quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A claraboia e o holofote #20





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


A Comuna de Paris (parte 2)




1. O embaraço dos historiadores


A Comuna foi efêmera; suas realizações, poucas e o massacre final obliterou tudo o mais. No entanto, ela desafia qualquer esforço de neutralidade e revolve as paixões políticas da mesma maneira que os acontecimentos e personagens do 1793 francês.

O assunto é embaraçoso principalmente para os historiadores que trabalham com sínteses de amplo alcance, pois não é possível ignorar a Comuna, dada a poderosa memória que ela gerou, mas é muito difícil inseri-la nos processos que moldaram a França, a Europa, o mundo e o século. 

Uma passagem de Robert Schnerb (1900-1962), historiador afinado com os métodos quantitativos da escola dos Annales e com a melhor historiografia política francesa - a de Albert Mathiez e de George Lefrebvre -, constitui um exemplo de como "neutralizar" um evento através da perspectiva histórica. No alentado volume que escreveu sobre o século XIX para a História Geral das Civilizações, dirigida por Maurice Crouzet, Schnerb resume num breve parágrafo o que foi a Comuna. As poucas palavras com que o historiador se despachou do assunto testemunham não apenas que a historiografia francesa de meados do século XX recusava cada vez mais os eventos em proveito das estruturas (fazendo desaparecer o horizonte revolucionário e sua miríade de incidentes), mas também sinalizam a tentativa de esconjurar o caráter irruptivo e ativo da Comuna: ela seria somente uma reação em que a espontaneidade popular se combinou com o programa da Primeira Internacional num momento de desespero:


A Comuna? Um levante espontâneo de citadinos exasperados com os sofrimentos de um longo assédio, o espetáculo da derrota e da capitulação e a vitória eleitoral de notáveis “rurais”. Nem por isso deixa de assumir o aspecto do poder proletário: poder precário, é verdade, bloqueado numa grande cidade isolada e no extremo de seus recursos, mas que, a despeito de suas divisões, adota a bandeira vermelha, decreta a separação das Igrejas e do Estado, abole o trabalho noturno nas padarias, encoraja a organização de “associações solidárias de capital coletivo inalienável”, propõe um programa federalista e internacionalista cuja inspiração as duas tendências principais da Internacional podem reivindicar. Esmagada após um combate ainda mais atroz do que em 1848, tem uma repercussão profunda. Mas sua derrota acelera a ruína da Primeira Internacional e Thiers extrai daí o corolário: “Não se fala mais do socialismo e se faz bem. Estamos livres dele.”


(Robert Schnerb, O século XIX O apogeu da Civilização Europeia, História Geral das Civilizações, dirigida por Maurice Crouzet, volume 13, Difel, 1958 p. 259)


Se as sínteses gerais podem reduzir a Comuna a um parêntese histórico, isso não é permitido àqueles que se dedicam a estudar Paris, os primeiros anos da Terceira República ou os movimentos revolucionários europeus do século XIX. Nesse caso, a neutralidade é impossível pois o alinhamento político do historiador é um componente evidente de sua abordagem. 


Alfred Fierro (nascido em 1941), grande especialista na história de Paris, sempre se dedicou aos  documentos antigos e aos arquivos que os preservam. É bastante compreensível que, apaixonado pela organização e pela continuidade, Fierro se filie ao ponto de vista conservador segundo o qual a Comuna foi tão-somente espírito de facção, insensatez anárquica e destruição criminosa:


Entre os oitenta e dois eleitos, a Internacional dispunha de trinta e dois representantes, depois quarenta e dois por causa das eleições complementares. Ela domina a Comuna, mas está dividida em blanquistas, proudhonianos, “jacobinos”, republicanos românticos inclassificáveis e exaltados como Flourens, Delescluze, Pyat. Os imbecis (Félix Pyat) estão ao lado dos iluminados (Babick, “filho de Deus”, adepto da religião “fusionista” que reunia hinduísmo, islamismo e cristianismo), dos maníacos perigosos (Rigault) e dos loucos mansos (Allix, inventor de um sistema telegráfico baseado na cópula dos caracóis). Esta Comuna heteróclita vai se dilacerar vorazmente e as querelas pessoais irão sobreviver à derrota.

Os conflitos permanentes entre o Comitê Central e a Comuna teriam bastado para paralisar sua ação mesmo se seus membros tivessem sido competentes. (...) A apocalíptica “semana sangrenta” é o resultado lógico dessa total incúria. A execução pelos communards de uma centena de reféns, de clérigos, dos quais sobretudo o arcebispo Monsenhor Darboy, o incêndio, pelas pétroleuses, do Palácio das Tulherias, do ministério das Finanças, da prefeitura de polícia, do Hôtel de Ville, da Assistência Pública, dos Arquivos da Cidade e do Departamento, da Direção de Artilharia, do Conselho de Estado  e do Tribunal de Contas (quai d’Orsay), da manufatura dos Gobelins, dos entrepostos e docas de La Villete etc, os massacres perpetrados pelos soldados de Versalhes, tudo isto constitui o resultado e a última, mas desastrosa, manifestação do romantismo revolucionário da pequena burguesia francesa dos quais os últimos representantes são Victor Hugo e Jules Vallès. Este pensamento confuso e trapalhão que reinou na França de 1815 a 1871 se encarna na Comuna, a respeito da qual Camille Pelletan, socialista que testemunhou os acontecimentos, pôde dizer: "Ficaríamos muito embaraçados se tentássemos dizer a quem Paris obedeceu nos meses de abril e de maio de 1871”.

(Alfred Fierro, Histoire et Dictionnaire de Paris, Robert Lafont, 2001 pp. 203-204)


A esquerda comunista - desde o próprio Marx - costuma avançar rapidamente para o necrológio da Comuna, tida, no geral, como uma experiência prematura e equivocada, mas da qual se podem extrair lições preciosas para as futuras revoluções sociais. A propósito disso, que se leiam as palavras do historiador marxista Eric Hobsbawn (1917-2012) na sua conhecida síntese histórica do longo século XIX:


Como tantas coisas na história revolucionária do período, a Comuna de Paris foi importante menos pelo que realizou do que pelo que antecipou; ela foi mais formidável como símbolo do que como fato. Sua história real foi recoberta pelo mito extremamente poderoso que ela gerou na própria França e (por meio de Marx) no movimento socialista internacional; um mito que reverbera até os dias de hoje na República Popular de China. Ela foi extraordinária, heroica, dramática e trágica, mas em termos fatuais não passou de um efêmero (e malfadado, na opinião dos mais sérios observadores) governo insurrecional dos trabalhadores numa única cidade, cuja maior realização foi a de ser realmente um governo, mesmo que tenha durado menos de dois meses. Lenin, depois de Outubro de 1917, contaria os dias até o momento em que poderia dizer em triunfo: nós duramos mais do que a Comuna. Contudo os historiadores deveriam resistir à tentação de diminui-la retrospectivamente. Se ela não ameaçou seriamente a ordem burguesa, causou pavor pela sua mera existência. 
(...)
Quem sabe quantos communards foram assassinados durante a luta? Milhares foram massacrados depois da luta: o governo de Versalhes admitiu 17000, mas esse número pode ser no máximo metade da verdade. Mais de 43000 foram feitos prisioneiros, 10000 sentenciados, dos quais quase a metade foi mandada para o exílio penal na Nova Caledônia, o resto para a prisão. Esta foi a vingança das “pessoas respeitáveis”. Daí por diante um rio de sangue correu entre os trabalhadores de Paris e seus superiores. Também a partir daí os revolucionários sociais aprenderam o que os espera caso não consigam manter o poder.

(E.J. Hobsbawn, The Age of Capital 1848-1875, Abacus, 1977  pp. 200-202)

O que é comum aos historiadores, não importa a sua cor política, é o seu desconforto diante da Comuna de Paris. Esse desconforto se expressa em termos que sempre  a situam fora do cânone dos processos históricos que moldaram o século XIX e parte do século XX, como a consolidação da França republicana, o avanço do movimento operário, o crescimento da social-democracia ou a escalada imperialista e armamentista das potências europeias.

A Comuna é vista como ponto final desastroso do arco revolucionário jacobino-romântico-comunista ou como antecipação desastrosa do soviete. De qualquer modo, é o desastre que prevalece: o amontoado de mortos – não importa o seu número exato – constitui uma advertência. Nisso, os historiadores de direita ou de esquerda dão razão à Thiers: “O solo está juncado de cadáveres. Esse espetáculo pavoroso servirá de lição.

Não se deve esquecer que Thiers também era historiador.



2. As vozes da Comuna


Da minha parte, arrisco a opinião de que os historiadores sentem falta de líderes carismáticos. A Comuna não teve um Robespierre, um Danton ou um Marat, não teve nem mesmo um Lamartine... Os homens de 1871 foram demasiado prosaicos. Talvez o caráter verdadeiramente coletivo da Comuna, talvez a brevidade da sua existência tenha impedido o surgimento daqueles protagonistas convencionais que garantem a audiência das narrativas históricas.

Se, como quer Alfred Fierro, a Comuna deu voz e expressão a algumas figuras espantosas pela inépcia e pela bizarrice, dificilmente isso poderia constituir uma objeção séria, uma vez que figuras de mesmo jaez também estavam presentes no séquito de Luís Felipe ou de Napoleão III, para não mencionar os ministérios e assembleias da Terceira e da Quarta República... Mesmo nesse aspecto os homens da Comuna foram demasiado prosaicos.

Tanto quanto a ausência de líderes, talvez cause assombro a colossal loquacidade da Comuna. A participação das massas populares, a liberdade de expressão, a urgência dos acontecimentos, o calor das paixões políticas, a ausência de um centro ideológico, tudo incentivou a multiplicação de jornais, folhetos, cartazes, cartas, diários e memórias que formam um cipoal cerrado de discursos a desafiar o  ânimo e a paciência dos investigadores. 

Tal multiplicidade de vozes levou o historiador Jacques Rougerie (nascido em 1932) a publicar, por ocasião do centenário da Comuna, o livro Paris Libre 1871, uma coletânea de textos “communeux” (o autor recusa o termo pejorativo “communards”). Um deles tem importância especial: a Declaração ao Povo Francês, cujo propósito era definir os objetivos e a natureza da Comuna.  Apresentado ao conselho no 19 de abril de 1871, o texto foi aprovado de modo quase unânime, com apenas um voto contrário.  (Nessa altura, nem é preciso sublinhar que os muitos e desencontrados pontos de vista nunca fizeram da Comuna um lugar de consensos fáceis.)

No meio das muitas vozes da Comuna, foi essa que decidi transcrever por completo:



Declaração ao Povo Francês

Comuna de Paris

Programa

No conflito doloroso e terrível que mais uma vez ameaça Paris com o horrores do cerco e do bombardeamento, que faz correr o sangue francês, não poupando nem nossos irmãos, nem nossas mulheres, nem nossos filhos exterminados pelos obuses e pelas metralhas, é necessário que a opinião pública não se divida, que a consciência nacional não seja confundida.

É preciso que Paris e o pais inteiro saibam qual é a natureza, a razão, o propósito da revolução que se fez; é justo, enfim, que a responsabilidade pelo luto, pelo sofrimento e pela infelicidade dos quais nós somos vítimas recaiam sobre aqueles que, depois de terem traído a França e entregue Paris ao estrangeiro, buscaram com uma obstinação cega e cruel a ruína da grande cidade, a fim de enterrar no desastre da República e da Liberdade o duplo testemunho da sua traição e do seu crime. 

A Comuna tem o dever de afirmar e de definir as aspirações e desejos da população de Paris; de definir o caráter do movimento de 18 de março, incompreendido, desconhecido e caluniado pelos políticos que tomam assento em Versalhes.

Outra vez Paris trabalha e sofre pela França toda, preparando-lhe por meio de seus combates e de seus sacrifícios, a regeneração intelectual, moral, administrativa e econômica, a glória e a prosperidade.

O que Paris exige?

O reconhecimento e a consolidação da República, única forma de governo compatível com os direitos do povo e com o desenvolvimento regular e livre da sociedade.

A autonomia absoluta da Comuna estendida a todas as localidades da França, assegurando a cada pessoa a integralidade de seus direitos e a todos os franceses o pleno exercício de suas faculdades e de suas aptidões, como homem, cidadão e produtor. A autonomia da Comuna não terá por limites senão o direito de autonomia igual para todos as outras comunas que aderirem ao contrato, cuja associação deve assegurar a unidade francesa.

Os direitos inerentes à Comuna são:

O voto do orçamento comunal, receitas e despesas; a fixação e a repartição do imposto, a direção dos serviços locais, a organização de sua magistratura, da polícia interior e do ensino; a administração dos bem pertencentes à Comuna.

A escolha por eleição ou por concurso, com a responsabilidade e o direito permanente de controle e de revogação, dos magistrados e funcionários comunais de todas as ordens. A garantia absoluta da liberdade individual e da liberdade de consciência.

A intervenção permanente dos cidadãos nos negócios comunais pela livre manifestação de suas ideias, a livre defesa de seus interesses; garantias dadas a essas manifestações pela Comuna, única encarregada de vigiar e assegurar o livre e justo exercício do direito de reunião e de publicidade.

A organização da defesa urbana e da Guarda nacional, que elege seus chefes e vela sozinha pela manutenção da ordem na cidade.

Paris não quer nada mais a título de garantias locais, contanto que encontre a realização e a prática dos mesmos princípios práticos na grande administração central, delegação das comunas federadas. 

Mas, em favor da sua autonomia, e aproveitando da sua liberdade de ação, ela se reserva o direito de efetuar à sua maneira as reformas administrativas e econômicas que sua população exige, de criar instituições próprias para desenvolver e propagar a instrução, a produção, a troca e o crédito, para universalizar o poder e a propriedade, segundo as necessidades do momento, o desejo dos interessados e os dados fornecidos pela experiência.

Nossos inimigos se enganam ou enganam o país quando acusam Paris de querer impor sua vontade ou sua supremacia ao restante da nação e de pretender uma ditadura que seria um verdadeiro atentado contra a independência e a soberania das outras comunas.

Eles se enganam ou enganam o país, quando acusam Paris de procurar a destruição da unidade francesa constituída pela Revolução sob as aclamações de nossos pais, que vieram à festa da Federação de todos os pontos da velha França.

A unidade, tal como nos foi imposta até hoje pelo Império, a monarquia e o parlamentarismo, é apenas centralização despótica, sem inteligência, arbitraria ou onerosa.

A unidade política, tal como a quer Paris, é a associação voluntária de todas as iniciativas locais, o concurso espontâneo e livre de todas as energias individuais em vista de um objetivo comum, o bem-estar e a segurança de todos. A Revolução comunal, iniciada pela iniciativa popular no 18 de março, inaugura uma nova era de política experimental, positiva e científica.

É o fim do velho mundo governamental e clerical, do militarismo, do funcionalismo, da exploração, da agiotagem, dos monopólios, dos privilégios aos quais o proletariado deve sua servidão, e a Pátria suas desgraças e desastres.

Que esta querida e grande Pátria, enganada pelas mentiras e calúnias, tenha sossego portanto! A luta travada entre Paris e Versalhes é daquelas que não podem terminar em compromissos ilusórios: o desfecho não poderia ser duvidoso. A vitória, perseguida com uma energia indomável pela Guarda nacional, caberá à ideia e ao direito. Nós recorremos à França.

Ciente de que Paris em armas tem tanta calma quanto bravura; que ela mantém a ordem com tanta energia quanto entusiasmo; que ela se sacrifica com tanta razão quanto heroísmo; que ela só se armou por devoção à liberdade e à glória de todos: que a França faça cessar este conflito sangrento.

Cabe à França desarmar Versalhes pela manifestação solene de sua irresistível vontade.

Convocada a beneficiar-se de nossas conquistas, que ela se declare solidária com nossos esforços; que ela seja nossa aliada no combate que só pode terminar pelo triunfo da ideia comunal ou pela ruína de Paris.

Quanto a nós, cidadãos de Paris, nós temos a missão de consumar a Revolução moderna, a mais ampla e a mais fecunda de todas as que iluminaram a história.

Nós temos o dever de lutar e de vencer. 

(O texto original se encontra em Jacques Rougerie, Paris Libre 1871, Éditions du Seuil, 2004 pp. 153-156. Também está disponível na internet)



3. De volta ao embaraço dos historiadores

Em 2004, Jacques Rougerie escreveu um prefácio para a nova edição de Paris Libre 1871. Ele observou, sem surpresa, os escassos avanços nos estudos sobre a Comuna na França e o silêncio de historiadores importantes como Pierre Rosanvallon, que não menciona a Comuna no seu grande livro sobre a tradição republicana jacobina na França (Le modèle politique français. La société civile contre le jacobinisme de 1789 à nos jours, Éditions du Seuil, 2004). O assunto continua incômodo para os historiadores.


A própria Declaração ao Povo Francês recebeu avaliações opostas no campo da esquerda (de um lado, obteve a aprovação de Marx, de outro, o desprezo de Lissagaray) e coloca problemas sérios de interpretação quanto às intenções políticas e sociais da Comuna. À luz de sua experiência de quatro décadas como estudioso da Comuna, Rougerie reconhece que essas cisões e impasses são intrínsecos à experiência radical da Comuna de Paris e à nossa confusão quanto ao conceito de democracia:


Devo admitir que sempre fiquei embaraçado quanto à interpretação da Declaração do Povo Francês de 19 de abril de 1871, onde eu via apenas, como tantos outros, um estranho amálgama, uma mistura medíocre de proudhonismo e de jacobinismo, que se esforçava por compor as teses, dificilmente conciliáveis contudo, da minoria e da maioria da assembleia comunal sobre a natureza do Estado republicano revolucionária a construir. Isso não me parece mais exato. A comparação com a Revolução Francesa de 1789/1794 e sua exigência tão forte de “democracia direta”, ou com as reivindicações mal formuladas mas explícitas dos insurgentes de junho de 1848, enfim, o estudo da tradição revolucionária parisiense me conduz a outras conclusões.


1871 coloca, mais uma vez, o problema formidável de um “contrato social” democrático: que forma dar a um governo do povo, que emana do povo, sem oprimir o povo? Deste ponto de vista, a Comuna é talvez a revolta com o programa mais elaborado do século XIX.


“Doutrinalmente”, a Declaração não faz senão reencontrar e prolongar, depois do duro parêntese autoritário do Império, uma reflexão sobre a construção da República já amplamente iniciada em 1848-1851, em vista da decepção causada pela disfunção do novo regime. (...) Construir a República, que se instaura sobre uma base comunal finalmente, é o que a Declaração de 1871 se esforçou para fazer de um modo novo do ponto de vista politico e social, e se o texto pode parecer imperfeito, sua intenções são claras. É surpreendente ver quantos historiadores negligenciaram essa tradição republicana “comunal-cantonal” que se poderia muito bem remontar à constituição jacobina de 1793 (...) Que se leia o texto constitucional do ano I, ou o discurso de Robespierre de 11 de maio de 1793: “Fujam da antiga mania dos governos de querer governar demais. Deixem às comunas, deixem às famílias, deixem aos indivíduos (...) o cuidado de dirigir seus próprios negócios e tudo o que não tem essencialmente a ver com a administração geral da República.”


Mas a ideologia, nunca me canso de dizer, está longe de esgotar, muito pelo contrário, o “segredo” de 1871. De maneira muito concreta, para o povo que se agitava na Paris de 1871 ser seu próprio mestre era autoadministrar-se, era autogovernar-se. Podemos ver isso muito bem no exercício cotidiano do pequeno poder local pelas pessoas de baixa condição, nos clubes ou nos recantos dos bairros. Afirma-se de todas as maneiras, desordenadamente é claro, uma capacidade popular de autonomia, uma vontade de participação política imediata.  Eu lembrarei que o essencial do trabalho de reformas projetado sob a Comuna foi realizado – é a sua maior originalidade – pela iniciativa local.


O historiador e cientista político Claude Lefort lançou luz de modo notável sobre a natureza essencialmente “libertária” da ideia de democracia. A insurreição comunalista, como todas as insurreições parisienses, é também um questionamento da democracia. Com o sufrágio universal proclamado em 1848 e ampliado desde então, será que a democracia é apenas representativa e, no fundo, dá poder político real apenas a alguns, aqueles tem “cacife” político? Ou será soberania real do povo, uma democracia verdadeira que não seja, ao fim e ao cabo, falsamente representativa. Será que bastaria admitir, como os atuais historiadores da política se conformam em fazer com tanta presteza, que a democracia só pode ser “imperfeita” e, no melhor dos casos, “consensual”, um "equilíbrio” sempre desequilibrado porque sempre há dominados e dominantes? A Comuna colocou, uma vez mais no século XIX, a questão da verdadeira soberania popular: é verdade, porém, que ela não a resolveu.


(Jacques Rougerie, Paris Libre 1871, Éditions du Seuil, 2004 pp. VII-XII)


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sábado, 1 de fevereiro de 2014

A claraboia e o holofote #19





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


A Comuna de Paris (parte 1)


Ao longo do meu folhetim, tentei mostrar que, por mais brilhantes que fossem, as afirmações do Manifesto do Partido Comunista estavam contidas num invólucro imaginativo e fantástico. Tal era o preço da inexperiência política de seus autores e da sua compreensão ainda demasiado esquemática das forças histórico-sociais. Porém, dessa imaginação que pendia para o fantástico vinha a potência discursiva do Manifesto, a sua capacidade de suscitar os desejos mais ousados: o de romper grilhões, o de tomar de assalto os céus, o de virar o feitiço contra o feiticeiro.

O refluxo revolucionário da década de 1850 permitiu que Marx aprofundasse seus estudos de economia e elaborasse seu magnum opus. O livro I d'O Capital foi publicado em 1867 e, costumeiramente, é apresentado como um triunfo científico, mas, mesmo com a ressalva de que o plano da obra jamais foi realizado, o livro não trouxe nenhuma contribuição à compreensão política, tampouco à ação transformadora e emancipadora. Isolado da ação política depois da derrocada das forças revolucionárias na Alemanha e na França, Marx mergulhara no coração da Economia Política - a mais burguesa das ciências -  e passou a entender o capital como Sujeito Automático submetido a leis de ferro. É verdade que isso podia dissipar certas ilusões sobre as relações sociais nos países capitalistas mais avançados, mas dificilmente despertaria alguma ação revolucionária. Eis porque Gramsci declarou que a revolução bolchevique foi, em parte, uma revolução contra O Capital.

Não que Marx tivesse deixado de lado o seu posto de observação histórico-social, mas os comentários de Marx a respeito dos grandes eventos da década de 1870, como a Comuna de Paris e a organização do Partido Social Democrata alemão, tem um caráter episódico e carecem de elaboração teórica. Em geral, lúcidos e percucientes, esses comentários revelam também que o modo como Marx compreendia o comunismo, o partido, o Estado e a revolução se alterara bastante desde a época do Manifesto

Todavia, devido à sua concisão e brilhantismo, o Manifesto do Partido Comunista continuou e continua a ser o texto mais lido de Marx, assumindo a condição de ABC do revolucionário comunista.  A infelicidade é que, ao ignorar as condições históricas em que o documento foi produzido e sem levar em conta a posterior metamorfose dos conceitos, a leitura corrente do Manifesto só pode ser equivocada.  A primeira parte ainda desperta entusiasmos fáceis nos calouros dos cursos de Humanidades, mas a segunda é lida como se fosse a ladainha oficial de algum apparatchk do Comintern. Tudo o que nela havia de radical e de provocativo se desvaneceu.

Foi para recuperar algo do frescor inicial dessa parte do Manifesto que resolvi fazer o caminho mais longo: o de seguir as metamorfoses dos conceitos de Estado, comunismo, revolução e partido nos cem anos que se seguiram à publicação do Manifesto.

Posso adivinhar a impaciência do leitor, que se pergunta silenciosamente se tudo isso é realmente necessário. A isso respondo que, à parte o interesse arqueológico, há pelo menos uma razão prática nessa empreitada. A esquerda de hoje recusa – com razão – o léxico do velho comunismo, mas ela acredita – sem razão – que isso possa ser conseguido sem o penoso trabalho de ajuste de contas com o vocabulário político do marxismo. 

Evidentemente não aceito essa estratégia de tabula rasa. Quando os tempos andam bicudos, nunca é perda de tempo estudar os clássicos e revisar as esperanças frustradas de transformação e de emancipação. Já disse numa outra parte desse folhetim que os mortos tem o direito de permanecerem mortos, mas a esquerda - velha ou nova - tem o dever de recenseá-los. 


A história breve e intensa da Comuna de Paris, o último evento revolucionário sobre o qual Marx pensou, foi um desses momentos de expectativa e de derrota que compõem a história da esquerda, isto é, a história das tentativas de dar substância a três palavras muito gastas: liberdade, igualdade e fraternidade.

E, já que estou em casa, acrescento que três ou quatro amigos sabem do apreço que tenho pelo Muro dos Federados, no fundo do cemitério Père-Lachaise, junto ao qual fiz questão que Ludmila me fotografasse cento e quarenta anos depois dos acontecimentos que se seguem.

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O fim de Napoleão III

Na segunda metade da década de 1860, o Segundo Império titubeava entre um autoritarismo cada vez mais contestado e uma ineficiência cada vez mais manifesta. Se nas eleições de 1863, os candidatos oficiais tiveram uma vantagem de três milhões de votos sobre os candidatos da oposição, em maio de 1869 essa diferença caíra para somente um milhão.  Em Paris, tradicional bastião oposicionista, para cada voto governista, três foram dados para a oposição. Republicanos mais radicais, como Gambetta, ganhavam força. A Associação Internacional do Trabalho (a Primeira Internacional) era bastante ativa junto à classe trabalhadora e a influência de Proudhon continuava grande entre os artesãos e os pequenos burgueses.

Napoleão III se via obrigado a fazer concessões de cunho liberal. No dia 2 de janeiro de 1870, o imperador encarregou Émile Ollivier, um republicano moderado, de constituir um ministério. No entanto, essas concessões táticas vieram tarde demais para aplacar a imensa insatisfação de Paris e de grandes cidades como Lyon e Marseille.

Prova disso é a agitação que tomou conta de Paris quando Victor Noir, um jovem jornalista da imprensa republicana radical, foi assassinado pelo príncipe Pierre Bonaparte, primo do Imperador, no dia 11 de janeiro. Centenas de milhares acompanharam o cortejo fúnebre. O enterro se transformou numa grande manifestação contra um regime que tinha os dias contados.


O túmulo de Victor Noir no Père-Lachaise

O imperador lutava para manter-se à frente dos acontecimentos, mas não podia negar a vocação autoritária inerente ao bonapartismo. Apesar da reforma constitucional de abril, o governo era totalmente hostil ao movimento operário. Isso ficou evidente no episódio da prisão dos membros da Internacional em Paris: um ato cuja arbitrariedade foi apontada pelos próprios juízes que julgaram o processo. 

O pacote de reformas constitucionais proposto em abril foi submetido a referendo no dia 8 de maio. Mais uma vez, a oposição foi forte nas cidades. Em Paris, 59% dos votos eram contra, proporção que subia a 70% nos bairros trabalhadores do norte e leste da cidade. No entanto, a oposição republicana estava bem ciente da força do Império na França rural, ou seja, na maior parte do país.

Se o Segundo Império caiu com tanta presteza poucos meses depois, isso se deveu a um tropeço (mais um!) da sua política externa. 

Desde a vitória da Prússia sobre a Áustria em 1866, era inevitável que a França tentasse colocar termo às ambições de Bismarck. Quando a Prússia propôs um príncipe Hohenzollern para a sucessão na Espanha parecia ter chegado o momento propício para uma afirmação do poderio francês frente à Prússia. Os ultraconservadores franceses, temendo que a França se encontrasse cercada pela casa real prussiana tanto ao longo do Reno quanto dos Pirineus, exigiam do Imperador uma resposta enérgica e imediata.


O Imperador e Ollivier estavam dispostos a aceitar a retirada pura e simples da candidatura do príncipe alemão, mas os conservadores faziam questão de garantias, as quais Bismarck recusou em termos deliberadamente duros num telegrama que foi amplamente divulgado pela imprensa – o telegrama de Ems. Embora muitos deputados, entre os quais Adolphe Thiers, quisessem evitar a guerra contra a Prússia, Napoleão III sucumbiu à pressão do grupo ultraconservador ligado à imperatriz e acreditou nos prognósticos demasiado otimistas do ministro da guerra e do ministro dos negócios estrangeiros. No dia 19 de julho de 1870, com amplo apoio da opinião pública, inclusive de muitos trabalhadores, o governo francês declarou guerra à Prússia.

Os confrontos começaram no 2 de agosto. Logo se tornou notória a superioridade militar prussiana seja do ponto de vista tático-estratégico, seja do ponto de vista da qualidade do arsenal; para aumentar as dificuldades, o exército francês, mais afeito às funções repressivas de polícia do Império, habituado a massacrar trabalhadores urbanos e colonos africanos, mostrava-se bastante inábil na hora de enfrentar um exército estrangeiro bem equipado no campo de batalha.

As derrotas se sucediam. O governo Ollivier caiu. No 2 de setembro, o imperador, 39 generais e dezenas de milhares de soldados foram feitos prisioneiros em Sedan num fiasco militar sem igual até a ocupação de Paris pela Wehrmacht em 1940.

Quando a notícia do desastre chegou à capital no dia 4, a população invadiu a Câmara. A República foi proclamada, a terceira desde 1792.


O início da República

Rapidamente se constitituiu um Governo de Defesa Nacional composto por monarquistas e por republicanos moderados. Sua presidência foi concedida a um general chamado Trochu, o único disponível em Paris no momento. O sabre tinha o poder de tranquilizar os conservadores, alarmados com a palavra “república”. Em todo caso, as credencias reacionárias do novo governo eram notórias: muitos de seus membros, entre os quais o próprio general Trochu e o ministro Jules Favre, haviam tomado parte ou apoiado os massacres dos trabalhadores em junho de 1848.

Mesmo nessas condições, o movimento operário logo percebeu o potencial revolucionário da situação. As seções parisienses da Primeira Internacional e da Câmara Federal das Sociedades Operárias se reuniram no dia mesmo da proclamação da república para elaborar uma pauta de exigências ao Governo de Defesa Nacional, entre as quais a liberdade de manifestação e de reunião bem como o armamento de todos os cidadãos para a defesa da cidade. Também se discutiu a formação de um Comitê Central Republicano de Defesa Nacional dos Vinte Arrondissements, que foi instituído no dia 11.

Para evitar que a cidade caísse nas mãos de extremistas e de revolucionários, o Governo de Defesa Nacional tratou logo de nomear prefeitos leais para cada uma das vinte regiões administrativas da capital.

No dia 19 de setembro, as tropas prussianas cercaram a capital. As tentativas parisienses de furar o cerco se frustravam, o que confirmava as opiniões pessimistas do general Trochu, propenso à capitulação. No dia 30, a notícia da rendição do exército francês sitiado em Metz reforçou o sentimento de revolta e de desorientação dos parisienses.

Num lance espetacular, o ministro Gambetta escapou  de Paris num balão para conseguir tropas que atacassem a retaguarda prussiana. Em novembro, a cidade ainda tinha esperança na chegada dos reforços, mas as forças arregimentadas por Gambetta se esforçavam em vão para furar o cerco.

A chegada do inverno, a falta de combustíveis e de comida cobraram o preço que sempre cobram dos mais pobres:  fome, doença e morte das crianças e dos velhos. Os sobreviventes comiam tudo o que se mexesse: cães, gatos, ratos e até os animais do jardim zoológico foram abatidos para servir de alimento. O desespero aumentou quando os prussianos começaram a bombardear a cidade a partir do dia 5 de janeiro.

Apesar da resistência de Paris, a guerra propriamente dita estava encerrada. A vitória da Prússia era também o ato final da unificação da Alemanha. No dia 18 de janeiro de 1871, num acinte às antigas glórias da França, o rei Guilherme foi proclamado Kaiser de toda Alemanha no Salão dos Espelhos do palácio de Versailles. Tratava-se agora de estabelecer as condições da retirada das tropas alemãs. Uma vez que Bismarck só aceitaria negociar com um governo francês legítimo, a França e a Alemanha assinaram, no final de janeiro, um armistício temporário para que fossem realizadas eleições.

Nas eleições de 8 de fevereiro, a França rural e provinciana elegeu uma massa de deputados monarquistas para a Assembleia Nacional. Reunida em Bordeaux, a Assembleia escolheu Adolphe Thiers como chefe do poder executivo. Thiers se dedicava à política há quarenta anos. Era conservador, bonapartista e fora ministro do rei Luís Felipe, mas sentia-se perfeitamente à vontade numa república presidida por ele mesmo. No final de fevereiro, a Assembleia ratificou o tratado de paz negociado por Thiers. A França entregaria a Alsácia e parte da Lorena à Alemanha; pagaria uma indenização de cinco bilhões de francos e permitiria que as tropas alemãs desfilassem em Paris.

Tratava-se da suprema humilhação. As tropas alemãs, que não conseguiram vencer Paris pela força, iriam desfilar pela avenida Champs Élysées no dia 1º de março, com o consentimento do governo de Adolphe Thiers, o homem que se orgulhava de ter ordenado a construção do sistema de defesas de Paris...

Para evitar que os alemães confiscassem os canhões que haviam sido fundidos graças às subscrições particulares, a população de Paris os entregou à proteção da Guarda Nacional, composta de centenas de milhares de cidadãos mobilizados para a defesa da cidade.


A revolução de 18 de março e a Comuna

Era tensa a relação entre o governo eleito e a cidade de Paris. Para evitar as agitações da capital, sempre oposicionista e rebelde, a Assembleia Nacional se instalou em Versailles, sede dos monarcas absolutistas desde Luís XIV e local da coroação recente do próprio Kaiser!


O antagonismo entre a Assembleia e a população da capital aumentou quando, em 7 de março, foi decretado o fim da moratória do pagamento dos aluguéis, que fora concedida em agosto por Napoleão III para aliviar as dificuldades econômicas geradas pela guerra.  A pequena burguesia, que sofria para pagar seus aluguéis, passou imediatamente para o coro dos descontentes, do qual sempre fizera parte a classe trabalhadora de Paris.

O legislativo estava em segurança em Versailles, mas o poder executivo - representado por Thiers e pelos vinte prefeitos nomeados pelo extinto governo de defesa nacional -, continuava em Paris e se via desafiado pelo crescente poder da Guarda Nacional. No dia 3 de março, os delegados dos diversos batalhões haviam fundado a Federação Republicana da Guarda Nacional e, pouco depois, nomearam um Comitê Central executivo, composto de 4 delegados de cada região administrativa de Paris. O Comitê Central se apresentava como um órgão de defesa da república e da democracia social.

Thiers sabia que era preciso desarmar Paris e recuperar o controle sobre a Guarda Nacional.  Na noite de 17 para 18 de março, 15 mil soldados do exército foram enviados para tomar os canhões que eram guardados em Montmarte e em Beleville.  A população foi alertada e cercou as tropas, que se recusaram a atirar. Dois dos generais governistas que comandavam a operação foram fuzilados. Um deles, Clément-Thomas participara dos massacres de junho de 1848; o outro, Claude Lecomte, foi morto por seus próprios soldados.

O Governo ordenou a retirada do Exército. Os batalhões da Guarda Nacional começaram a tomar os edifícios públicos, os ministérios, as prefeituras, as estações de trens. Na tarde de 18 de março, Thiers fugiu de Paris, depois de ordenar que todos os funcionários públicos evacuassem a cidade e se transferissem para Versailles. Todos os serviços públicos foram abandonados.

O Comitê Central se instalou no Hôtel de Ville para anunciar as primeiras medidas: os tribunais militares foram suprimidos; os presos políticos, anistiados; a liberdade de imprensa, reestabelecida. Também se anunciaram eleições para a escolha dos delegados do autogoverno popular, o conselho da Comuna.   

Depois de alguns contratempos, as eleições se realizaram no dia 26 de março.  A abstenção foi alta nos bairros burgueses, mas o total de votantes era expressivo mesmo assim. Vinte e cinco operários foram eleitos num total de 86 delegados. Para substituir os delegados que abandonaram a Comuna, foram necessárias eleições complementares em abril.

A Comuna não tinha chefe de governo nem ministros. Não havia hierarquia entre os delegados do conselho da Comuna nem divisão técnica das atribuições. Em geral os delegados não tinham experiência política nem administrativa, mas eram obrigados a exercer múltiplas tarefas: administrar os arrondissements de que eram representantes, receber as queixas e reivindicações dos moradores, participar das comissões especiais para discutir propostas relativas às finanças, justiça, ensino, trabalho etc.

Devido ao contato direto dos delegados com a população, a pressão era constante e as decisões eram continuamente sujeitas a discussões. A multiplicidade de vozes, a atenção às demandas sociais (regulação das relações de trabalho, ensino laico público e gratuito, emancipação das mulheres) e a transparência do processo deliberativo eram radicalmente democráticas, mas a necessidade de defender a cidade que se encontrava mais uma vez sitiada exigia prontas tomadas de decisão e a capacidade de fazê-las cumprir. Esse era o ponto fraco da Comuna: muitos deliberavam, mas poucos obedeciam.


A Comuna enfrenta as tropas de Versailles

Thiers obteve da Alemanha a autorização de concentrar tropas com o objetivo de debelar a ComunaApós algumas negociações, Bismarck concedeu a libertação de cem mil prisioneiros de guerra para reforçar o contingente militar destinado a invadir Paris.

O primeiro confronto entre as tropas de Paris e as de Versalhes aconteceu no 2 de abril.  As sucessivas derrotas da Comuna  e o fuzilamento dos soldados capturados pelo exército legalista levaram a Comuna a ameaçar uma retaliação.  Várias pessoas leais a Versailles,  entre quais o arcebispo de Paris e muitos clérigos, foram tomadas como reféns. A Comuna anunciou que executaria três reféns por cada soldado federado que fosse capturado e fuzilado pelos versalheses. O arcebispo e outros reféns foram fuzilados nos momentos finais da Comuna. O ato forneceu aos inimigos da Comuna a prova cabal da barbárie e da loucura criminosa dos communards, mas Prosper-Olivier Lissagaray, republicano que lutou pela Comuna e escreveu a sua história, exige que esses fuzilamentos sejam devidamente pesados em relação ao massacre praticado pelo Exército durante a Semana Sangrenta.

Quando um punhado de exasperados, para se vingar de milhares de seus irmãos, fuzilam sessenta e três reféns entre os quase trezentos que eles tinham em mãos, a reação vela a própria face e protesta em nome da justiça. Que dirá então esta justiça daqueles que, metodicamente, sem nenhuma ansiedade quanto ao resultado da luta, fuzilaram vinte mil pessoas, das quais ao menos três quartos não tinham combatido” (Histoire de la Commune de 1871, p. 356)

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Paris estava sitiada mais uma vez. Quando os obuses do exército de Versailles começaram a cair sobre a região sul da cidade, a Comuna sofria com as decisões erráticas e incompetentes de seus comandantes militares. Para tornar mais ágeis as deliberações, as comissões foram reorganizadas no dia 21 de abril de modo que cada uma delas passou a ser chefiada por um delegado. Como isso não se mostrou suficiente,  foi instaurado um Comitê de Salvação Pública, de cinco membros, a despeito da oposição de uma minoria do conselho, que temia a deriva ditatorial da época do Terror.

Desde o final de abril, os federados perdiam posição dia após dia. No dia 20 de maio, 130 mil soldados de Versailles começaram a entrar em Paris. O Comitê de Salvação Pública lançou um apelo geral às armas. Os bairros populares encheram-se de barricadas. Para dificultar o avanço do adversário, os edifícios abandonados foram incendiados, tática de guerra amplamente usada ao longo da história, mas convertida em peça de acusação pelos inimigos da Comuna. 

(Uma das lendas mais persistentes criadas pela imprensa e pela historiografia reacionárias é a de que os incêndios foram atentados insensatos contra a propriedade privada e contra o patrimônio histórico perpretados por autênticas harpias munidas de tochas, fúria e petróleo, as "pétroleuses". Por mais horrenda e infame que seja a lenda, trata-se de um reconhecimento - bem torto, é verdade - do papel crucial que as mulheres tiveram na Comuna de Paris.)



A derrota e a Semana Sangrenta

No dia 24, o Conselho da Comuna abandonou o Hôtel-de-ville e se instalou na prefeitura do 11º arrondissement em plena área popular do leste de Paris. No dia 26, restavam apenas grupos isolados de resistentes no bairro Saint-Antoine e nas vizinhanças. No dia 28, as forças de Versailles tomaram a última barricada, na rua Oberkampf.  

O general Mac-Mahon pôde, então, proclamar em triunfo: “Moradores de Paris, Paris está livre! Hoje a luta terminou. A ordem, o trabalho e a segurança irão renascer.” (Histoire de la Commune de 1871, p. 351)

O renascimento da ordem, do trabalho e da segurança costumam ser cobrados a preço de sangue. Lissagaray lembra que “os massacres em massa duraram até os primeiros dias de junho e as execuções sumárias até o meio do mês. Não se sabe o número exato de vítimas da semana sangrenta. O chefe da justiça militar admitiu 17 mil fuzilados. O conselho municipal de Paris pagou pelo enterro de 17 mil cadáveres; mas um grande número de pessoas foram mortas ou incineradas fora de Paris; não é exagerado dizer vinte mil, cifra admitida pelos oficiais.” (idem p. 358)

Num telegrama, Thiers confidenciou a seus prefeitos:“O solo está juncado de cadáveres. Esse espetáculo pavoroso servirá de lição.” (idem, p. 356)

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Terminado o trabalho sangrento na capital, o governo Thiers enviou cem mil soldados para uma outra missão: conter uma revolta muçulmana na Argélia.




Hôtel de Ville  de Paris



Alfred Fierro, Histoire et Dictionnaire de Paris, Éditions Robert Laffont | Eric Hobsbawn, The Age of Capital 1848-1875, Abacus | Prosper- Olivier Lissagaray, Histoire de la Commune de 1871  | Roger Price, A Concise History of France, Cambridge University Press | Robert Ponge, A Comuna de Paris | Jacques Rougerie , Paris Libre 1871, Éditions du Seuil | Robert Schnerb, História Geral das Civilizações vol. 13 O século XIX , Difusão Europeia do Livro | Peter Watkins, La Commune (Paris, 1871), filme, 2000 (parte 1 e parte 2)