quarta-feira, 30 de abril de 2014

A claraboia e o holofote #24





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


A social-democracia alemã (parte 3)



Os últimos dias de Engels



1. Triunfo

“Tivemos o prazer de ver a crítica de Marx vencer o tempo todo”

“Embora Paris tenha sido o local da fundação da Segunda Internacional em 1889, a energia intelectual e organizacional por trás do socialismo do final do século XIX vinha de Berlim e Viena. Para incredulidade de Bismarck, suas leis antissocialistas só serviram para inchar as fileiras esquerdistas do grupo que, em 1890, se converteu no Sozialdemokratische Partei Deutschlands (SPD). Alarmado, o chanceler alemão recuou, procurando neutralizar o desafio socialista com um programa de reformas previdenciárias. Mas, apesar da introdução do seguro-saúde, do seguro-acidente e da aposentadoria por idade ou incapacitação, o eleitorado do SPD saltou de 7,5% em 1878 para 19,7% em 1890. “Desde a última quinta-feira à noite, quando os telegramas anunciando a vitória choviam aqui aos borbotões, estamos numa embriaguez constante de triunfo”, escreveu Engels a Laura Lafargue depois que os socialistas conseguiram um total impressionante de um milhão e meio de votos, traduzidos em 35 deputados no Reichstag. “A velha estabilidade desapareceu para sempre.”

Com um eleitorado maior, a perspectiva de poder político real agora já assomava no horizonte, e Engels achava mais importante que nunca que o SPD adotasse uma linha ideológica correta, expurgada de todos os resquícios lassallianos que ainda restavam – sendo os piores deles a crença ilógica numa “lei férrea dos salários” e a convicção de que a emancipação proletária dependia da benevolência do Estado. Na esteira do triunfo eleitoral do SPD, foi programado um congresso em Erfurt em outubro de 1891, e durante os preparativos Engels lançou mão de toda a sua astúcia política para assegurar o controle póstumo de Marx sobre a direção do socialismo alemão. Teve a malícia de mandar imprimir as “Glosas Marginais” de Marx sobre o criticado programa de Gotha de 1875, com sua análise ferina da rendição de Liebknecht e Bebel à influência lassalliana, e fez uma segunda edição de A guerra civil da França, de Marx (...) Depois Engels fez muitas correções ao primeiro rascunho do programa social-democrata de Erfurt, insistindo com o SPD para não evitar um confronto com o Estado alemão feudal e reafirmando sua convicção sobre a necessidade de um estágio democrático intermediário no caminho para o socialismo. “Se uma coisa é certa”, enfatizou ele, “é que nosso partido e a classe operária só podem chegar ao poder sob a forma de uma república democrática.”

Conforme se viu, os receios de Engels em relação a uma recaída ideológica eram infundados. Embora Erfurt tenha adotado uma série de políticas extremamente reformistas (sufrágio universal, educação gratuita, imposto de renda progressivo, tratamento médico e assistência jurídica gratuitas), para o movimento socialista europeu como um todo o congresso do SPD marcou o triunfo ideológico do marxismo com um programa filosófico que fazia eco a O Capital. “Tivemos o prazer de ver a crítica de Marx vencer o tempo todo”, escreveu Engels a Sorge com a intensa satisfação pessoal de ter respeitado o legado de Marx no seu próprio país. “Até os últimos resquícios de lassallianismo foram eliminados”. Depois de Erfurt e da conversão oficial do SPD, o marxismo assumiu o controle da Segunda Internacional. Nas palavras de Leszek Kolakowski, o marxismo não era mais "a religião de uma seita isolada, mas sim a ideologia de um poderoso movimento político.”

(Tristram Hunt, Comunista de Casaca: A vida revolucionária de Friedrich Engels, pp.376-377)



2. Capitulação?

"A introdução de Engels desde então foi vista como o testamento político do sucessor autorizado de Marx, sufocando toda a discussão a respeito da ação revolucionária."


“Os anos de 1891 a 1894 marcam o início do declínio do espírito revolucionário e a ascensão do reformismo nas fileiras da Social Democracia Alemã.  As forças pessoais que amplamente contribuíram para esse processo foram Friedrich Engels e Eduard Bernstein. Ao contrário de Marx, que foi até o último momento o mesmo ardente revolucionário que fora na época em que escreveu o Manifesto Comunista, Engels se tornou consideravelmente mais suave nos seus últimos quatro anos de vida e usou sua grande autoridade junto aos alemães para conduzi-los à legalidade e às táticas parlamentares. Em 1894, aos 74 anos de idade, ele redigiu seu testamento na forma de um capítulo introdutório, carregado de reformismo, à obra política mais revolucionária de Marx, a saber, As Lutas de Classes na França, originalmente publicada em 1850, que interpretava do ponto de vista da ditadura do proletariado e do determinismo econômico o levante de fevereiro de 1848. Engels, ao republicá-la em 1894, adicionou uma introdução que é uma negação cabal do livro; uma verdadeira palinódia de todo trabalho que ele realizou com Marx. Ele desaprovou a ação revolucionária, e ordenou que o proletariado alemão se apoiasse na legalidade e nas eleições parlamentares. A introdução de Engels desde então foi vista como o testamento político do sucessor autorizado de Marx, sufocando toda a discussão a respeito da ação revolucionária.  O sufrágio universal passou a ser visto como o melhor meio de emancipação da classe trabalhadora. Essas eram as derradeiras opiniões que um dos autores do Manifesto Comunista expressava numa época em que o reformador social e democrata moderado inglês, o sr. G. Lowes Dickinson, em seu ensaio notável sobre o desenvolvimento do Parlamentarismo inglês (1894-95), questionava seriamente a possibilidade do Partido Trabalhista Socialista chegar ao poder por meio de métodos parlamentares, argumentando que a alternância automática e pacífica dos governos conservadores e liberais se devia ao fato de que ambos os partidos tinham certos princípios sociais – ou como o sr. Arthur Balfour disse recentemente, “certas verdades sociais” – em comum, diferindo somente nas aplicações práticas, ao passo que a vitória do Partido Socialista Trabalhista significaria a proclamação de um novo princípio e a criação de uma nova base social.”


(M.B., Testament of Engels, The Labour Monthly, Vol. 2 April-May, 1922 No. 4, pp. 366-371)



3. Adaptação ao terreno

 “Eu nunca disse que o partido socialista deve primeiro ganhar a maioria [no parlamento] e então tomar o poder. Pelo contrário, eu disse expressamente que é aposta certa de dez contra um que nossos governantes, bem antes disso, usarão violência contra nós, e isso vai nos levar do terreno da maioria para o terreno da revolução.” 

"A controvérsia começou de maneira bastante inocente. Em 30 de janeiro de 1895, Richard Fischer, secretário executivo do SPD, escreveu a Engels a respeito de seus planos de publicar alguns do artigos de Marx sobre a França de 1848-1850. O SPD queria que Engels escrevesse uma introdução ao panfleto planejado. (...)

Engels escreveu a Fischer no dia 12 de fevereiro de 1895, prometendo lhe enviar brevemente sua introdução (Marx Engels Collected Works, MECW vol. 50, p. 443). No 26 de fevereiro, ele escreveu ao genro de Marx, o socialista francês Paul Lafargue, sobre o andamento do trabalho. Engels disse a Lafargue: “Esta introdução se tornou um bocado longa, uma vez que, além da revisão geral dos eventos desde aquela data, era necessário explicar por que nós estávamos certos em esperar uma vitória definitiva e eminente do proletariado, por qual razão ela não aconteceu, e de que maneira os eventos mudaram nossa maneira como víamos as coisas.  Isso é importante por causa das novas leis com que estão nos ameaçando na Alemanha (idem, p. 446).

Engels estava se referindo à lei de subversão que o governo apresentou em dezembro de 1894 dirigida contra o SPD. Ele também estava ciente de que o SPD havia sido colocado na ilegalidade pela Lei Anti-Socialista entre 1878 e 1890. Ele disse a Lafargue: “O que é certo é que haverá outra época de perseguição para nossos amigos. Quanto a nós, nossa política deveria ser a de não nos deixarmos provocar nesse momento; nós lutaríamos sem a menor chance de sucesso e seríamos massacrados como Paris em 1871.”  (p.447)

Qual era o teor da Introdução? Engels contrastava as condições de 1848-1850 com aquelas da década de 1890. (…)

No dia 6 de março, Engels recebeu uma carta de Fischer pedindo-lhe que suavizasse o tom do manuscrito. Engels respondeu no dia 8 de março, depois de ter feito algumas mudanças. Ele escreveu: “Fiz o possível para levar em consideração as suas graves objeções, embora eu não possa, por nada nesse mundo, ver o que pode ser objetado a respeito de metade dos trechos que você cita.” E acrescentou: “Minha opinião é que você não tem nada a ganhar defendendo a total abstenção do uso da força. Ninguém iria acreditar em vocês; tampouco algum partido de algum país iria a ponto de abrir mão do direito de resistir à ilegalidade pela força das armas. Eu tenho que levar em consideração que meu texto é lido também por estrangeiros... e simplesmente não posso me comprometer dessa maneira diante deles. (p.457)

Ele termina a carta tão enfaticamente quanto começou: “A legalidade pelo tempo necessário e na medida em que convenha, mas não legalidade a qualquer preço, nem mesmo como modo de falar.” (p.459) (...)

Aonde Engels realmente queria chegar? Ele escreveu a Paul Lafargue em 3 de novembro de 1892: “A era das barricadas e dos combates de rua se foi para sempre; se o exéricto lutar, a resistência se torna loucura. Daí a necessidade de encontrar novas táticas revolucionárias. Eu pensei bastante sobre isso por algum tempo e ainda não cheguei a uma conclusão. (p.21)

Em outra carta a Lafargue em 12 de novembro de 1892. Ele afirmou: “Você imagina agora que arma esplêndida vocês têm tido na França ao longo de quarenta anos de sufrágio universal? Se ao menos as pessoas tivessem sabido usá-la! É mais lenta e mais chata do que o chamado da revolução, mas é dez vezes mais segura, e o que é melhor, ela indica com a mais perfeita exatidão o dia em que o chamado à revolução armada pode ser feita. É aposta certa que o sufrágio universal, usado de maneira inteligente pelos trabalhadores, levará os governantes a violar a legalidade, o que nos colocará na posição mais favorável para fazer a revolução.  (p.29)

N’A Origem da Família, da Propriedade e do Estado” (1884), Engels expressou sentimentos parecidos: “O sufrágio universal é o medidor da maturidade da classe trabalhadora. Ele não pode e nunca será outra coisa no estado moderno, mas isso é o suficiente. No dia em que o termômetro do sufrágio universal mostrar o ponto de ebulição entre os trabalhadores, tantos os eles quanto os capitalistas saberão em que ponto estão. (MECW vol. 26 p.272)

Mas Engels não se tornou um cretino parlamentar. Como ele explicou para o jornal socialista italiano Critica Sociale em fevereiro de 1892: “Eu nunca disse que o partido socialista deve primeiro ganhar a maioria [no parlamento] e então tomar o poder. Pelo contrário, eu disse expressamente que é aposta certa de dez contra um que nossos governantes, bem antes disso, usarão violência contra nós, e isso vai nos levar do terreno da maioria para o terreno da revolução.” (MECW vol. 27 p.271)

(Paul Hampton, Engels’ Political Testament, Workers' Liberty, April 2005 )




4.O testamento de Engels: antologia 

“O modo de luta de 1848 está hoje ultrapassado em todos os aspectos.”



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“Havia quem acreditasse que, com a Comuna de Paris, se enterrara definitivamente o proletariado combativo. Contudo, bem pelo contrário, é a partir da Comuna e da guerra franco-alemã que ele conhece a sua mais poderosa ascensão.”


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“Conforme Marx tinha previsto, a guerra de 1870/71 e a derrota da Comuna deslocaram por momentos o centro de gravidade do movimento operário europeu da França para a Alemanha. Em França, é claro que eram necessários vários anos para que se recuperasse da sangria de maio de 1871.”


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“Deste modo, os operários alemães tinham prestado um segundo grande serviço à sua causa, além do primeiro que residia na sua simples existência como Partido Socialista, o partido mais forte, mais disciplinado e que mais rapidamente crescia. Tinham fornecido aos seus camaradas de todos os países uma nova arma, uma das mais cortantes, mostrando-lhe como se utiliza o sufrágio universal.”


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“Para utilizar as palavras do programa marxista francês, transformaram o direito de voto, de moyen de duperie qu’il a été jusqu’ici, en instrument d’émancipation – de um meio de logro que tinha sido até aqui, em instrumento de emancipação. E se o sufrágio universal não tivesse oferecido qualquer outro ganho além de nos permitir, de três em três anos, contar quantos somos; de, pelo aumento do número de votos inesperadamente rápido e regularmente constatado, aumentar em igual medida a certeza da vitória dos operários e o pavor dos seus adversários, tornando-se assim nosso melhor meio de propaganda; e de nos informar com precisão sobre nossas próprias forças assim como sobre as de todos os partidos adversários e, desse modo, nos oferecer uma medida sem paralelo para as proporções da nossa ação e nos podermos precaver contra a timidez e a temeridade inoportunas; se fosse esta a única vantagem do sufrágio universal isso já era mais do que suficiente. Mas há muitas outras. Na agitação da campanha eleitoral, forneceu-nos um meio impar de entrarmos em contato com as massas populares onde elas ainda se encontram distantes de nós e de obrigar todos os partidos a defender perante todo o povo as suas concepções e ações face aos nossos ataques; além disso, abriu aos nossos representantes uma tribuna no Reichstag, de onde podiam dirigir-se aos seus adversários no Parlamento e às massas fora dele com uma autoridade e uma liberdade totalmente diferentes das que se tem na imprensa e nos comícios. De que serviu ao governo e à burguesia a sua lei anti-socialista, se a agitação durante a campanha eleitoral e os discursos socialista no Reichstag nela abriam brechas continuamente?”


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“E, desse modo, aconteceu que tanto a burguesia como o governo vieram a ter mais medo da ação legal do que da ilegal do partido operário, a recear mais os êxitos eleitorais do que os da rebelião.”


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“De fato, também aqui as condições de luta se tinham alterado essencialmente. A rebelião de velho estilo, a luta de ruas com barricadas, que até 1848 tinha sido decisiva em toda parte, tornou-se consideravelmente antiquada.”


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“Mesmo no período clássico das lutas de ruas, a barricada tinha portanto um efeito mais moral do que material. Era um meio de abalar a firmeza da tropa. Se se aguentava até conseguir este objetivo, alcançava-se a vitória; se não, era a derrota. E este o aspecto principal que é preciso ter em conta mesmo quando se estudam as possibilidades das lutas de rua que eventualmente venham a ter lugar.”


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“Estas possibilidades eram já em 1849 bastante más. Por toda a parte a burguesia se tinha passado para o lado dos governos. A “cultura e a propriedade” saudavam e obsequiavam os soldados que marchavam contra as insurreições. A barricada tinha perdido o seu encanto; o soldado já não via atrás dela o “povo”, mas sim rebeldes, agitadores, saqueadores, partilhadores, a escória da sociedade.”


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“Do lado dos insurrectos, pelo contrário, pioram todas as condições. Dificilmente se dará de novo uma insurreição com a qual todas as camadas do povo simpatizem; na luta de classes nunca se agruparão provavelmente em torno do proletariado todas as camadas médias de um modo tão exclusivo que o partido da reação congregado em redor da burguesia quase desapareça comparativamente. O “povo” aparecerá, pois, sempre dividido e, assim, faltará uma poderosa alavanca que em 1848 se mostrou tão eficaz.”


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“Quer isto dizer que no futuro a luta de ruas deixará de ter importância? De modo nenhum. Significa apenas que desde 1848 as condições se tornaram muito mais desfavoráveis para os combatentes civis, muito mais favoráveis para a tropa. (...) Portanto, ocorrerá menos no princípio de uma grande revolução do que no decurso da mesma e terá que ser levada a cabo com maiores forças. Estas, porém preferirão a luta aberta à tática passiva da barricada.”


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“O tempo dos ataques de surpresa, das revoluções levadas a cabo por pequenas minorias conscientes à frente das massas inconscientes, já passou. Sempre que se trata de uma transformação completa da organização social são as próprias massas que devem estar metidas nela, têm de compreender o que está em causa, por que é que dão o sangue e a vida. Isto foi o que a história dos últimos cinquenta anos nos ensinou. Mas para que as massas entendam o que há a fazer é necessário um longo e perseverante trabalho; e esse trabalho é precisamente o que agora estamos realizando e com um êxito que leva os nossos adversários ao desespero.”


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“É evidente que os nossos camaradas estrangeiros não renunciam ao seu direito à revolução. O direito à revolução é sem dúvida o único “direito” realmente “histórico”, o único em que assentam todos os Estados modernos sem exceção (...). O direito à revolução está tão incontestavelmente reconhecido pela consciência universal que até o general von Boguslawski faz derivar unicamente desse direito do povo o direito ao golpe de Estado que reivindica para o seu imperador.”


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“A ironia da história universal põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os “revolucionário”, os “subversivos”, prosperamos muito melhor com os meios legais do que os ilegais e a subversão. Os partidos da ordem, como eles se intitulam, afundam-se com a legalidade que eles próprios criaram.  Exclamam desesperados como Odilon Barrot: la legalité nous tue, a legalidade nos mata, enquanto nós, com essa legalidade, revigoramos os nossos músculos e ganhamos cores nas faces e parecemos ter vida eterna. E se nós não formo loucos a ponto de lhes fazermos o favor de nos deixarmos arrastar para a luta de rua, não lhes restará outra saída senão serem eles próprios a romper esta legalidade tão fatal para eles.”





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M.B., Testament of Engels | Friedrich Engels, Introdução a Lutas de Classes em França de 1848 a 1850  | Paul Hampton, Engels' Political Testament | Tristram Hunt, Comunista de Casaca: a vida revolucionária de Friedrich Engels, Record, 2010 






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