Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista
Mais uma sobre o mote Habent sua fata libelli
Em 1848, Marx e Engels conclamavam à ação a parte mais resoluta e revolucionária da classe operária: os comunistas. O Manifesto do Partido Comunista era a expressão retórica da urgência e da oportunidade imperdível. Seu argumento tinha a forma de uma transposição didática audaciosa que resumia o movimento da história moderna à eclosão de uma classe social revolucionária – a burguesia - dotada de poderes fantásticos. À medida que transformava o mundo, a burguesia passava a dominar todas as outras classes sociais que a precederam, ao mesmo tempo que gestava uma nova classe revolucionária – o proletariado – que, em sua luta por emancipação, iria destruir o jugo da burguesia e abolir a própria divisão de classes. Dessa maneira, ao conto reacionário do espectro do comunismo, Marx opunha o relato libertário da burguesia como um poderoso feiticeiro que já não conseguia mais controlar seus poderes. Certamente outro conto da carochinha, mas de moralidade muito diversa.
A seção II do Manifesto era dedicada à forma política que a luta deveria assumir sob a liderança do partido comunista, tal como Marx o entendia em 1848: não como um aparelho, mas como uma fração da própria classe operária, aquela mais esclarecida a respeito das condições gerais do movimento e mais disposta a conquistar a supremacia do proletariado. Esse partido comunista de 1848 deveria representar os interesses comuns do proletariado internacional em cada fase do desenvolvimento da luta de classes e no interior de cada nação. O seu alvo deveria ser a abolição da propriedade privada burguesa, base do modo de produção e de todas as relações sociais burguesas. Sua ação deveria ser orientada não por conteúdos doutrinais, mas pelo próprio “movimento histórico que se desenvolve diante dos olhos”. Marx e Engels em 1848 não acreditavam estar formulando modelos ou representações teóricas, mas sim apreendendo a própria história em movimento.
Na época, o Manifesto recebeu pouca atenção, atropelado como foi pelos eventos de 48, especialmente pela grande derrota de junho e pelo recrudescimento do conservadorismo. Todavia, pouco mais de duas décadas depois, o Manifesto passou a ser difundido num número crescente de idiomas e países. É claro, porém, que ele não poderia mais ser lido segundo as condições em que fora produzido. Tais condições haviam sido ultrapassadas; o que interessava agora era apenas o resíduo que chamamos de “atualidade” e que Marx e Engels preferiam chamar de “exatidão”:
“Por mais que tenham mudado as condições nos últimos 25 anos, os princípios gerais expressos nesse Manifesto conservam, em seu conjunto, toda a sua exatidão. Em algumas partes certos detalhes devem ser melhorados. Segundo o próprio Manifesto, a aplicação prática dos princípios dependerá, em todos os lugares e em todas as épocas, das condições históricas vigentes e por isso não se deve atribuir importância demasiada às medidas revolucionárias propostas no final da seção II. Hoje em dia, esse trecho seria redigido de maneira diferente em muitos aspectos. Em certo sentido, esse programa está antiquado, levando-se em conta o desenvolvimento colossal da indústria moderna desde 1848, os progressos correspondentes da organização da classe operária e a experiência prática adquirida, primeiramente na revolução de fevereiro e, mais ainda, na Comuna de Paris, onde coube ao proletariado, pela primeira vez, a posse do poder político durante dois meses (...) Entretanto, o Manifesto se tornou um documento histórico que não nos cabe mais alterar."
(Marx e Engels, prefácio à edição alemã, junho de 1872)
É muito esclarecedor da mudança de perspectiva dos autores que o interesse do Manifesto estivesse na “exatidão” dos seus princípios gerais face a certos aspectos programáticos que deveriam ser revistos à luz das mudanças históricas. Aquilo que fora o núcleo vivo e pulsante do Manifesto, a sua ousadia em apreender a história em movimento, havia se tornado um conjunto de axiomas, ou pelo menos uma figuração teórica do processo a ser preservada. O documento, elevado ao status histórico, merecia ser lido como expressão de uma ideia fundamental. Nos prefácios que escreveu para o Manifesto depois da morte de Marx, Engels insistiu nesse aspecto.
"A ideia fundamental que percorre todo Manifesto é a de que, em cada época histórica, a produção econômica e a estrutura social que dela necessariamente decorre constituem a base da história política e intelectual dessa época; que consequentemente (desde a dissolução do regime primitivo da propriedade comum da terra) toda a História tem sido a história da luta de classes, da luta entre explorados e exploradores, entre as classes dominadas e as dominantes nos vários estágios da evolução social; que essa luta, porém, atingiu um ponto em que a classe oprimida e explorada (o proletariado) não pode mais libertar-se da classe que a explora e oprime (a burguesia) sem que, ao mesmo tempo, liberte para sempre toda sociedade da exploração, da opressão e da luta de classes – este pensamento fundamental pertence única e exclusivamente a Marx.”
(Engels, prefácio à edição alemã de 1883)
Aquilo que Marx descrevia como princípios gerais que se mantinham corretos torna-se para Engels uma “ideia fundamental” que seria para a História aquilo que a teoria de Darwin era para a Biologia (cf. prefácio da edição inglesa de 1888). Tratava-se não mais da apreensão dialética do movimento histórico, mas da descoberta dos fundamentos de uma ciência. O problema é que essa ciência era concebida à maneira fundacionista do século XIX como consolidação de verdades básicas expressas na forma de leis que tentavam emular as leis newtonianas, e não como um conjunto aberto de proposições sujeito a falseamentos e a revisões drásticas, como se pensa a partir de Pierre Duhem, Popper, Quine e Thomas Kuhn.
A “ideia fundamental” de Marx poderia ser resumida em quatro leis:
1. A estrutura econômica e social definida pelo modo de produção serve de base para as transformações política e intelectuais. Note-se que a formulação de Engels é menos determinista do que as versões posteriores da vulgata marxista. Engels, como Marx, acredita que a história política e intelectual estava ligada a uma base econômica e social, mas nunca disse que o político-intelectual fosse apenas reflexo do econômico-social, tampouco chegaram aos ponto de dizer que as mudanças políticas, intelectuais e sociais fossem epifenômenos das mudanças econômicas.
2. A luta de classes é uma constante histórica (supostamente desde o final do “comunismo primitivo”). Engels diz que “a História tem sido a história da luta de classes”, fórmula menos restritiva do que a versão mais conhecida de que a luta de classes é o motor da história. Na frase de Engels, não se atribui à luta de classes um papel causal, mas sim uma identidade, de maneira que estudar a História é estudar a luta de classes ao longo das épocas. Isso parece constituir antes um preceito metodológico (historiadores, atenção à luta de classes!) do que uma elucidação metafísica da natureza da História.
3. A luta de classes tem seu dinamismo e seu próprio desenvolvimento. As classes dominantes e dominadas se transformam, assim como as formas da própria luta. Portanto, compreender a luta de classes não é apenas descobrir quem são os antagonistas, mas entender suas posições relativas sempre cambiantes (o que Marx tinha feito de maneira admirável no 18 Brumário de Luís Bonaparte e n’As Lutas de Classes na França entre 1848-1850).
4. O proletariado tem um papel (auto)emancipatório definitivo. A luta de classes tem um ponto final: a vitória do proletariado e a instauração de uma sociedade sem classes e sem estado. O proletariado não pode se emancipar sem, ao mesmo tempo, sacudir o jugo de todas as outras classes sociais. E ele não pode se emancipar a não ser por suas próprias forças.
Esses princípios gerais se tornariam para Engels a “ciência socialista”, como ele expressou numa carta a August Bebel (maio de 1891): “ Vocês – o partido – precisam da ciência socialista (...)”
Todavia, quando Engels fez um retrospecto das vicissitudes do Manifesto, quarenta anos depois da sua publicação, o quadro ganhou contornos mais complexos:
“A derrota da insurreição parisiense de junho de 1848 – a primeira grande batalha entre o proletariado e a burguesia – colocou novamente em um segundo plano as aspirações sociais e políticas do operariado europeu. A partir de então, a luta pela supremacia voltou a ser, como fora antes da revolução de fevereiro, simplesmente uma luta entre diferentes camadas da classe proprietária; a classe operária foi levada a limitar-se a uma luta pela conquista de espaços políticos, assumindo posições da ala extrema dos radicais de classe média. Onde quer que o movimento proletário independente manifestasse sinais de vida, era logo impiedosamente esmagado. A polícia prussiana descobriu o Comitê Central da Liga dos Comunistas, então sediado em Colônia. Seus membros foram presos e após dezoito meses de encarceramento, julgados em outubro de 1852. O célebre “Processo Comunista de Colônia” estendeu-se de 4 de outubro a 12 de novembro; sete prisioneiros foram condenados a penas que variavam entre 3 e 6 anos de prisão numa fortaleza. Imediatamente após a sentença, a Liga foi formalmente dissolvida pelos membros remanescentes. Quanto ao Manifesto, este parecia ficar, a partir de então, relegado ao esquecimento.
Quando os operários europeus reuniram forças suficientes para um novo assalto ao poder das classes dirigentes, surgiu a Associação Internacional dos Trabalhadores. Seu objetivo era englobar, num único poderoso exército, todo operariado militante da Europa e da América. Portanto, não poderia partir dos princípios expressos no Manifesto. Devia ter um programa que não fechasse as portas às Trades Unions inglesas, aos proudhonianos franceses, belgas, italianos e espanhóis ou aos lassallianos alemães. Esse programa – as considerações básicas da Internacional – era redigido por Marx, com maestria reconhecida até por Bakunin e pelos anarquistas. Para o triunfo decisivo das ideias formadas pelo Manifesto, Marx dependia unicamente do desenvolvimento da classe operária, o qual deveria resultar da unidade da ação e da discussão. Os acontecimentos e as vicissitudes da luta contra o capital, as derrotas maiores que as vitórias, poderiam apenas mostrar aos combatentes a insuficiência de todas as panaceias em que acreditavam, fazendo-os compreender melhor as verdadeiras condições da emancipação da classe operária. E Marx tinha razão. A classe trabalhadora de 1874, por ocasião da dissolução da Internacional, era, em geral, diferente da de 1864, quando da sua fundação. O proudhonismo dos países latinos e o lassallismo propriamente dito na Alemanha estavam desaparecendo e até mesmo as Trade Unions inglesas, então ultraconservadoras, se aproximaram pouco a pouco daquilo que, em 1887, o presidente do seu congresso de Swansea dizia: “O socialismo continental não nos atemoriza”. Mas, por essa época, o socialismo continental confundia-se, quase que exclusivamente, com a teoria formulada no Manifesto.
Assim, o Manifesto propriamente dito tomou novamente a dianteira.(...)
Portanto, a história do Manifesto reflete, em grande parte, a história do movimento operário moderno; atualmente é, sem dúvida, a obra de maior circulação, a mais internacional de toda a literatura socialista, o programa comum adotado por milhões de trabalhadores, da Sibéria à Califórnia."
(Engels, prefácio à edição inglesa, janeiro de 1888)
Este prefácio que Engels assinou sozinho (Marx morrera em 1883) é notável por várias razões. A primeira é que ele define com clareza em que condições o Manifesto poderia ser aceito e lido como texto político eficaz (o único tipo de leitura que interessava a Marx e Engels):
(a) a aceitação do Manifesto dependia da evolução do movimento independente da classe operária. Como sabemos por outros textos de Marx e Engels, inclusive a Crítica ao Programa de Gotha, tratava-se de independência, não de isolamento. A classe operária deveria estar disposta a encontrar aliados no campesinato e na pequena burguesia, por isso ela não podia declarar que todas as outras classes formam um só bloco reacionário, como defendiam os lassallianos.
(b) O Manifesto incita a luta revolucionária do proletariado, isto é, a luta pela supremacia política, e não a participação na luta política entre as frações da classe dominante, na qual o proletariado fica reduzido a coadjuvante da ala radical dos partidos de classe média. Em outras palavras, a aceitação do Manifesto exige momentos agudos de conflito de classe e não a rotina política parlamentar e a conquista do poder pela via do sufrágio universal.
(c) A luta de classes descrita no Manifesto é, em seu conteúdo, uma luta internacional, que pode assumir várias formas nacionais. A aceitação do Manifesto é função da compreensão do caráter internacional do proletariado.
(d) É preciso aceitar que as propostas de Proudhon, Bakunin e Lassalle eram apenas panaceias que partiam de uma compreensão errônea do processo econômico-social, da qual decorriam uma série de fracassos.
(e) O movimento do proletariado depende da ação e da discussão. Ele não pode ir adiante com base em doutrinas apriorísticas ou ideais criados saídos da mente de algum teórico. O proletariado tem que agir e tirar lições de seus erros.
Outra razão que torna interessante o prefácio de Engels é que ele oferece uma explicação bastante plausível do eclipse pelo qual o Manifesto passou durante as décadas de 1850 e 1860. As circunstâncias repressivas da década de 1850 e o surgimento da Primeira Internacional, que exigia uma programa mais ecumênico, dada a força dos seguidores de Proudhon e de Bakunin, não contribuíam para a difusão do Manifesto do Partido Comunista.
No entanto, quando se trata de explicar o sucesso de difusão do Manifesto a partir da década de 1870, Engels adota um esquema de cunho darwiniano. Tudo se passaria como se Marx tivesse sobrepujado seus rivais (cuja descendência se extinguiu), conquistado o território e multiplicado seus descendentes. A vitória de Marx seria resultado da confirmação da verdade das suas análises. Elas teriam se tornado hegemônicas a ponto de o socialismo continental tornar-se basicamente a teoria apresentada no Manifesto. O êxito da obra se confundiria com a própria expansão do movimento operário internacional.
É evidente que Engels tinha interesse em dar relevo à obra que estava prefaciando, mas o quadro que ele desenha é demasiado otimista. Embora fosse verdade que as traduções e edições do Manifesto não paravam de se multiplicar, não se pode concluir daí uma adesão maciça à verdade das análises de Marx. Tampouco é verdade que o marxismo tenha se tornado a corrente vitoriosa: as décadas de 1890 e 1900 assistirão ao florescimento do anarquismo, assim como das correntes socialistas reformistas. Por último, a leitura do Manifesto numa época afastada das condições de produção do texto reduzia as ousadias dialéticas de 1847-48 (já transformadas em "princípios gerais" em 1872, depois em "ideia fundamental" da ciência da História em 1888) ao estatuto de artigos de fé do catecismo comunista, ao qual se rendia um tributo verbal perfunctório, que não inspirava nenhuma ação revolucionária.
Na época em que os dois partidos operários alemães se unificaram no congresso de Gotha, Marx se deu conta de que suas descobertas "científicas" eram mal compreendidas mesmo entre os que se diziam seus seguidores. Marx se enfureceu, como se pode ler nas duras palavras da Crítica ao Programa de Gotha, mas é muito difícil que não houvesse incompreensão por parte dos dirigentes alemães, e não apenas por causa das dificuldades que eles poderiam ter com as análises d'O Capital. Mesmo a leitura do Manifesto se prestava a malentendidos variados, uma vez que o partido comunista de 48 não podia ser transposto para as condições autoritárias do Reich de Bismarck, com sua idolatria do Estado e da Nação. O partido social-democrata alemão, que nasceu da unificação, estava fadado, desde o princípio, a buscar seu caminho cada vez mais longe de Marx e do partido comunista de 48, por quem nutria uma repulsa que se tornaria cada vez mais explícita no revisionismo de Bernstein e no centrismo de Kautsky.
É o que veremos nos capítulos seguintes deste folhetim.
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Post-scriptum de ocasião
Post-scriptum de ocasião
Graças sejam dadas ao Pai Ubu por essa gente nunca aparecer aqui, mas a data é nefasta e não posso deixar de recomendar às remotas alimárias saudosas do golpe de 64:
Unam-se ao pássaro dodô !
E que a terra lhes seja leve.
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