Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista
Lenin
11. O longo argumento
Nos cinquenta anos que se seguiram à publicação do Manifesto, não houve simplificação da sociedade em duas classes antagônicas nem pauperização absoluta. Mesmo num país de modernização retardatária como a Alemanha, os trabalhadores obtinham avanços salariais e reconhecimento de seus direitos através dos sindicatos e da atuação da bancada social-democrata no parlamento, dentro da legalidade do Estado burguês. Nesse momento, Bernstein passou a defender que o socialismo seria alcançado de maneira evolutiva, gradual e constante através de reformas da democracia liberal e de coalizações dos social-democratas com os partidos burgueses progressistas. A revolução final do proletariado seria apenas uma ilusão ou um mito que nada tinha a ver com os interesses do proletariado ou com as atividade do partido social-democrata (cf. A claraboia e o holofote #25). A revolução não era uma finalidade imanente à história. Se a maturidade do capitalismo coincidisse com a maturidade da consciência revolucionária do proletariado, os trabalhadores da Grã-Bretanha já teriam feito a revolução.
Mas, e se as páginas finais da seção 1 não fossem entendidas como a previsão (enfim errônea) de acontecimentos futuros de acordo com alguma lei invariável (que jamais existiu), mas como a forma que a luta de classes assumiria, considerando a situação concreta mas contingente do capitalismo em 1847? E se esses acontecimentos só pudessem tomar essa direção se houvesse uma participação ativa e decidida do setor mais avançado do proletariado, isto é, do partido comunista descrito na seção 2 do Manifesto? Isso significaria que a burguesia só encontraria seu coveiro se houvesse um partido comunista. Não um partido que defendesse alguma panaceia comunista de organização da sociedade (à maneira dos utópicos), mas um partido que fizesse a mediação entre as condições históricas objetivas e o esforço subjetivo livre de romper e superar a ordem social existente. Tal partido deveria dissolver a antinomia kantiana na qual os teóricos da 2ª Internacional estavam encerrados. Acredito que foi nesse aspecto que a leitura da Ciência da Lógica, de Hegel, foi tão importante para Lenin, pois o libertou dos últimos laços teóricos com o kantismo de Kautsky e Plekhanov e lhe permitiu compreender a necessidade do partido comunista, segundo a interpretação materialista da dialética na qual Marx trabalhava na década de 1840 e que seria levada ao ápice em O Capital.
Meu projeto, que é examinar a fortuna vária do Manifesto, não me permite analisar agora o efeito que o estudo da Ciência da Lógica teve sobre Lenin. Devo me contentar com uma mera trilha de migalhas, ao invés de uma demonstração em regra. A pista inicial se encontra na profusão de apontamentos que Lenin fez da Doutrina do Conceito, especialmente quando, nos capítulos finais da Ciência da Lógica, Hegel mostra que a ideia é síntese do subjetivo e do objetivo, do conceito e da realidade:
"O que ela [a ideia] procura é o verdadeiro, essa identidade do conceito mesmo e da realidade, mas ela apenas primeiramente o procura; pois ela é aqui, onde ela primeiramente é, ainda algo subjetivo. O objeto, que é para o conceito, por conseguinte, certamente também aqui é dado, mas ele não entra no sujeito como objeto [Objekt] que faz efeito ou como objeto [Gegenstand], tal como ele é constituído para si mesmo, ou como representação, e sim o sujeito o transforma em uma determinação conceitual; é o conceito que atua no objeto [Gegenstand], nele se relaciona consigo mesmo e, pelo fato de que dá a si mesmo a sua realidade no objeto [Objekt], encontra a verdade." (G. W. F. Hegel, Ciência da Lógica (excertos), p. 258).
Nos tempos de Marx, "partido" designava uma tendência ou
corrente de opinião, não uma organização. A palavra, tal como aparece no título
do Manifesto, é extremamente enganadora para os leitores de
hoje porque não existia uma organização partidária comunista da qual o Manifesto fosse
o programa (cf. Hal Draper, The Adventures of the Communist
Manifesto, p.204). O que havia era a pequena Liga dos Comunistas,
jamais mencionada no panfleto de Marx e Engels, a qual viria a dissolver-se tão
logo passou a temporada revolucionária de 1848-51. Setenta anos depois, Lenin e Rosa Luxemburgo fundaram partidos
comunistas que alegavam ser herdeiros e continuadores do "partido
comunista" do Manifesto. Essas organizações eram formadas
por militantes que, em nome do internacionalismo, da urgência revolucionária e da luta contra a calcificação burocrática, haviam rompido com os poderosos partidos social-democratas.
Na
época da Primeira Guerra Mundial, a social-democracia já tinha décadas de
experiência bem-sucedida na organização e na educação das massas trabalhadoras
em toda a Europa, contava com milhões de militantes, quadros treinados,
bancadas ativas nos parlamentos e pastas ministeriais em governos de coalizão.
Do ponto de vista teórico, os líderes social-democratas mais velhos haviam sido
respaldados pelo próprio Engels e podiam alegar, com bastante verossimilhança,
que eram os guardiães da herança intelectual de Marx, para a qual forneceram uma
interpretação que, durante duas décadas, constituiu a "ortodoxia"
marxista.
Portanto, a dissidência de Lenin e de Rosa nada tinha de trivial e
não poderia ser comparada a outras cisões, tão comuns na esquerda, como aquela
que levou à fundação do Partido social-democrata alemão independente (USPD) em
1915. Declarar-se comunista em 1917-18 era estar exposto à fúria dos elementos
e dos antigos camaradas, como mostram as reações de surpresa e desgosto com que
os "velhos bolcheviques" receberam as Teses de Abril. Lev
Kamenev se fez porta-voz dos ofendidos num artigo publicado no número
27 do Pravda, em que ele defendia o único ponto de vista
possível para "a Social-democracia revolucionária se
ela pretende e deve permanecer até o fim o partido das massas
revolucionárias do proletariado, ao invés de se tornar um grupo de
propagandistas comunistas." Lenin respondeu que não era momento
para ficar ao lado das massas, porque elas estavam "intoxicadas" com
a ideia chauvinista de defesa diante da agressão estrangeira. "Não
deveríamos ser capazes de permanecer por um tempo em minoria contra a
intoxicação das massas?" (V.I. Lenin, Letters on Tactics).
A decisão de se contrapor às massas em plena efervescência
revolucionária (fazia apenas um mês que o czar Nicolau II abdicara)
requeria muita coragem e pressupunha uma visão nova sobre as tarefas do
partido, uma visão que rompia com a "ortodoxia" de Kaustsky e
Plekhanov e reorganizava completamente o campo teórico marxista, pela adoção de
um outro corpus textual. Ao invés dos escritos finais de
Engels, carregados de cientificismo, e de Das Kapital, lido
como suporte da interpretação economicista do processo histórico, entrava o
Marx das análises da Comuna de Paris, da Crítica ao Programa
de Gotha e, especialmente, do Manifesto - a única
obra que esboçara o papel histórico e político do comunistas.
A bem dizer, o Manifesto nunca deixara de ser
lido, mas os teóricos social-democratas viam nele apenas o venerável documento
histórico do início do movimento proletário organizado (cf. A
claraboia e o holofote #28 IX), momento que fora superado pelo
desenvolvimento capitalista no Ocidente, pelo surgimento de partidos
socialistas de massa e pela possibilidade de eleger representantes dos
trabalhadores para integrar as bancadas parlamentares. Se o Manifesto ainda
suscitava interesse e admiração era pela sintéticas páginas iniciais da seção I
em que se descrevia a espiral vertiginosa do capitalismo como força
econômica modernizadora fadada pela "roda da história" (das
Rad der Geschichte) a ser substituída por outro modo de produção. Contra
essa interpretação historicista, economicista, determinista e, em última
instância, procastinadora, Lenin ressaltou o nexo entre as páginas finais
da seção I e a seção II do Manifesto, precisamente aquelas que
evidenciam o caráter revolucionário do proletariado e as tarefas da sua
vanguarda: o partido comunista.
São os momentos dessa reorganização da leitura do Manifesto que
quero acompanhar neste capítulo do meu folhetim filosófico-político.
O partido comunista do Manifesto
Segundo o Manifesto (cf. A
claraboia e o holofote #12), a burguesia, em sua luta contra as classes sociais remanecentes da antiga ordem, convoca o apoio do proletariado e lhe provê elementos de educação geral e política, que acabam por se tornar armas para combater a própria burguesia triunfante. Quando a luta entre burgueses e proletários atinge seu momento mais agudo, frações da burguesia passam para o lado do
proletariado, a única classe realmente revolucionária entre os inimigos
da burguesia; nessa fração estão os ideólogos burgueses que se elevaram a uma
compreensão teórica mais elevada do movimento histórico como um todo e passam a
compartilhar essa entendimento teórico com o proletariado. Por isso, o proletariado deixa de ser apenas uma multidão de indivíduos que compartilham a mesma condição e torna-se classe consciente de sua condição e de seu papel. As divisões dentro do proletariado, segundo seus diversos graus de desenvolvimento e de consciência se manifesta na formação de partidos, isto é, de tendências do movimento proletário.
Na vanguarda dos partidos do proletariado estão os
comunistas. Eles são a parte mais resoluta e avançada dos partidos
operários, pois já alcançaram um entendimento teórico claro das condições e dos
resultados do movimento operário. Os comunistas são internacionalistas e representam
os interesses do proletariado como um todo. Assim como os outros partidos proletários, os comunistas querem a
constituição do proletariado como classe, a derrubada do domínio burguês, a
conquista do poder pelo proletariado. Mas as propostas dos comunistas não
são baseadas em princípios sectários, inventados ou descobertos por algum
pretenso reformador; elas expressam as condições
históricas do movimento que se desenvolve diante dos olhos de todos. Nos comunistas a consciência do papel histórico da classe operária como um todo coincide com a compreensão da necessidade histórica da derrota da burguesia. A finalidade almejada pelos comunistas é imanente à própria história.
O primeiro passo da revolução proletária será a elevação do
proletariado à condição de classe dominante. O proletariado usará sua
supremacia para retirar da burguesia o controle sobre o capital, para centralizar os meios de produção nas mãos do Estado (isto é, do proletariado organizado
como classe dominante) e para fazer a produção crescer o mais rapidamente
possível. Tudo isso será realizado através de intervenções despóticas (despotischer
Eingriffe) no direito de propriedade e nas condições de produção. Quando o
modo de produção capitalista for destruído, quando desaparecerem as classes
sociais com seus antagonismos, o poder político (isto é, o poder organizado de
uma classe para oprimir as outras) desaparecerá e com ele a própria supremacia
do proletariado. A sociedade burguesa será substituída por uma associação em
que o desenvolvimento livre de cada um será a condição para o livre
desenvolvimento de todos.
O partido comunista é esquecido
Tal como é descrito no Manifesto, o processo histórico
- ou a roda da história - é movido pela expansão mundial do capital e pela sua concentração nas mãos da burguesia. O proletariado aumentaria com
o desaparecimento das outras classes sociais e sua pauperização seria mais
rápida do que o crescimento da população e da riqueza. A partir de um certo
ponto, seria impossível para a burguesia prover as condições mínimas de
subsistência do proletariado que, organizado pela disciplina do trabalho
industrial e consciente de seu papel graças aos ideólogos burgueses,
tornar-se-ia cada vez mais combativo. A queda da burguesia e o
triunfo do proletariado seriam igualmente inevitáveis.
Nos cinquenta anos que se seguiram à publicação do Manifesto, não houve simplificação da sociedade em duas classes antagônicas nem pauperização absoluta. Mesmo num país de modernização retardatária como a Alemanha, os trabalhadores obtinham avanços salariais e reconhecimento de seus direitos através dos sindicatos e da atuação da bancada social-democrata no parlamento, dentro da legalidade do Estado burguês. Nesse momento, Bernstein passou a defender que o socialismo seria alcançado de maneira evolutiva, gradual e constante através de reformas da democracia liberal e de coalizações dos social-democratas com os partidos burgueses progressistas. A revolução final do proletariado seria apenas uma ilusão ou um mito que nada tinha a ver com os interesses do proletariado ou com as atividade do partido social-democrata (cf. A claraboia e o holofote #25). A revolução não era uma finalidade imanente à história. Se a maturidade do capitalismo coincidisse com a maturidade da consciência revolucionária do proletariado, os trabalhadores da Grã-Bretanha já teriam feito a revolução.
Kautsky respondeu ao revisionismo de Bernstein lembrando que, se
não houve pauperização absoluta, é certo que havia uma tendência para a
expansão do proletariado e para a pauperização relativa. Por isso, se as
análises do Manifesto haviam perdido parte de sua validade,
persistia a verdade da luta de classes e a necessidade de um partido autônomo
dos trabalhadores (o partido social-democrata) que evitasse alianças com a
burguesia. O partido e os sindicatos trabalhariam pelas melhoras da condição de
vida das massas dentro da legalidade do Estado burguês até que as massas
estivessem prontas para tomar o poder numa revolução futura. Kautsky mantinha
o horizonte revolucionário como meta do processo histórico, mas garantia
que o partido não tinha como objetivo promover a revolução ( cf. A
claraboia e o holofote #26), mas sim esclarecer o proletariado a respeito
de sua missão:
"Muitos de nossos críticos revisionistas atribuem a Marx a
afirmação de que o desenvolvimento econômico e a luta de classes não somente
criam as condições da produção socialista, mas engendram diretamente a
consciência de sua necessidade. E eis que esses críticos objetam que a
Inglaterra, país do mais avançado desenvolvimento capitalista, está mais alheia
do que qualquer outro país a essa consciência. O projeto do programa leva a
crer que a comissão que elaborou o programa austríaco partilha, também, desse ponto
de vista dito marxista ortodoxo, que refuta o exemplo da Inglaterra. O projeto
afirma: 'Quanto mais o proletariado aumenta em consequência do desenvolvimento
capitalista, mais é obrigado e tem a possibilidade de lutar contra o
capitalismo. O proletariado adquire a consciência' da possibilidade e da
necessidade do socialismo. Por conseguinte, a consciência socialista
constituirá o resultado necessário, direto da luta proletária de classe. Ora,
isto é inteiramente falso. Como doutrina, o socialismo evidentemente tem suas
raízes nas relações econômicas atuais, da mesma forma que a luta de classe do
proletariado; do mesmo modo que esta última, resulta da luta contra a pobreza e
a miséria das massas, provocadas pelo capitalismo. Mas o socialismo e a luta de
classe surgem paralelamente e um não engendra o outro; surgem de premissas
diferentes. A consciência socialista de hoje não pode surgir senão à base de um
profundo conhecimento científico. De fato, a ciência econômica contemporânea
constitui tanto uma condição da produção socialista como, por exemplo, a
técnica moderna, e, apesar de todo o seu desejo, o proletariado não pode
criá-las; ambas surgem do processo social contemporâneo. Ora, o
portador da ciência não é o proletariado, mas os intelectuais burgueses: foi do
cérebro de certos indivíduos dessa categoria que nasceu o socialismo
contemporâneo, e foram eles que o transmitiram aos proletários intelectualmente
mais evoluídos, que o introduziram, em seguida, na luta de classe do
proletariado onde as condições o permitiram. Assim, pois, a consciência
socialista é um elemento importado de fora na luta de classe do proletariado, e
não algo que surgiu espontaneamente. Também o antigo programa de Heinfeld
dizia, muito justamente, que a tarefa da social-democracia é introduzir no
proletariado a consciência de sua situação e a consciência de sua missão. Não
seria necessário fazê-lo se essa consciência emanasse naturalmente da luta de
classe.” (Karl Kautsky, Neue Zeit,
1901-1902, citado por Lenin, Que Fazer? in Obras
Escolhidas, tomo I, p. 107).
A divisão de tarefas parecia clara: ao partido cabiam as tarefas
teóricas, pedagógicas e diretivas, ao proletariado cabiam a luta de classes e a
revolução. Do que se poderia deduzir que, se o proletariado inglês não era revolucionário,
isso não era sinal de alguma insuficiência teórica de Marx, mas da ausência de
um partido que instruísse os operários ingleses.
O partido comunista de Lenin
Lenin concordava que não se deveria contar com alguma consciência de classe que surgisse espontaneamente:
“Diz-se frequentemente: a classe operária vai espontaneamente para
o socialismo. Isto é perfeitamente justo no sentido de que, mais profunda e
exatamente que as outras, a teoria socialista determina as causas dos males da
classe operária: é por isso que os operários assimilam-na com tanta facilidade,
desde que esta teoria não retroceda ela própria diante da espontaneidade, desde
que submeta a si essa espontaneidade. (...) A classe operária vai
espontaneamente para o socialismo, mas a ideologia burguesa, a mais difundida
(e constantemente ressuscitada sob as mais variadas formas) é contudo aquela
que mais se impõe espontaneamente aos operários.” (Que Fazer? in Obras Escolhidas, tomo I,
p. 109 nota).
De maneira geral e abstrata, é verdade que
o proletariado tende a aceitar a teoria socialista, pois é a que melhor explica
a situação da classe operária, mas a própria teoria socialista não deve assumir
essa espontaneidade como algo garantido, uma vez que dentro da sociedade de
classe a ideologia da classe dominante se impõe ao proletariado
de maneira muito concreta e constante. O que está em questão, portanto, não são as
tendências espontâneas, mas a relação de forças conflitantes nas situações
concretas. Era a análise concreta dessas situações sempre mutáveis que deveria
definir, a cada momento, as "tarefas" e as "táticas" do
partido (termos recorrentes nos documentos de orientação escritos por Lenin).
Portanto, se é verdade que Lenin nunca firmou como dogma a recusa da
espontaneidade (cf. Hal Draper, The
Myth of Lenin's Concept of Party) e sé igualmente verdadeiro que, depois da
Revolução de 1905, Lenin renegou a ideia de que, espontaneamente, o
proletariado nunca iria além da consciência sindical (cf. Augusto César
Buonicore, Lenin e o Partido
de Vanguarda), também é verdade que Lenin continuou a aceitar o papel
pedagógico-formativo do partido junto ao proletariado (aspecto em que nunca renegou Kautsky), ao mesmo tempo que desconfiava cada vez mais da espontaneidade
socialista dos próprios representantes do marxismo da época.
Kautsky ensinava que cabia ao partido infundir o socialismo na
classe operária. Para Lenin isso significava convencer os trabalhadores da
necessidade de lutar para romper a ordem burguesa. Todavia, ficava cada vez
mais evidente que numerosos social-democratas defendiam a conciliação com a
burguesia e o Estado (como Bernstein), apoiavam o caminho da modernização
burguesa (como Struve), propunham a luta sindical de curto prazo em
detrimento das tarefas políticas revolucionárias (como os
"economistas" russos com os quais Lenin debate em Que Fazer?). Com o apoio do SPD
à concessão dos créditos de guerra ao Kaiser, em agosto de 1914, tornaram-se
evidentes para Lenin os limites da consciência social-democrata. A ideologia
burguesa se impunha até aos guardiães da ortodoxia marxista e produzia uma
leitura deturpada das obras de Marx.
A acomodação do proletariado inglês já
preocupava Marx e Engels, mas a partir de 1914, Lenin precisava dar conta de mais um fenômeno: a acomodação da própria social-democracia. Ele o fez por meio de uma teoria que procurava explicar tanto a ausência de consciência revolucionária em alguns setores do proletariado quanto o oportunismo e social-chauvinismo dos social-democratas como efeitos de mudanças estruturais do capitalismo no final do século XIX: a livre
concorrência era substituída pelos monopólios; o capital industrial era
submetido ao capital financeiro, colocado sob a proteção direta do Estado; as potências capitalistas passavam a exportar
capitais para os países mais pobres; a disputa imperialista por áreas de
influência se tornava cada vez mais acirrada entre as potências, levando à corrida armamentista. Uma parte do
proletariado era cooptada por meio de salários mais altos e passava a dar apoio
ao Estado e à dominação imperialista. Nessa nova configuração internacional, a
"aristocracia operária" das nações ricas era sócia menor na
exploração capitalista do proletariado e do campesinato das nações mais pobres.
A solidariedade internacional do proletariado era rompida e os próprios
partidos social-democratas dos países ricos abandonavam qualquer tentativa de
lutar contra a ordem existente. Com isso, a ruptura revolucionária somente
poderia começar nos elos mais fracos da cadeia imperialista, com as populações
pobres das nações que sofriam as consequências do jugo imperialista: a
pauperização, a guerra e a fome.
A teoria do imperialismo tinha a dupla vantagem de dar conta de
aspectos da economia capitalista que eram incipientes quando Marx escreveu O Capital e de demonstrar que a única maneira
de recusar a ordem social e política existente era a luta revolucionária, o que
não poderia ser feito dentro dos partidos social-democratas tão dependentes do
Estado e tão próximos das burguesias nacionais. Era preciso retomar a ideia de
um partido comunista como vanguarda revolucionária do
proletariado. Diferentemente dos partidos social-democratas que se
esmeravam na organização e na educação do proletariado a fim de prepará-lo para
a revolução futura, que aconteceria quando as condições históricas estivessem
maduras para tanto (historicismo, determinismo e procrastinação), o partido
comunista seria movido pela urgência revolucionária, ele deveria assumir a
iniciativa da revolução, o que, aos olhos dos social-democratas, era anarquismo ou blanquismo (isto é, ativismo voluntarista e subjetivismo aventureiro).
Do ponto de vista de Lenin as coisas não se passavam assim. Não se
tratava de opor as condições objetivas determinantes à liberdade subjetiva, como faziam os social-democratas da geração de Kautsky,
Bernstein e Plekhanov, seguindo Kant (cf. Crítica
da Razão Pura, Dialética
Transcendental, Antinomia da Razão Pura, Terceiro conflito das ideias
transcendentais), para concluir, como Bernstein, que o socialismo era um ideal
ético (portanto, pertencente ao reino da liberdade e não determinado por fatores objetivos); ou para afirmar, como Kaustsky, que o partido infundia no proletariado
a ciência socialista, não fazia revolução (o partido seria um agente de esclarecimento das condições objetivas, mas ele não seria o sujeito da ação).
Um partido comunista como Marx e Lenin o entendiam deveria ser um
partido que, a partir de uma análise da situação concreta, atuasse
conscientemente para modificar essa situação, aproveitando-se da configuração
objetiva de forças. No Manifesto
Comunista, a configuração objetiva de forças é descrita na seção 1.
Algumas expressões dramáticas como a metáfora da roda da história, que as
classes reacionárias tentam inutilmente fazer voltar, e a igual inevitabilidade
da queda da burguesia e da vitória do proletariado poderiam fazer crer que Marx
contava que as leis de bronze da História iriam dar cabo do modo de produção
capitalista. Se isso fosse verdade, não seria necessário haver um partido
comunista atuante, bastaria haver um partido que instruísse o proletariado e o
preparasse para a missão futura.
Mas, e se as páginas finais da seção 1 não fossem entendidas como a previsão (enfim errônea) de acontecimentos futuros de acordo com alguma lei invariável (que jamais existiu), mas como a forma que a luta de classes assumiria, considerando a situação concreta mas contingente do capitalismo em 1847? E se esses acontecimentos só pudessem tomar essa direção se houvesse uma participação ativa e decidida do setor mais avançado do proletariado, isto é, do partido comunista descrito na seção 2 do Manifesto? Isso significaria que a burguesia só encontraria seu coveiro se houvesse um partido comunista. Não um partido que defendesse alguma panaceia comunista de organização da sociedade (à maneira dos utópicos), mas um partido que fizesse a mediação entre as condições históricas objetivas e o esforço subjetivo livre de romper e superar a ordem social existente. Tal partido deveria dissolver a antinomia kantiana na qual os teóricos da 2ª Internacional estavam encerrados. Acredito que foi nesse aspecto que a leitura da Ciência da Lógica, de Hegel, foi tão importante para Lenin, pois o libertou dos últimos laços teóricos com o kantismo de Kautsky e Plekhanov e lhe permitiu compreender a necessidade do partido comunista, segundo a interpretação materialista da dialética na qual Marx trabalhava na década de 1840 e que seria levada ao ápice em O Capital.
Onde entra Hegel
Durante o período em que estudou a Ciência da Lógica na biblioteca de Berna, Lenin fez
numerosas notas e observações cujo sentido permanece em discussão (cf. Cadernos sobre a Dialética de Hegel,
editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 2011). Apesar de sua hostilidade a Hegel,
Althusser reconheceu o entusiasmo de Lenin com o quase-materialismo
da seção sobre a Ideia Absoluta, que conclui a Ciência da Lógica (cf. Lenin before Hegel,
1969); Michel Löwy colocou em evidência o papel transformador que a
leitura da Ciência da Lógica teve sobre Lenin (cf. De la Grand Logique de Hegel à la
Gare Finlandaise de Petrograd, 1970);
Kevin Anderson estudou extensamente o hegelianismo de Lenin (cf. Hegel and the Western Marxism,
1995); Stathis Kouvelakis examinou a maneira como Lenin interpretou o idealismo
de Hegel à luz da teoria materialista do reflexo que o próprio Lenin havido
defendido em Materialismo e
Empiriocriticismo (cf. Lenin
lector de Hegel, 2010). Esses estudos analisaram como Lenin recebeu a
dialética hegeliana e procuraram os traços dessa recepção nos textos que ele
escreveu a partir de 1915. O que eu defendo, em acréscimo a essa linha de
pesquisa, é que a proposta, anunciada nas Teses de Abril e tornada oficial no Sétimo Congresso Extraordinário do PCR (bolchevique) em março de 1918, de transformar o partido social-democrata
bolchevique em partido comunista foi, em si mesma, um dos efeitos importantes dessa leitura.
Meu projeto, que é examinar a fortuna vária do Manifesto, não me permite analisar agora o efeito que o estudo da Ciência da Lógica teve sobre Lenin. Devo me contentar com uma mera trilha de migalhas, ao invés de uma demonstração em regra. A pista inicial se encontra na profusão de apontamentos que Lenin fez da Doutrina do Conceito, especialmente quando, nos capítulos finais da Ciência da Lógica, Hegel mostra que a ideia é síntese do subjetivo e do objetivo, do conceito e da realidade:
"O que ela [a ideia] procura é o verdadeiro, essa identidade do conceito mesmo e da realidade, mas ela apenas primeiramente o procura; pois ela é aqui, onde ela primeiramente é, ainda algo subjetivo. O objeto, que é para o conceito, por conseguinte, certamente também aqui é dado, mas ele não entra no sujeito como objeto [Objekt] que faz efeito ou como objeto [Gegenstand], tal como ele é constituído para si mesmo, ou como representação, e sim o sujeito o transforma em uma determinação conceitual; é o conceito que atua no objeto [Gegenstand], nele se relaciona consigo mesmo e, pelo fato de que dá a si mesmo a sua realidade no objeto [Objekt], encontra a verdade." (G. W. F. Hegel, Ciência da Lógica (excertos), p. 258).
A ideia é o verdadeiro, isto é, o encontro entre o conceito (o sujeito, o para
si) e a realidade (o objeto, o em si). Mas nesse encontro, o objeto não se dá
como algo independente do sujeito (Objekt),
nem como uma representação ou um correlato objetivo da consciência (Gegenstand).
O mesmo processo constitutivo que transforma nossas representações, constitui racionalmente a riqueza de relações e aspectos do objeto (Objekt).
Essa realização racional do conceito como conhecimento é a Ideia da Verdade,
assim como a realização racional do conceito como ação orientada para um fim é
a Ideia do Bem. A Ideia hegeliana supera a oposição entre as condições
objetivas e as condições subjetivas do conhecimento e da ação. Do ponto de vista da atividade revolucionária almejada por Lenin, o papel transformador do
sujeito era possível e legítimo porque as mesmas determinações que definem os fins racionais
são aqueles que definem as condições históricas da ação. O Espírito só se lança a tarefas
que ele pode realizar.
A Ideia Absoluta - unidade da ideia teórica e
da ideia prática que, segundo Hegel, reconduz à vida, mas supera a sua imediatidade - deveria ser interpretada, de maneira materialista, como práxis que configura e transforma as
relações sociais e que constitui a medida de verdade de qualquer teoria social
e de qualquer ação política.
“Tudo isto no capítulo “A Ideia do conhecimento” (capítulo II) -
na passagem para a Ideia Absoluta (capítulo III) - ou seja: sem nenhuma dúvida,
a prática, para Hegel, constitui um elo na análise do processo do conhecimento,
notadamente como passagem à verdade objetiva (“absoluta”, como diz Hegel).
Marx, portanto, segue diretamente Hegel, introduzindo o critério da prática na
teoria do conhecimento: cf. as teses sobre Feuerbach.” (V. I. Lenin, Cadernos sobre a Dialética de Hegel, p.
178)
Se o partido social-democrata era o partido da teoria e os
anarquistas queriam a ação direta, o partido comunista seria o
partido da práxis: isto é, o partido que buscava o conhecimento das condições
determinantes da história para transformar o mundo pela ação.
Depois da Revolução
Sete meses depois da apresentação
das Teses de Abril, o partido de Lenin tomou o poder. Não demorou para que o Partido Comunista da Rússia, cujo objetivo declarado era destruir a máquina do Estado, se tornasse o
poder de fato de um Estado burocrático e ditatorial, dotado de exército, gendarmeria e polícia secreta. Contudo, nada disso impediu que o partido fosse
celebrado como uma inteligência coletiva e como poder dirigente e educador (cf. A
claraboia e o holofote #28 I) no melhor estilo dos pesadelos de Orwell:
“O partido lhes revela aquilo que pensam. O partido é o vínculo que
os une a todos, de ponta a ponta do país. O partido é sua consciência, sua
inteligência, sua organização.” (Victor Serge)
"A ditadura da classe operária acha sua expressão na ditadura
do partido" (Zinoviev)
Pelo princípio de caridade, devemos deixar à direita sanhosa a suposição de que Lenin e os bolcheviques de 1917 eram apenas mentirosos ávidos de
poder; tampouco devemos ter pressa em acusar de bajulação servil
os entusiastas do partido na década de 20. Eliminadas essas duas
possibilidades, é preciso entender por que o enorme esforço teórico-prático de
Lenin teve como resultado uma complexa combinação de vitória e de fracasso, que
se tornou o mais pesado fardo do marxismo ao longo do século XX, turvando definitivamente
qualquer leitura do Manifesto. Acredito que os limites prático-teóricos do pensamento de
Lenin talvez fiquem mais evidentes se deslocarmos o centro de observação e nos
beneficiarmos da paralaxe. Com esse objetivo, nos próximos capítulos, vou falar sobre uma teórica
ao mesmo tempo próxima e distante de Lenin: Rosa Luxemburg.
********
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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein
Ernst Bloch
Из искры возгорится пламя