhamos as descobertas do Inspetor Legrasse sobre o culto dos pântanos; na terceira, finalmente temos o depoimento de uma testemunha ocular do próprio monstro. 

Na esteira da pesquisa iniciada pelo Professor Angell, o trabalho do narrador consiste em coletar indícios e correlacioná-los para remontar à causa que produziu os efeitos a que os indícios se referem. É preciso vasculhar uma série desconexa de declarações e eventos em busca de evidências que permitam ordenar os acontecimentos. A cada etapa, o perímetro geográfico da investigação se amplia, as evidências se reforçam pela acumulação e o seu sentido se torna cada vez mais claro.

No entanto, o próprio narrador jamais vê ou ouve o monstro, nem sequer em sonhos. Todo o conhecimento que ele adquire vem da massa de evidências fornecidas pela investigação ou pelas experiências diretas de outrem: as anotações do Professor Angell, os sonhos de Henry Wilcox, o depoimento que o velho Castro fez ao Inspetor Legrasse, os rituais que Legrasse e o Webb presenciaram, as estatuetas guardadas pela polícia de New Orleans e pelo almirantado de Sidney, uma massa de notícias de jornal sobre eventos disparatados em vários lugares do mundo e, principalmente, o testemunho escrito de Gustav Johansen – o único que viu Cthulhu.

Tudo o que o narrador tem é Ciência, isto é, conhecimento obtido de maneira metódica e racional, por oposição à intuição do artista Wilcox, ao saber oral e “folclórico” do velho Castro, ao testemunho direto, mas emocionalmente comprometido de Johansen. 

Que o narrador tenha sido capaz de juntar as peças e vislumbrar o conjunto mostra bem o otimismo confiante de Lovecraft no poder da ciência e no seu progresso linear e acumulativo. Embora o conto tenha bastante blábláblá a respeito do caráter indevassável dos mistérios do universo (full of the one primal mystery through which not even thought can pass), o narrador não tem muita dificuldade em descobrir o que está acontecendo.  A realidade está ao alcance da ciência: ela consiste num conjunto de fatos que precisam ser correlacionados: embora não saibamos que figura o quebra-cabeça vai formar, é garantido que todas as peças vão se encaixar num quadro completo. Os fatos podem ser intrigantes tomados isoladamente, o conjunto deles pode causar horror, mas o sucesso do método científico que permite enxergar a totalidade não é questionado. 

A ciência é o caminho para a Verdade, mas, no conto, a Verdade é que a ordem humana é apenas uma crosta frágil e recente que vai ser varrida por forças primordiais muito mais poderosas, que podem reemergir de seu torpor a qualquer momento. É nisso que está o chamado “horror cósmico” do conto. A Verdade que é descoberta pela ciência se torna fonte de desespero e de desejo de anulação do conhecimento adquirido. Por sorte, pensa o narrador, a humanidade não é dotada para a ciência, isto é, a maioria das pessoas não tem capacidade de fazer correlações de modo metódico e racional. Por sorte também, as ciências ainda não foram unificadas para fornecer uma visão totalizante do universo. A ignorância é uma benção que poupa o mundo do desespero.

The most merciful thing in the world, I think, is the inability of the human mind to correlate all its contents. We live on a placid island of ignorance in the midst of black seas of infinity, and it was not meant that we should voyage far. The sciences, each straining in its own direction, have hitherto harmed us little; but some day the piecing together of dissociated knowledge will open up such terrifying vistas of reality, and of our frightful position therein, that we shall either go mad from the revelation or flee from the deadly light into the peace and safety of a new dark age.

O narrador experimenta de modo agudo a contradição entre a capacidade da ciência em decifrar a realidade e a impotência e ignorância geral da humanidade em relação à catástrofe iminente e inevitável. Portanto, no plano das considerações filosóficas, o conto retomaria alguns temas pascalianos: a vertigem do infinito e a condição do homem como caniço pensante, que tenta entender o universo no momento mesmo em que o universo o destrói.

Tenho a impressão, porém, de que a discussão sobre a ciência e a ignorância humana encobre questões bem mais interessantes no conto de Lovecraft.


3.

Uma das infelicidades quanto às interpretações do The Call of Cthulhu é que, tão logo afastamo-nos dos fãs empolgados com o ciclo mitológico dos Grandes Anciães  e com a posição exata da cidade de R’lyeh, somos conduzidos a certas leituras acadêmicas muito preocupadas em render tributo póstumo ao gênio de de H.P. Lovecraft. Esse tipo de leitura, praticado por S.T. Joshi, o premiado biógrafo do autor, tende a buscar a chave para a compreensão crítica dos contos de Lovecraft nos comentários que ele fez em sua vasta correspondência e em certos aspectos de sua existência. Um dos problemas dessa abordagem é aceitar a suposição de que as obras resultem das intenções que o artista expressou, muitas vezes a posteriori, através de cartas, de depoimentos, de referências autobiográficas. A obra criada seria iluminada pelo conhecimento da mente do criador. 

Estudiosos como Joshi compartilham a ideia bastante otimista de que podemos ter acesso à realidade (e assim entender o sentido das obras) através do acúmulo de evidências sobre o autor.  Para Joshi, as declarações de Lovecraft são esclarecedoras por si mesmas. Por exemplo, no ensaio “Notes on Writing Weird Fiction” (1933), Lovecraft afirma:

I choose weird stories because they suit my inclinations best – one of my strongest and most persistent wishes being to achieve momentarily, the illusion of some strange suspension or violation of the galling limitations of time, space, and natural law, which for ever imprison us and frustrate our curiosity about the infinite cosmic spaces beyond the radius of our sight and analysis. 

S.T. Joshi comenta:

It is important not to be led astray here. Lovecraft is not denouncing his materialism by seeking an imaginative escape from it; indeed, it is precisely because he believes that “time, space, and natural law” are uniform, and that the human mind cannot escape defeat or confound them, that he seeks an imaginative escape from them. (The Call of Cthulhu and other weird stories, Introduction, Penguin Books)

Joshi toma as declarações de Lovecraft pelo seu valor de face, como se elas se bastassem. Daí a recorrência de frases como “this statement is sufficient to account for the outré aspect of many of his alien creatures...” (idem, ibidem).

Aparentemente jamais passou pela cabeça de Joshi que uma obra literária ou plástica é mais a forma consolidada de um conjunto de tensões mudas do que a realização de uma intenção explicitável. 



4.

Numa carta a Samuel Loveman, Lovecraft explica que o elemento imaginativo de seus contos não deveria estar em contradição com o conhecimento científico; ele deveria ser uma espécie de “suplemento” imaginativo nas franjas da ciência:

The time has come when the normal revolt against time, space, and matter must assume a form of a form not overtly incompatible with what is known of reality – when it must be gratified by images forming supplements rather than contradictions of the visible and mensurable universe. And what, if not a form of non-supernatural cosmic art, is to pacify this sense of revolt – as well as gratify the cognate sense of curiosity? (citado por Joshi)

O que é interessante na declaração de Lovecraft não é tanto o respeito demonstrado pela ciência e a consequente necessidade de não contradizê-la. O que é interessante é a ideia de que a ficção fantástica deve fornecer gratificação para a “revolta normal contra o tempo, o espaço e a matéria” de uma forma que não seja “abertamente” anti-científica. 

Lovecraft está falando de usar a literatura para obter gratificações veladas para um sentimento de revolta contra a estrutura mesma da realidade (espaço, tempo e matéria), revolta que ele julga ser compartilhada por muitos seres humanos, a ponto de qualificá-la como “normal”. 

A imagem usual de H.P. Lovecraft é a de um amador curioso da astronomia, com um interesse enciclopédico pelos resultados das ciências.  Em The Call of Cthulhu, essa imagem parece explicar o discurso científico convencionalmente materialista e cético do narrador. No entanto, é difícil conciliar esse Lovecraft cientificista com o homem que escreveu: 

The most poignant sensations of my existence are those of 1896, when I discovered the Hellenic world, and of 1902, when I discovered the myriad suns and worlds of infinite space. Sometimes I think the latter event the greater, for the grandeur of that growing conception of the universe still excites a thrill hardly to be duplicated (citado por Joshi).

A astronomia aí não é a explicação físico-matemática do movimento dos corpos celestes, mas a contemplação estarrecida do infinito. Trata-se menos de espírito científico do que de um obscuro sentimento religioso. O que é a “revolta normal contra o tempo, o espaço e a matéria” senão o desejo de superar a finitude de nossa condição em busca de uma fusão com o infinito? Essa demanda de transcendência é justamente uma das características da religião e só pode ser expressa de maneira mítica ou alusiva.

Acredito que a popularidade de um conto como The Call of Cthulhu venha justamente do fato de que o cientificismo e as breves digressões filosóficas do narrador não conseguem encobrir o fundo mítico-religioso de origem cristã que permeia a narrativa.

O conto é literalmente um “apocalipse”, isto é, uma revelação. O narrador é um relutante São João em Patmos que, aos poucos, vai tomando notícia do horror à medida que os selos são rompidos (o primeiro era o fecho da caixa onde o Professor Angell guardou suas anotações). Há terremotos, aberrações, visões perturbadoras. Um  adorador anuncia que a besta vai inaugurar uma era além do bem e do mal.  E vemos a besta emergir das profundezas do mar.

Cthulhu é apenas outro nome do velho Satã, o adversário primordial mergulhado nas profundezas. No conto, várias expressões associam os seus adoradores ao satanismo ("a dark cult totally unknown to them, and infinitely more diabolic than even the blackest of the African voodoo circles";  “a curious form of devil-worship”; “diabolist Esquimaux”). Todo desespero do narrador vem da descoberta desse Mal ao qual nenhum Deus bondoso e justo poderá impor limites.  Este seria o verdadeiro “horror cósmico” em Lovecraft: Deus está morto, mas o Diabo não. 

I have looked upon all that the universe has to hold of horror, and even the skies of spring and the flowers of summer must ever afterward be poison to me…Loathsomeness waits and dreams in the deep, and decay spreads over the tottering cities of men.

A transcendência subsiste, mas de forma degradada, decaída,  como horror, perversidade e iminência de uma catástrofe. Assim é que Lovecraft gratifica de maneira velada uma fé religiosa que não tem mais objeto: imaginando um horror que habitaria clandestinamente as franjas da realidade conhecida. Um horror cuja descoberta gera o desejo de esquecimento, de ignorância e até de morte.

Death would be a boon if only it could blot out the memories.



5.

The Call of Cthulhu, apesar de sua pletora de referências geográficas e dos seus infinitos éons, não vai muito além da consciência bastante provinciana do narrador. Que se observe a maneira como ele descreve o jovem artista Henry Wilcox:

The first half of the principal manuscript told a very peculiar tale. It appears that on March 1st, 1925, a thin, dark young man of neurotic and excited aspect had called upon Professor Angell bearing the singular clay bas-relief, which was then exceedingly damp and fresh. His card bore the name of Henry Anthony Wilcox, and my uncle had recognised him as the youngest son of an excellent family slightly known to him, who had latterly been studying sculpture at the Rhode Island School of Design and living alone at the Fleur-de-Lys Building near that institution. Wilcox was a precocious youth of known genius but great eccentricity, and had from childhood excited attention through the strange stories and odd dreams he was in the habit of relating. He called himself “psychically hypersensitive”, but the staid folk of the ancient commercial city dismissed him as merely “queer”. Never mingling much with his kind, he had dropped gradually from social visibility, and was now known only to a small group of aesthetes from other towns. Even the Providence Art Club, anxious to preserve its conservatism, had found him quite hopeless.

Um rapaz de “excelente família” (com tudo o que isso significa numa pequena cidade), “precoce”, “excêntrico”, “hiper-sensível”, é desprezado pela academia local como caso perdido e tido como "esquisito" pela sociedade. Em outras palavras, trata-se da crônica da proscrição de um jovem supostamente homossexual, expressa em termos que ainda são correntes em certos meios sociais  conservadores.

Como conciliar o “horror cósmico” do conto com a escala provinciana e mesquinha de trechos como este? 

E o que fazer da aversão do narrador às vanguardas modernistas?

for although the vagaries of cubism and futurism are many and wild, they do not often reproduce that cryptic regularity which lurks in prehistoric writing.

though its impressionistic execution forbade a very clear idea of its nature.

Without knowing what futurism is like, Johansen achieved something very close to it when he spoke of the city.

E o preconceito racial do narrador?

the prisoners all proved to be men of a very low, mixed-blooded, and mentally aberrant type. Most were seamen, and a sprinkling of negroes and mulattoes, largely West Indians or Brava Portuguese from the Cape Verde Islands, gave a colouring of voodooism to the heterogeneous cult.

E a ambição acadêmica candidamente confessada?

for I felt sure that I was on the track of a very real, very secret, and very ancient religion whose discovery would make me an anthropologist of note. 

E a obstinação materialista com que descarta conclusões importantes que contrariam seu dogma?

My attitude was still one of absolute materialism, as I wish it still were, and I discounted with almost inexplicable perversity the coincidence of the dream notes and odd cuttings collected by Professor Angell.

Nem mesmo a revelação da existência de uma força primeva e devastadora que anulará a ordem humana é capaz de fazer o narrador deixar de lado suas preocupações com a crônica mundana da pequena Providence e seus preconceitos de raça e de classe social. 

Se, de um lado, a escala cósmica do conto é uma forma decaída de transcendência (o Mal Supremo não tem a contrapartida do Bem Supremo), também é uma capa que apenas recobre o provincianismo bastante tacanho do narrador. As referências enciclopédicas, a amplitude geográfica dos eventos e dos deslocamentos do narrador em nada alteram a sua condição de homem branco, professor em Boston, com opiniões conservadoras a respeito da arte e da sociedade. 

Mesmo a literatura de horror cósmico depende da existência desses solteirões com recursos para viajar a qualquer lugar e a qualquer momento. A possibilidade de experimentar o horror latente, o horror por antecipação, o horror como destino entrevisto constitui o sinal do privilégio social dos homens que dispõem de ócio. Por isso, a escala cósmica da literatura de Lovecraft não chega a ultrapassar as barreiras dos conflitos de classe e de raça na Nova Inglaterra da década de 1920 que marcam a consciência do narrador:

The professor had been stricken whilst returning from the Newport boat; falling suddenly, as witnesses said, after having been jostled by a nautical-looking negro who had come from one of the queer dark courts on the precipitous hillside which formed a short cut from the waterfront to the deceased’s home in Williams Street.

Quem deseja a volta de Cthulhu? O lumpesinato, os párias, os negros, os mestiços, os esquimós mais repulsivos, os malaios: a escória que se reúne em torno de um ídolo grotesco para cantar uma cacofonia incompreensível. Todos aqueles que querem subverter a boa ordem mantida pelas excelentes famílias brancas de Providence. 



6.
Lovecraft disse que os contos fantásticos deveriam constituir um suplemento e não uma contradição da realidade conhecida. Conforme indiquei, isso não significa que a literatura de Lovecraft se desenvolva às expensas da ciência (há apenas um cientificismo verbal nas suas narrativas e um bocado de divertissement enciclopédico). Acredito que seria mais correto dizer que a ficção fantástica de Lovecraft procura suprir uma necessidade de transcendência, pelo que se aproxima mais da religião e do mito do que da ciência.

Todavia, do ponto de vista estilístico, a prosa de Lovecraft funciona de fato como suplemento da realidade.  O escritor trata de qualificar o real, suplementando-o através de adjetivos. Em The Call of Cthulhu, a adjetivação é o recurso estilístico básico que suporta e suscita a experiência do horror.

Ugly roots and malignant hanging nooses of Spanish moss beset them, and now and then a pile of dank stones or fragment of a rotting wall intensified by its hint of morbid habitation a depression which every malformed tree and every fungous islet combined to create.

O recurso da adjetivação permite revestir a realidade com uma roupagem estranha, a qual - supostamente - não deveria alterar o aspecto "mensurável" das coisas. Mas, ao invés de reforçar o caráter real do mundo, o horror cósmico se torna a des-realização mais extrema: nada do que acontece ganha substância, tudo é apenas latência; as coisas se esgotam em seus adjetivos; os acontecimentos se dissolvem deixando apenas traços tênues. Os hieróglifos continuaram indecifrados e as estatuetas, cuidadosamente guardadas. Os sonhos vieram e se foram. A cidade de R’lyeh emergiu e depois submergiu. Quem viu Cthulhu ou soube da sua existência morreu. O mundo descrito por Lovecraft parece ter a mesma consistência gelatinosa do corpo de Cthulhu. 

Talvez o aspecto mais negativo da literatura de Lovecraft seja a sua incapacidade de experimentar a imanência do real. É isso que o leva a buscar o “suplemento” de uma transcendência abastardada, na forma de um maniqueísmo mutilado, para gratificar a “revolta normal contra o tempo, o espaço e a matéria”.

Lovecraft imaginava uma espécie de Providência negativa, ao mesmo tempo em que se apegava a todos os provincianos de sua Providence natal. 

Uma não existiria sem a outra.





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