terça-feira, 28 de abril de 2015

A claraboia e o holofote #28 (XI)









Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Lenin 

11. O longo argumento


Nos tempos de Marx, "partido" designava uma tendência ou corrente de opinião, não uma organização. A palavra, tal como aparece no título do Manifesto, é extremamente enganadora para os leitores de hoje porque não existia uma organização partidária comunista da qual o Manifesto fosse o programa (cf. Hal Draper, The Adventures of the Communist Manifesto, p.204). O que havia era a pequena Liga dos Comunistas, jamais mencionada no panfleto de Marx e Engels, a qual viria a dissolver-se tão logo passou a temporada revolucionária de 1848-51. Setenta anos depois, Lenin e Rosa Luxemburgo fundaram partidos comunistas que alegavam ser herdeiros e continuadores do "partido comunista" do Manifesto. Essas organizações eram formadas por militantes que, em nome do internacionalismo, da urgência revolucionária e da luta contra a calcificação burocrática, haviam rompido com os poderosos partidos social-democratas. 

Na época da Primeira Guerra Mundial, a social-democracia já tinha décadas de experiência bem-sucedida na organização e na educação das massas trabalhadoras em toda a Europa, contava com milhões de militantes, quadros treinados, bancadas ativas nos parlamentos e pastas ministeriais em governos de coalizão. Do ponto de vista teórico, os líderes social-democratas mais velhos haviam sido respaldados pelo próprio Engels e podiam alegar, com bastante verossimilhança, que eram os guardiães da herança intelectual de Marx, para a qual forneceram uma interpretação que, durante duas décadas, constituiu a "ortodoxia" marxista.

Portanto, a dissidência de Lenin e de Rosa nada tinha de trivial e não poderia ser comparada a outras cisões, tão comuns na esquerda, como aquela que levou à fundação do Partido social-democrata alemão independente (USPD) em 1915. Declarar-se comunista em 1917-18 era estar exposto à fúria dos elementos e dos antigos camaradas, como mostram as reações de surpresa e desgosto com que os "velhos bolcheviques" receberam as Teses de Abril.  Lev Kamenev  se fez porta-voz dos ofendidos num artigo publicado no número 27 do Pravda,  em que ele defendia o único ponto de vista possível para "a Social-democracia revolucionária se ela pretende e deve permanecer até o fim o partido das massas revolucionárias do proletariado, ao invés de se tornar um grupo de propagandistas comunistas." Lenin respondeu que não era momento para ficar ao lado das massas, porque elas estavam "intoxicadas" com a ideia chauvinista de defesa diante da agressão estrangeira. "Não deveríamos ser capazes de permanecer por um tempo em minoria contra a intoxicação das massas?" (V.I. Lenin, Letters on Tactics). 

A decisão de se contrapor às massas em plena efervescência revolucionária (fazia apenas um mês que o czar Nicolau II abdicara)  requeria muita coragem e pressupunha uma visão nova sobre as tarefas do partido, uma visão que rompia com a "ortodoxia" de Kaustsky e Plekhanov e reorganizava completamente o campo teórico marxista, pela adoção de um outro corpus textual. Ao invés dos escritos finais de Engels, carregados de cientificismo, e de Das Kapital, lido como suporte da interpretação economicista do processo histórico, entrava o Marx  das análises da Comuna de Paris, da Crítica ao Programa de Gotha e, especialmente, do Manifesto - a única obra que esboçara o papel histórico e político do comunistas.

A bem dizer, o Manifesto nunca deixara de ser lido, mas os teóricos social-democratas viam nele apenas o venerável documento histórico do início do movimento proletário organizado (cf. A claraboia e o holofote #28 IX), momento que fora superado pelo desenvolvimento capitalista no Ocidente, pelo surgimento de partidos socialistas de massa e pela possibilidade de eleger representantes dos trabalhadores para integrar as bancadas parlamentares. Se o Manifesto ainda suscitava interesse e admiração era pela sintéticas páginas iniciais da seção I em que se descrevia a espiral vertiginosa do capitalismo como força econômica modernizadora fadada pela "roda da história" (das Rad der Geschichte) a ser substituída por outro modo de produção. Contra essa interpretação historicista, economicista, determinista e, em última instância, procastinadora, Lenin ressaltou o nexo entre as páginas finais da seção I e a seção II do Manifesto, precisamente aquelas que evidenciam o caráter revolucionário do proletariado e as tarefas da sua vanguarda: o partido comunista. 

São os momentos dessa reorganização da leitura do Manifesto que quero acompanhar neste capítulo do meu folhetim filosófico-político.


O partido comunista do Manifesto

Segundo o Manifesto (cf. A claraboia e o holofote #12), a burguesia, em sua luta contra as classes sociais remanecentes da antiga ordem, convoca o apoio do proletariado e lhe provê elementos de educação geral e política, que acabam por se tornar armas para combater a própria burguesia triunfante. Quando a luta entre burgueses e proletários atinge seu momento mais agudo, frações da burguesia passam para o lado do proletariado, a única classe realmente revolucionária entre os inimigos da burguesia; nessa fração estão os ideólogos burgueses que se elevaram a uma compreensão teórica mais elevada do movimento histórico como um todo e passam a compartilhar essa entendimento teórico com o proletariado. Por isso, o proletariado deixa de ser apenas uma multidão de indivíduos que compartilham a mesma condição e torna-se classe consciente de sua condição e de seu papel. As divisões dentro do proletariado, segundo seus diversos graus de desenvolvimento e de consciência se manifesta na formação de partidos, isto é, de tendências do movimento proletário.

Na vanguarda dos partidos do proletariado estão os comunistas.  Eles são a parte mais resoluta e avançada dos partidos operários, pois já alcançaram um entendimento teórico claro das condições e dos resultados do movimento operário. Os comunistas são internacionalistas e representam os interesses do proletariado como um todo. Assim como os outros partidos proletários, os comunistas querem a constituição do proletariado como classe, a derrubada do domínio burguês, a conquista do poder pelo proletariado. Mas as propostas dos comunistas não são baseadas em princípios sectários, inventados ou descobertos por algum pretenso reformador; elas expressam as condições históricas do movimento que se desenvolve diante dos olhos de todos. Nos comunistas a consciência do papel histórico da classe operária como um todo coincide com a compreensão da necessidade histórica da derrota da burguesia. A finalidade almejada pelos comunistas é imanente à própria história.

O primeiro passo da revolução proletária será a elevação do proletariado à condição de classe dominante. O proletariado usará sua supremacia para retirar da burguesia o controle sobre o capital, para centralizar os meios de produção nas mãos do Estado (isto é, do proletariado organizado como classe dominante) e para fazer a produção crescer o mais rapidamente possível. Tudo isso será realizado através de intervenções despóticas (despotischer Eingriffe) no direito de propriedade e nas condições de produção. Quando o modo de produção capitalista for destruído, quando desaparecerem as classes sociais com seus antagonismos, o poder político (isto é, o poder organizado de uma classe para oprimir as outras) desaparecerá e com ele a própria supremacia do proletariado. A sociedade burguesa será substituída por uma associação em que o desenvolvimento livre de cada um será a condição para o livre desenvolvimento de todos.

  
O partido comunista é esquecido 

Tal como é descrito no Manifesto, o processo histórico - ou a roda da história - é movido pela expansão mundial do capital e pela sua concentração nas mãos da burguesia. O proletariado aumentaria com o desaparecimento das outras classes sociais e sua pauperização seria mais rápida do que o crescimento da população e da riqueza. A partir de um certo ponto, seria impossível para a burguesia prover as condições mínimas de subsistência do proletariado que, organizado pela disciplina do trabalho industrial e consciente de seu papel graças aos ideólogos burgueses, tornar-se-ia cada vez mais combativo. A queda da burguesia  e o triunfo do proletariado seriam igualmente inevitáveis.

Nos cinquenta anos que se seguiram à publicação do Manifesto, não houve simplificação da sociedade em duas classes antagônicas nem pauperização absoluta. Mesmo num país de modernização retardatária como a Alemanha, os trabalhadores obtinham avanços salariais e reconhecimento de seus direitos através dos sindicatos e da atuação da bancada social-democrata no parlamento, dentro da legalidade do Estado burguês. Nesse momento, Bernstein passou a defender que o socialismo seria alcançado de maneira evolutiva, gradual e constante através de reformas da democracia liberal e de coalizações dos social-democratas com os partidos burgueses progressistas. A revolução final do proletariado seria apenas uma ilusão ou um mito que nada tinha a ver com os interesses do proletariado ou com as atividade do partido social-democrata (cf. A claraboia e o holofote #25). A revolução não era uma finalidade imanente à história. Se
a maturidade do capitalismo coincidisse com a maturidade da consciência revolucionária do proletariado, os trabalhadores da Grã-Bretanha já teriam feito a revolução.

Kautsky respondeu ao revisionismo de Bernstein lembrando que, se não houve pauperização absoluta, é certo que havia uma tendência para a expansão do proletariado e para a pauperização relativa. Por isso, se as análises do Manifesto  haviam perdido parte de sua validade, persistia a verdade da luta de classes e a necessidade de um partido autônomo dos trabalhadores (o partido social-democrata) que evitasse alianças com a burguesia. O partido e os sindicatos trabalhariam pelas melhoras da condição de vida das massas dentro da legalidade do Estado burguês até que as massas estivessem prontas para tomar o poder numa revolução futura. Kautsky mantinha o horizonte revolucionário como meta do processo histórico, mas garantia que o partido não tinha como objetivo promover a revolução ( cf. A claraboia e o holofote #26), mas sim esclarecer o proletariado a respeito de sua missão:

"Muitos de nossos críticos revisionistas atribuem a Marx a afirmação de que o desenvolvimento econômico e a luta de classes não somente criam as condições da produção socialista, mas engendram diretamente a consciência de sua necessidade. E eis que esses críticos objetam que a Inglaterra, país do mais avançado desenvolvimento capitalista, está mais alheia do que qualquer outro país a essa consciência. O projeto do programa leva a crer que a comissão que elaborou o programa austríaco partilha, também, desse ponto de vista dito marxista ortodoxo, que refuta o exemplo da Inglaterra. O projeto afirma: 'Quanto mais o proletariado aumenta em consequência do desenvolvimento capitalista, mais é obrigado e tem a possibilidade de lutar contra o capitalismo. O proletariado adquire a consciência' da possibilidade e da necessidade do socialismo. Por conseguinte, a consciência socialista constituirá o resultado necessário, direto da luta proletária de classe. Ora, isto é inteiramente falso. Como doutrina, o socialismo evidentemente tem suas raízes nas relações econômicas atuais, da mesma forma que a luta de classe do proletariado; do mesmo modo que esta última, resulta da luta contra a pobreza e a miséria das massas, provocadas pelo capitalismo. Mas o socialismo e a luta de classe surgem paralelamente e um não engendra o outro; surgem de premissas diferentes. A consciência socialista de hoje não pode surgir senão à base de um profundo conhecimento científico. De fato, a ciência econômica contemporânea constitui tanto uma condição da produção socialista como, por exemplo, a técnica moderna, e, apesar de todo o seu desejo, o proletariado não pode criá-las; ambas surgem do processo social contemporâneo. Ora, o portador da ciência não é o proletariado, mas os intelectuais burgueses: foi do cérebro de certos indivíduos dessa categoria que nasceu o socialismo contemporâneo, e foram eles que o transmitiram aos proletários intelectualmente mais evoluídos, que o introduziram, em seguida, na luta de classe do proletariado onde as condições o permitiram. Assim, pois, a consciência socialista é um elemento importado de fora na luta de classe do proletariado, e não algo que surgiu espontaneamente. Também o antigo programa de Heinfeld dizia, muito justamente, que a tarefa da social-democracia é introduzir no proletariado a consciência de sua situação e a consciência de sua missão. Não seria necessário fazê-lo se essa consciência emanasse naturalmente da luta de classe.” (Karl Kautsky, Neue Zeit, 1901-1902, citado por Lenin, Que Fazer? in Obras Escolhidas, tomo I, p. 107).

A divisão de tarefas parecia clara: ao partido cabiam as tarefas teóricas, pedagógicas e diretivas, ao proletariado cabiam a luta de classes e a revolução. Do que se poderia deduzir que, se o proletariado inglês não era revolucionário, isso não era sinal de alguma insuficiência teórica de Marx, mas da ausência de um partido que instruísse os operários ingleses.


O partido comunista de Lenin

Lenin concordava que não se deveria contar com alguma consciência de classe que surgisse espontaneamente:

“Diz-se frequentemente: a classe operária vai espontaneamente para o socialismo. Isto é perfeitamente justo no sentido de que, mais profunda e exatamente que as outras, a teoria socialista determina as causas dos males da classe operária: é por isso que os operários assimilam-na com tanta facilidade, desde que esta teoria não retroceda ela própria diante da espontaneidade, desde que submeta a si essa espontaneidade. (...) A classe operária vai espontaneamente para o socialismo, mas a ideologia burguesa, a mais difundida (e constantemente ressuscitada sob as mais variadas formas) é contudo aquela que mais se impõe espontaneamente aos operários.” (Que Fazer? in Obras Escolhidas, tomo I, p. 109 nota).

De maneira geral e abstrata, é verdade que o proletariado tende a aceitar a teoria socialista, pois é a que melhor explica a situação da classe operária, mas a própria teoria socialista não deve assumir essa espontaneidade como algo garantido, uma vez que dentro da sociedade de classe a ideologia da classe dominante se impõe ao proletariado de maneira muito concreta e constante. O que está em questão, portanto, não são as tendências espontâneas, mas a relação de forças conflitantes nas situações concretas. Era a análise concreta dessas situações sempre mutáveis que deveria definir, a cada momento, as "tarefas" e as "táticas" do partido (termos recorrentes nos documentos de orientação escritos por Lenin). Portanto, se é verdade que Lenin nunca firmou como dogma a recusa da espontaneidade (cf. Hal Draper, The Myth of Lenin's Concept of Party) e sé igualmente verdadeiro que, depois da Revolução de 1905, Lenin renegou a ideia de que, espontaneamente, o proletariado nunca iria além da consciência sindical (cf. Augusto César Buonicore, Lenin e o Partido de Vanguarda), também é verdade que Lenin continuou a aceitar o papel pedagógico-formativo do partido junto ao proletariado (aspecto em que nunca renegou Kautsky), ao mesmo tempo que desconfiava cada vez mais da espontaneidade socialista dos próprios representantes do marxismo da época. 

Kautsky ensinava que cabia ao partido infundir o socialismo na classe operária. Para Lenin isso significava convencer os trabalhadores da necessidade de lutar para romper a ordem burguesa. Todavia, ficava cada vez mais evidente que numerosos social-democratas defendiam a conciliação com a burguesia e o Estado (como Bernstein), apoiavam o caminho da modernização burguesa (como Struve),  propunham a luta sindical de curto prazo em detrimento das tarefas políticas revolucionárias (como os "economistas" russos com os quais Lenin debate em Que Fazer?). Com o apoio do SPD à concessão dos créditos de guerra ao Kaiser, em agosto de 1914, tornaram-se evidentes para Lenin os limites da consciência social-democrata. A ideologia burguesa se impunha até aos guardiães da ortodoxia marxista e produzia uma leitura deturpada das obras de Marx.

A acomodação do proletariado inglês já preocupava Marx e Engels, mas a partir de 1914, Lenin precisava dar conta de mais um fenômeno: a acomodação da própria social-democracia. Ele o fez por meio de uma teoria que procurava explicar tanto a ausência de consciência revolucionária em alguns setores do proletariado quanto o oportunismo e social-chauvinismo dos social-democratas como efeitos de mudanças estruturais do capitalismo no final do século XIX: a livre concorrência era substituída pelos monopólios; o capital industrial era submetido ao capital financeiro, colocado sob a proteção direta do Estado; as potências capitalistas passavam a exportar capitais para os países mais pobres; a disputa imperialista por áreas de influência se tornava cada vez mais acirrada entre as potências, levando à corrida armamentista. Uma parte do proletariado era cooptada por meio de salários mais altos e passava a dar apoio ao Estado e à dominação imperialista. Nessa nova configuração internacional, a "aristocracia operária" das nações ricas era sócia menor na exploração capitalista do proletariado e do campesinato das nações mais pobres. A solidariedade internacional do proletariado era rompida e os próprios partidos social-democratas dos países ricos abandonavam qualquer tentativa de lutar contra a ordem existente. Com isso, a ruptura revolucionária somente poderia começar nos elos mais fracos da cadeia imperialista, com as populações pobres das nações que sofriam as consequências do jugo imperialista: a pauperização, a guerra e a fome.

A teoria do imperialismo tinha a dupla vantagem de dar conta de aspectos da economia capitalista que eram incipientes quando Marx escreveu O Capital e de demonstrar que a única maneira de recusar a ordem social e política existente era a luta revolucionária, o que não poderia ser feito dentro dos partidos social-democratas tão dependentes do Estado e tão próximos das burguesias nacionais. Era preciso retomar a ideia de um partido comunista como vanguarda revolucionária do proletariado. Diferentemente dos partidos social-democratas que se esmeravam na organização e na educação do proletariado a fim de prepará-lo para a revolução futura, que aconteceria quando as condições históricas estivessem maduras para tanto (historicismo, determinismo e procrastinação), o partido comunista seria movido pela urgência revolucionária, ele deveria assumir a iniciativa da revolução, o que, aos olhos dos social-democratas, era anarquismo ou blanquismo (isto é, ativismo voluntarista e subjetivismo aventureiro).

Do ponto de vista de Lenin as coisas não se passavam assim. Não se tratava de opor as condições objetivas determinantes à liberdade subjetiva, como faziam os social-democratas da geração de Kautsky, Bernstein e Plekhanov, seguindo Kant (cf. Crítica da Razão Pura, Dialética Transcendental, Antinomia da Razão Pura, Terceiro conflito das ideias transcendentais), para concluir, como Bernstein, que o socialismo era um ideal ético (portanto, pertencente ao reino da liberdade e não determinado por fatores objetivos); ou para afirmar, como Kaustsky, que o partido infundia no proletariado a ciência socialista, não fazia revolução (o partido seria um agente de esclarecimento das condições objetivas, mas ele não seria o sujeito da ação).  

Um partido comunista como Marx e Lenin o entendiam deveria ser um partido que, a partir de uma análise da situação concreta, atuasse conscientemente para modificar essa situação, aproveitando-se da configuração objetiva de forças. No Manifesto Comunista, a configuração objetiva de forças é descrita na seção 1.  Algumas expressões dramáticas como a metáfora da roda da história, que as classes reacionárias tentam inutilmente fazer voltar, e a igual inevitabilidade da queda da burguesia e da vitória do proletariado poderiam fazer crer que Marx contava que as leis de bronze da História iriam dar cabo do modo de produção capitalista. Se isso fosse verdade, não seria necessário haver um partido comunista atuante, bastaria haver um partido que instruísse o proletariado e o preparasse para a missão futura.

Mas, e se  as páginas finais da seção 1 não fossem entendidas como a previsão (enfim errônea) de acontecimentos futuros de acordo com alguma lei invariável (que jamais existiu), mas como a forma que a luta de classes assumiria, considerando a situação concreta mas contingente do capitalismo em 1847? E se esses acontecimentos só pudessem tomar essa direção se houvesse uma participação ativa e decidida do setor mais avançado do proletariado, isto é, do partido comunista descrito na seção 2 do Manifesto?  Isso significaria que a burguesia só encontraria seu coveiro se houvesse um partido comunista. Não um partido que defendesse alguma panaceia comunista de organização da sociedade (à maneira dos utópicos), mas um partido que fizesse a mediação entre as condições históricas objetivas e o esforço subjetivo livre de romper e superar a ordem social existente. Tal partido deveria dissolver a antinomia kantiana na qual os teóricos da 2ª Internacional estavam encerrados. Acredito que foi nesse aspecto que a leitura da Ciência da Lógica, de Hegel, foi tão importante para Lenin, pois o libertou dos últimos laços teóricos com o kantismo de Kautsky e Plekhanov e lhe permitiu compreender a necessidade do partido comunista, segundo a interpretação materialista da dialética na qual Marx trabalhava na década de 1840 e que seria levada ao ápice em O Capital.



Onde entra Hegel

Durante o período em que estudou a Ciência da Lógica na biblioteca de Berna, Lenin fez numerosas notas e observações cujo sentido permanece em discussão (cf. Cadernos sobre a Dialética de Hegel, editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 2011). Apesar de sua hostilidade a Hegel, Althusser reconheceu o entusiasmo de Lenin com o quase-materialismo da seção sobre a Ideia Absoluta, que conclui a Ciência da Lógica (cf. Lenin before Hegel, 1969); Michel Löwy colocou em evidência o papel transformador que a leitura da Ciência da Lógica teve sobre Lenin (cf. De la Grand Logique de Hegel à la Gare Finlandaise de Petrograd, 1970); Kevin Anderson estudou extensamente o hegelianismo de Lenin (cf. Hegel and the Western Marxism, 1995); Stathis Kouvelakis examinou a maneira como Lenin interpretou o idealismo de Hegel à luz da teoria materialista do reflexo que o próprio Lenin havido defendido em Materialismo e Empiriocriticismo (cf. Lenin lector de Hegel, 2010). Esses estudos analisaram como Lenin recebeu a dialética hegeliana e procuraram os traços dessa recepção nos textos que ele escreveu a partir de 1915. O que eu defendo, em acréscimo a essa linha de pesquisa, é que a proposta, anunciada nas Teses de Abril e tornada oficial no Sétimo Congresso Extraordinário do PCR (bolchevique) em março de 1918, de transformar o partido social-democrata bolchevique em partido comunista foi, em si mesma, um dos efeitos importantes dessa leitura. 

Meu projeto, que é examinar a fortuna vária do Manifesto, não me permite analisar agora o efeito que o estudo da Ciência da Lógica teve sobre Lenin. Devo me contentar com uma mera trilha de migalhas, ao invés de uma demonstração em regra. A pista inicial se encontra na profusão de apontamentos que Lenin fez da Doutrina do Conceito, especialmente quando, nos capítulos finais da Ciência da Lógica, Hegel mostra que a ideia é síntese do subjetivo e do objetivo, do conceito e da realidade:

"O que ela [a ideia] procura é o verdadeiro, essa identidade do conceito mesmo e da realidade, mas ela apenas primeiramente o procura; pois ela é aqui, onde ela primeiramente é, ainda algo subjetivo. O objeto, que é para o conceito, por conseguinte, certamente também aqui é dado, mas ele não entra no sujeito como objeto [Objekt] que faz efeito ou como objeto [Gegenstand], tal como ele é constituído para si mesmo, ou como representação, e sim o sujeito o transforma em uma determinação conceitual; é o conceito que atua no objeto [Gegenstand], nele se relaciona consigo mesmo e, pelo fato de que dá a si mesmo a sua realidade no objeto [Objekt], encontra a verdade." (G. W. F. Hegel, Ciência da Lógica (excertos),  p. 258).


A ideia é o verdadeiro, isto é, o encontro entre o conceito (o sujeito, o para si) e a realidade (o objeto, o em si). Mas nesse encontro, o objeto não se dá como algo independente do sujeito (Objekt), nem como uma representação ou um correlato objetivo da consciência (Gegenstand).  O mesmo processo constitutivo que transforma nossas representações, constitui racionalmente a riqueza de relações e aspectos do objeto (Objekt). Essa realização racional do conceito como conhecimento é a Ideia da Verdade, assim como a realização racional do conceito como ação orientada para um fim é a Ideia do Bem. A Ideia hegeliana supera a oposição entre as condições objetivas e as condições subjetivas do conhecimento e da ação. Do ponto de vista da atividade revolucionária almejada por Lenin, o papel transformador do sujeito era possível e legítimo porque as mesmas determinações que definem os fins racionais são aqueles que definem as condições históricas da ação. O Espírito só se lança a tarefas que ele pode realizar.  

A Ideia Absoluta - unidade da ideia teórica e da ideia prática que, segundo Hegel, reconduz à vida, mas supera a sua imediatidade - deveria ser interpretada, de maneira materialista, como práxis que configura e transforma as relações sociais e que constitui a medida de verdade de qualquer teoria social e de qualquer ação política.

“Tudo isto no capítulo “A Ideia do conhecimento” (capítulo II) - na passagem para a Ideia Absoluta (capítulo III) - ou seja: sem nenhuma dúvida, a prática, para Hegel, constitui um elo na análise do processo do conhecimento, notadamente como passagem à verdade objetiva (“absoluta”, como diz Hegel). Marx, portanto, segue diretamente Hegel, introduzindo o critério da prática na teoria do conhecimento: cf. as teses sobre Feuerbach.” (V. I. Lenin, Cadernos sobre a Dialética de Hegel, p. 178)

Se o partido social-democrata era o partido da teoria e os anarquistas queriam a ação direta, o partido comunista seria o partido da práxis: isto é, o partido que buscava o conhecimento das condições determinantes da história para transformar o mundo pela ação. 


Depois da Revolução

Sete meses depois da apresentação das Teses de Abril, o partido de Lenin tomou o poder. Não demorou para que o Partido Comunista da Rússia, cujo objetivo declarado era destruir a máquina do Estado, se tornasse o poder de fato de um Estado burocrático e ditatorial, dotado de exército, gendarmeria e polícia secreta. Contudo, nada disso impediu que o partido fosse celebrado como uma inteligência coletiva e como poder dirigente e educador (cf. A claraboia e o holofote #28 I) no melhor estilo dos pesadelos de Orwell:

“O partido lhes revela aquilo que pensam. O partido é o vínculo que os une a todos, de ponta a ponta do país. O partido é sua consciência, sua inteligência, sua organização.” (Victor Serge)

"A ditadura da classe operária acha sua expressão na ditadura do partido" (Zinoviev)

Pelo princípio de caridade, devemos deixar à direita sanhosa a suposição de que Lenin e os bolcheviques de 1917 eram apenas mentirosos ávidos de poder; tampouco devemos ter pressa em acusar de bajulação servil os entusiastas do partido na década de 20. Eliminadas essas duas possibilidades, é preciso entender por que o enorme esforço teórico-prático de Lenin teve como resultado uma complexa combinação de vitória e de fracasso, que se tornou o mais pesado fardo do marxismo ao longo do século XX, turvando definitivamente qualquer leitura do Manifesto. Acredito que os limites prático-teóricos do pensamento de Lenin talvez fiquem mais evidentes se deslocarmos o centro de observação e nos beneficiarmos da paralaxe. Com esse objetivo, nos próximos capítulos, vou falar sobre uma teórica ao mesmo tempo próxima e distante de Lenin: Rosa Luxemburg.



********



Edward Acton, Vladimir Cherniaev & William G. Rosenberg, Critical Companion to the Russian Revolution 1914-1921, Hodder Arnold, London, 1997 | Louis Althusser, Lenin before Hegel, 1969 | Kevin Anderson, Lenin, Hegel and Western Marxism, University of Illinois Press, Chicago, 1995 | Daniel Bensaïd, Lenin, ou a política do tempo partido | Gérard Bensussan, George Labica, Dictionnaire Critique du Marxisme, Quadrige/PUF, Paris, 1999 | Eduard Bernstein, The Preconditions of Socialism, Cambridge University Press, Cambridge, 2010 | Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, Gianfranco Pasquino, Dicionário de Política, EdUnB, Brasília, 1998 | Tom Bottomore, Dicionário do Pensamento Marxista, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997 | Augusto César Buonicore, Lênin e o partido de vanguarda | Paul Bushkovitch, História Concisa da Rússia, Edipro, São Paulo, 2014 | F. Chatelet, O. Duhamel, E. Pisier, Dicionário das Obras Políticas, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1993 | Hal Draper, The Myth of Lenin's "Concept of Party", 1990 | Hal Draper, The Adventures of the Communist Manifesto, Center for Socialist History, Alameda, 2014 | Marc Ferro, A Revolução Russa de 1917, Perspectiva, São Paulo, 2007 | Orlando Figes, A People's Tragedy - The Russian Revolution 1891-1924, Penguin Books, London, 1998 | Jacob Gorender, Bukharin: Economia, coleção Grandes Cientistas Sociais, Ática, São Paulo, 1990 | Nicolai Hartmann, A Filosofia do Idealismo Alemão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1983 | G. W. F. Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio, vol. 1 A Ciência da Lógica, Edições Loyola, São Paulo, 1995 | G. W. F. Hegel, Ciência da Lógica (excertos), Barcarolla, São Paulo, 2011 | Rudolf Hilferding, Finance Capital: a study of the latest phase of capitalist development, 1910 | J. A. Hobson, Imperialism: a study, James Nisbet & Co. Limited, London, 1902 | E. J. Hosbawn, Revolucionários, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 2003 | Karl Kautsky, Ultra-Imperialism in Neue Zeit, setembro de 1914 (com introdução de Martin Thomas) | Ekaterina Khaustova, Pre-revolution living standards: Russia 1888-1917, 2013 | M. C. Howard and J. E. King, A History of Marxian Economics, volume 1 1883-1929, Princeton University Press, New Jersey, 1989 | Michael Inwood, Dicionário Hegel, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997 | Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism (3 vol.), Clarendon Press, Oxford, 1978 | Stathis Kouvelakis, “Lenin como lector de Hegel. Hipótesis para una lectura de los Cuadernos de Lenin sobre La ciencia de la lógica” in Lenin Reativado. Hacia una política de la verdad (org. Slavoj Zizek, Sebastian Budgen, Stathis Kouvelakis), Ediciones Akal, Madrid, 2010 | Robert Kurz, O colapso da modernização, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1996 | V. I. Lenin, Obras Escolhidas em três tomos, Edições Avante, Lisboa-Moscou, 1978 | V. I. Lenin, The Development of Capitalism in Russia, 1899 | V. I. Lenin, The Position and Tasks ofthe Socialist International1914 | V. I. Lenin, Introduction to Imperialism and World Economy by N. I. Bukharin, 1915 | V. I. Lenin, Imperialism and the split in socialism, 1916 | V. I. Lenin, Letters on tactics, 1917 | V. I. Lenin, Theses on fundamental tasks of the Second Congress of the Communist Internacional, 1920 | V. I. Lenin, Cadernos sobre a Dialética de Hegel, Introdução de Henri Lefebvre e Norbert Guterman, Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 2011 | George Lichtheim, El marxismo: un estudio histórico y crítico, Editorial Anagrama, Barcelona, 1977 | Michel Löwy, De la grande logique de Hegel à la gare finlandaise de Petrograd, L'Homme et la Societé, número 15, 1970 | György Lukács, Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento, Boitempo Editorial, São Paulo, 2012 | Rosa Luxemburg, The Accumulation of Capital (with introduction of Joan Robinson), Routledge and Kegan, London, 1951 | Herbert Marcuse, Razão e Revolução, Editora Saga, Rio de Janeiro, 1969 | Karl Marx, Manifesto Comunista, Boitempo Editorial, São Paulo, 1998 | Karl Marx, O Capital, Nova Cultural, São Paulo, 1985 | Wolfgang J. Mommsen, Theories of Imperialism, Chicago University Press, 1980 | João Quartim de Moraes, A grande virada de Lenin, Revista Crítica Marxista n. 34, 2012 | Richard Pipes, Communism: a history, A Modern Library Chronicles Books, New York, 2001 | Érico Sachs, Partido, Vanguarda e Classe, 1968 | David Priestland, A Bandeira Vermelha: uma história do comunismo, Leya, São Paulo, 2012 | Victor Serge, O ano I da Revolução Russa, Boitempo Editorial, São Paulo, 2007 | Joseph Seymour, Lenin e o Partido de Vanguarda, 1977-78  | E. K. Hunt e J. Sherman, História do Pensamento Econômico, Editora Vozes, Petrópolis, 1986 | Maurício Tragtenberg, A Revolução Russa, Editora Unesp. São Paulo, 2007 | Leon Trotsky, A história da Revolução Russa (3 vol), Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977 | Adam B. Ulam, Os Bolcheviques, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1976 | Dmitri Volkogonov, Lenin - a new biography, The Free Press, New York, 2014 | Alan Woods, Bolshevism: the Road to Revolution, 1999 |  Grigory Zinoviev, History of the Bolshevik Party, 1924  | Slavoj Žižek (org), Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917, Boitempo Editorial, São Paulo, 2005





Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein


Ernst Bloch



Из искры возгорится пламя













segunda-feira, 13 de abril de 2015

A claraboia e o holofote #28 (X)







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Lenin 

10.  Como Lenin lia o Manifesto:

Dois documentos sobre o partido comunista russo






Documento 1


Como deve ser o nome do nosso partido para ser cientificamente exato e contribuir politicamente para esclarecer a consciência do proletariado.
Passo à questão final, ao nome do nosso partido. Devemos chamar-nos Partido Comunista, como se chamavam Marx e Engels.
Devemos repetir que somos marxistas e que nos baseamos no Manifesto Comunista, deturpado e traído pela social-democracia em dois pontos principais: 1. Os operários não têm pátria: a 'defesa da pátria' na guerra imperialista é uma traição ao socialismo; 2. A teoria marxista do Estado foi deturpada pela 2ª Internacional.
O nome 'social-democracia' é cientificamente inexato, como, aliás, Marx demonstrou repetidas vezes nomeadamente na Crítica ao Programa de Gotha, em 1875, e como Engels repetiu, em linguagem mais popular, em 1894. Do capitalismo a humanidade só pode passar diretamente ao socialismo, isto é, à propriedade social dos meios de produção e à distribuição dos produtos segundo o trabalho de cada um. O nosso partido vê mais longe: o socialismo deverá inevitavelmente transformar-se de modo gradual em comunismo, em cuja bandeira figura esse lema: 'De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades."
Tal é o meu primeiro argumento.
O segundo: a segunda parte da denominação de nosso partido (social-democrata) também é cientificamente inexata. A democracia é uma das formas do Estado. Entretanto nós, marxistas, somos inimigos de qualquer Estado.
Os dirigentes da 2ª Internacional (1889-1914), o sr. Plhekhánov, Kaustsky e quejandos aviltaram e adulteraram o marxismo.
O marxismo se distingue do anarquismo por reconhecer a necessidade do Estado para a passagem ao socialismo, mas (e isso é o que o distingue de Kaustky e Cia.) não de um Estado como a república democrática burguesa parlamentar corrente, mas de um Estado como a Comuna de Paris de 1871, como os Sovietes de deputados operários de 1905 e 1917.
O meu terceiro argumento: a vida criou, a revolução criou já de fato no nosso país, ainda que em forma precária, embrionária, precisamente este novo 'Estado', que não é um Estado no sentido próprio da palavra.
Isso já é uma questão da prática das massas, e não apenas uma teoria dos chefes.
O Estado, no sentido próprio da palavra, é o comando sobre as massas, exercido por destacamentos de homens-armados separados do povo.
O nosso novo Estado nascente é também é também um Estado, pois necessitamos de destacamentos de homens armados, necessitamos da ordem mais severa, necessitamos de reprimir impiedosamente pela violência todas as tentativas da contra-revolução, tanto czarista como burguesa gutchkovista [Alexandr Gutchkov: representante da grande burguesia monarquista. Foi um dos organizadores da rebelião de Kornilov].
Mas o nosso novo Estado nascente já não é um Estado no sentido próprio da palavra, pois numa série de lugares da Rússia estes destacamentos de homens armados são a própria massa, todo povo, e não alguém colocado  acima deles, separado deles, dotado de privilégios e praticamente inamovível.
Não se deve olhar para trás mas para frente, não para a democracia de tipo burguês corrente, qu consolidava a dominação da burguesia por meio dos velhos órgãos de administração monárquicos, da polícia, do exército e do funcionalismo.
É preciso olhar para frente, para a nova democracia nascente, que deixa já de ser uma democracia, pois democracia significa dominação do povo, e o próprio povo armado não pode exercer uma dominação sobre si próprio.
A palavra democracia, aplicada ao partido comunista, não é só cientificamente inexata. Agora, depois de março de 1917 significa uns antolhos postos nos olhos do povo revolucionário, e que o impedem de construir livremente, corajosamente e por sua própria iniciativa o novo: os Sovietes de deputados operários, camponeses e outros como único poder dentro do 'Estado", como precursor da 'extinção' de qualquer Estado.
O meu quarto argumento: é preciso ter em conta a situação objetiva do socialismo no mundo inteiro.
Ela não é a que existia de 1871 a 1914, quando Marx e Engels conscientemente se resignaram ao termo inexato e oportunista 'social-democracia'. Porque, desde então, depois de derrotada a Comuna de Paris, a história tinha colocado na ordem do dia um trabalho lento de organização e educação. Não havia outro. Os anarquistas não só estavam (e estão) totalmente errados teoricamente mas também econômica e politicamente. Os anarquistas apreciavam erradamente o momento, não compreendendo a situação internacional: o operário da Inglaterra corrompido pelos lucros imperialistas, a Comuna de Paris esmagada, o movimento nacional-burguês que acabava de triunfar (1871), a Rússia semifeudal dormindo um sono secular...
Marx e Engels tiveram em conta corretamente o momento, compreenderam a situação internacional, compreenderam as tarefas da aproximação lenta do começo da revolução social.
Compreendamos também nós as tarefas e peculiariddes da nova época. Não imitemos aqueles marxistas de meia-tigela dos quais Marx dizia: 'semeei dragões mas a colheita deu-me pulgas.'
A necessidade objetiva do capitalismo, que ao crescer se converteu em imperialismo, gerou a guerra imperialista. A guerra levou toda a humanidade à beira do abismo, da destruição de toda a cultura, do embrutecimento e da destruição de novos milhões de homnes, de inúmeros milhões.
Não há saída senão a revolução do proletariado.
E em tal momento, em que esta revolução começa, em que dá os seus primeiros passos tímidos, inseguros, inconscientes, demasiado confiados na burguesia; em tal momento, a maioria (isto é verdade, isto é um fato) dos chefes 'social-democratas', dos jornais 'social-democratas' - e são precisamente tais órgãos que influenciam as massas -. a maioria deles traiu o socialismo, atraiçoou o socialismo e passou para o lado da 'sua' burguesia nacional.
As massas estão confundidas, desorientadas e enganadas por estes chefes.
E nós iremos encorajar este engano, iremos facilitá-lo, agarrando-nos a este velho e caduco nome, já tão podre como está podre a 2ª Internacional.
Não importa que 'muitos' operários interpretem honestamente a social-democracia. Já é tempo de aprenderem a distinguir o subjetivo do objetivo.
Subjetivamente, estes operários social-democratas são chefes fidelíssimos das massas proletárias.
Mas a situação internacional objetiva é tal que o velho nome do nosso partido facilita o engano das massas, entrava o movimento para a frente, pois a cada passo, em cada jornal, em cada fração parlamentar, a massa vê chefes, isto é, homens cujas palavras têm mais ressonância e cujos atos se veem de mais longe, e todos eles são 'também social-democratas', todos eles são 'pela unidade' com os traidores do socialismo, com os social-chauvinistas, todos eles apresentam à cobrança as velhas letras assinadas pela 'social-democracia'.
E os argumentos contra? '...Seremos confundidos com os anarco-comunistas...'
E porque não tememos que nos confundam com os social-nacionais e social-liberais, com os radical-socialistas, o partido burguês da república francesa mais avançado e mais hábil no engano das massas? '...As massas habituaram-se, os operários 'apaixonaram-se' pelo seu partido social-democrata...'
Eis o único argumento, mas este é um argumento que põe de lado tanto a ciência marxistas como as tarefas de amanhã da revolução mundial, como a bancarrota ignominiosa da 2ª Internacional, como o prejuízo que causam ao trabalho prático os bandos de 'também social-democratas' que rodeiam os proletários.
Este é um argumento de rotina, de entorpecimento, de inércia.
Mas nós queremos reconstruir o mundo. Queremos pôr fim à guerra imperialista mundial, na qual estão envolvidos centenas de milhões de homens, à qual estão ligados os interesses de centenas e centenas de milhares de milhões de capital e à qual não se poderá pôr fim com uma paz verdadeiramente democrática sem a revolução proletária, a mais grandiosa na história da humanidade.
E temos medo de nós mesmos. Agarramo-nos à camisa suja a que estamos 'habituados' e a qual já nos 'apegamos'...
Já é tempo de tirar a camisa suja,  já é tempo de vestir roupa limpa.
Petrogrado, 10 [23] de abril de 1917

(V. I. Lenin, As tarefas do proletariado na nossa revolução. Projeto de plataforma do Partido Proletário, Obras Escolhidas, tomo 2, pp.43-46)








Documento 2


A experiência dos anos 1848-1851

Às vésperas da revolução

As primeiras obras do marxismo madura, a Miséria da Filosofia e o Manifesto Comunista, datam precisamente da véspera da revolução de 1848. Devido a esta circunstância, paralelamente à exposição das bases gerais do marxismo, temos aqui, em certa medida, um reflexo da situação revolucionária concreta de então. E, por isso, o mais racional seria, creio, analisar o que os autores dessas obras disseram acerca do Estado, imediatamente antes das suas conclusões da experiência de 1848-1851.
“...A classe operária – escreve Marx na Miséria da Filosofia – substituirá, no curso do desenvolvimento, a velha sociedade burguesa por uma associação que exclui as classes e o seu antagonismo, e deixará de haver um autêntico poder político, pois precisamente, o poder político é a expressão oficial do antagonismo de classes no seio da sociedade burguesa.”
É instrutivo comparar com esta exposição geral da ideia do desaparecimento do Estado depois da supressão das classes a exposição que é dada no Manifesto Comunista escrito por Marx e Engels alguns meses depois, precisamente em novembro de 1847.
“...Enquanto traçamos as fases mais gerais do desenvolvimento do proletariado, seguimos de perto a guerra civil, mais ou menos oculta no seio da sociedade existente até o ponto em que estala abertamente uma revolução e o proletariado estabelece o seu domínio pelo derrube violento da burguesia...
“...Já atrás vimos que o primeiro passo na revolução operária é a passagem do proletariado a classe dominante, a luta pela democracia.
“O proletariado usará o seu domínio político para ir arrancando todo o capital das mãos da burguesia, para centralizar todos os instrumentos da produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante, e para multiplicar o mais rapidamente possível a totalidade das forças produtivas.”
Vemos aqui a formulação de uma das ideias mais notáveis e mais importantes do marxismo na questão do Estado, precisamente a ideia de que a ‘ditadura do proletariado’ (como começaram a dizer Marx e Engels após a Comuna de Paris), e em seguida uma definição extremamente interessante do Estado e que pertence também ao número das ‘palavras esquecidas’ do marxismo, ‘O Estado, isto é, o proletariado organizado como classe dominante”.
Esta definição do Estado não só nunca foi explicada na literatura de propaganda e de agitação dominante dos partidos social-democratas oficiais. Mais ainda. Foi precisamente esquecida por ser absolutamente inconciliável com o reformismo, é uma bofetada na cara para os preconceitos oportunistas habituais e as ilusões filistinas quanto ao ‘desenvolvimento pacífico da democracia’.
O proletariado precisa do Estado – isto repetem todos os oportunistas, social-chauvinistas e kautskianos, asseverando que essa é a doutrina de Marx, e ‘esquecendo-se’ de acrescentar que, em primeiro lugar, segundo Marx, o proletariado só precisa de um Estado em extinção, isto é, constituído de modo a que comece imediatamente a extinguir-se e não possa deixar de se extinguir. E, em segundo lugar, os trabalhadores precisam de um ‘Estado’, ‘isto é, o proletariado organizado como classe dominante’.
O Estado é a organização especial da força, é a organização da violência para a repressão de uma classe qualquer. Qual é então a classe que o proletariado deve reprimir? Naturalmente apenas a classe dos exploradores, a burguesia. Os trabalhadores precisam do Estado apenas para reprimir a resistência dos exploradores, e dirigir esta repressão, realizá-la na prática, só o proletariado está em condições de o fazer, como única classe revolucionária até o fim, única classe capaz de unir todos os trabalhadores e explorados na luta contra a burguesia, no seu completo afastamento.
As classes exploradoras precisam do domínio político no interesse da manutenção da exploração, isto é, no interesse egoísta de uma minoria insignificante contra a imensa maioria do povo. As classes exploradas precisam do domínio político no interesse da completa supressão de toda a exploração, isto é, no interesse da imensa maioria do povo contra a minoria insignificante dos escravistas contemporâneos, isto é, os latifundiários e os capitalistas.
Os democratas pequeno-burgueses, esses pretensos socialistas que substituíram a luta de classes pelos sonhos de entendimento das classes, concebiam a própria transformação socialista de um modo sonhador, não sob a forma do derrubamento do domínio da classe exploradora, mas sob a forma da submissão da minoria à maioria que ganhou consciência das suas tarefas. Esta utopia pequeno-burguesa, indissoluvelmente ligada ao reconhecimento de um Estado colocado acima das classes, conduzia na prática à traição dos interesses das classes trabalhadoras, como o mostrou, por exemplo, a história das revoluções francesas de 1848 e 1871, como o mostrou a experiência da participação ‘socialista’ nos ministérios burgueses na Inglaterra, na França, na Itália e em outros países no fim do século XIX e no princípio do século XX.
Marx lutou durante toda a sua vida contra esse socialismo pequeno-burguês ressuscitado hoje na Rússia pelos partidos dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques. Marx levou a doutrina da luta de classes de modo consequente até a doutrina do poder político, do Estado.
A derrubada do domínio da burguesia só é possível pelo proletariado como classe especial, cujas condições econômicas de existência a preparam para essa derrubada, lhe dão a possibilidade e a força para o realizar. Ao mesmo tempo que a burguesia fraciona e pulveriza o campesinato e todas as camadas pequeno-burguesas, agrupa, une, organiza o proletariado. Só o proletariado – devido ao seu papel econômico na grande produção – é capaz de ser o chefe de todas as massas trabalhadoras e exploradas que a burguesia explora, oprime e esmaga muitas vezes não menos mas mais fortemente que os proletários, mas que são incapazes de uma luta independente pela sua emancipação.
A doutrina da luta de classes, aplicada por Marx à questão do Estado e da revolução socialista, conduz necessariamente ao reconhecimento do domínio político do proletariado, da sua ditadura, isto é, de um poder não partilhado com ninguém e que se apoia diretamente na força armada das massas. A derrubada da burguesia só pode ser realizada pela transformação do proletariado em classe dominante capaz de reprimir a resistência inevitável, desesperada, da burguesia e de organizar para um novo regime de economia todas as massas trabalhadoras e exploradas.
O proletariado necessita do poder de Estado, de uma organização centralizada na força, de uma organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos exploradores como para dirigir a imensa massa da população, o campesinato, a pequena burguesia, os semiproletários, na obra da organização da economia socialista.
Educando o partido operário, o marxismo educa a vanguarda do proletariado, capaz de tomar o poder e de conduzir todo o povo ao socialismo, de dirigir e de organizar uma nova ordem, de ser o educador, o dirigente e o chefe de todos os trabalhadores e explorados na obra de organização da sua vida social, sem a burguesia e contra a burguesia. Pelo contrário, o oportunismo hoje dominante educa no partido proletários representantes dos trabalhadores mais bem pagos, que se desligam das massas, que se ‘arranjam’ bastante bem sob o capitalismo, que vendem por um prato de lentilhas o seu direito de primogenitura, isto é, renunciam ao papel de chefes revolucionários do povo contra a burguesia.
‘O Estado, isto é, o proletariado organizado como classe dominante’ – esta teoria de Marx está indissoluvelmente ligada a toda a sua doutrina sobre o papel revolucionário do proletariado na história. O remate deste papel é a ditadura do proletariado, o domínio político do proletariado.
Mas se o proletariado precisa do Estado como organização especial da violência contra a burguesia, então daqui impõe-se por si uma conclusão: será concebível a criação de tal organização sem suprimir previamente, sem destruir a máquina do Estado que a burguesia criou para si própria? É a esta conclusão que conduz diretamente o Manifesto Comunista e é desta conclusão que Marx fala quando faz o balanço da experiência da revolução de 1848-1851.

(V. I. Lenin, O Estado e a Revolução, Obras Escolhidas, capítulo II, tomo 2, pp. 237-339)



foto: obras de Arnaldo Pomodoro, Il teatro scolpito, Palazzo Reale di Torino, 2013


********



Edward Acton, Vladimir Cherniaev & William G. Rosenberg, Critical Companion to the Russian Revolution 1914-1921, Hodder Arnold, London, 1997 | Louis Althusser, Lenin before Hegel, 1969 | Kevin Anderson, Lenin, Hegel and Western Marxism, University of Illinois Press, Chicago, 1995 | Daniel Bensaïd, Lenin, ou a política do tempo partido | Gérard Bensussan, George Labica, Dictionnaire Critique du Marxisme, Quadrige/PUF, Paris, 1999 | Eduard Bernstein, The Preconditions of Socialism, Cambridge University Press, Cambridge, 2010 | Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, Gianfranco Pasquino, Dicionário de Política, EdUnB, Brasília, 1998 | Tom Bottomore, Dicionário do Pensamento Marxista, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997 | Augusto César Buonicore, Lênin e o partido de vanguarda | Paul Bushkovitch, História Concisa da Rússia, Edipro, São Paulo, 2014 | F. Chatelet, O. Duhamel, E. Pisier, Dicionário das Obras Políticas, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1993 | Hal Draper, The Myth of Lenin's "Concept of Party", 1990 | Hal Draper, The Adventures of Communist Manifesto, Center for Socialist History, Alameda, 2014 | Marc Ferro, A Revolução Russa de 1917, Perspectiva, São Paulo, 2007 | Orlando Figes, A People's Tragedy - The Russian Revolution 1891-1924, Penguin Books, London, 1998 | Jacob Gorender, Bukharin: Economia, coleção Grandes Cientistas Sociais, Ática, São Paulo, 1990 | Nicolai Hartmann, A Filosofia do Idealismo Alemão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1983 | G. W. F. Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio, vol. 1 A Ciência da Lógica, Edições Loyola, São Paulo, 1995 | G. W. F. Hegel, Ciência da Lógica (excertos), Barcarolla, São Paulo, 2011 | Rudolf Hilferding, Finance Capital: a study of the latest phase of capitalist development, 1910 | J. A. Hobson, Imperialism: a study, James Nisbet & Co. Limited, London, 1902 | E. J. Hosbawn, Revolucionários, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 2003 | Karl Kautsky, Ultra-Imperialism in Neue Zeit, setembro de 1914 (com introdução de Martin Thomas) | Ekaterina Khaustova, Pre-revolution living standards: Russia 1888-1917, 2013 | M. C. Howard and J. E. King, A History of Marxian Economics, volume 1 1883-1929, Princeton University Press, New Jersey, 1989 | Michael Inwood, Dicionário Hegel, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997 | Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism (3 vol.), Clarendon Press, Oxford, 1978 | Stathis Kouvelakis, “Lenin como lector de Hegel. Hipótesis para una lectura de los Cuadernos de Lenin sobre La ciencia de la lógica” in Lenin Reativado. Hacia una política de la verdad (org. Slavoj Zizek, Sebastian Budgen, Stathis Kouvelakis), Ediciones Akal, Madrid, 2010 | Robert Kurz, O colapso da modernização, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1996 | V. I. Lenin, Obras Escolhidas em três tomos, Edições Avante, Lisboa-Moscou, 1978 | V. I. Lenin, The Development of Capitalism in Russia, 1899 | V. I. Lenin, The Position and Tasks ofthe Socialist International1914 | V. I. Lenin, Introduction to Imperialism and World Economy by N. I. Bukharin, 1915 | V. I. Lenin, Imperialism and the split in socialism, 1916 | V. I. Lenin, Letters on tactics, 1917 | V. I. Lenin, Theses on fundamental tasks of the Second Congress of the Communist Internacional, 1920 | V. I. Lenin, Cadernos sobre a Dialética de Hegel, Introdução de Henri Lefebvre e Norbert Guterman, Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 2011 | George Lichtheim, El marxismo: un estudio histórico y crítico, Editorial Anagrama, Barcelona, 1977 | Michel Löwy, De la grande logique de Hegel àla gare finlandaise de Petrograd, L'Homme et la Societé, número 15, 1970 | György Lukács, Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento, Boitempo Editorial, São Paulo, 2012 | Rosa Luxemburg, The Accumulation of Capital (with introduction of Joan Robinson), Routledge and Kegan, London, 1951 | Herbert Marcuse, Razão e Revolução, Editora Saga, Rio de Janeiro, 1969 | Karl Marx, Manifesto Comunista, Boitempo Editorial, São Paulo, 1998 | Karl Marx, O Capital, Nova Cultural, São Paulo, 1985 | Wolfgang J. Mommsen, Theories of Imperialism, Chicago University Press, 1980 | João Quartim de Moraes, A grande virada de Lenin, Revista Crítica Marxista n. 34, 2012 | Richard Pipes, Communism: a history, A Modern Library Chronicles Books, New York, 2001 | Érico Sachs, Partido, Vanguarda e Classe, 1968 | David Priestland, A Bandeira Vermelha: uma história do comunismo, Leya, São Paulo, 2012 | Victor Serge, O ano I da Revolução Russa, Boitempo Editorial, São Paulo, 2007 | Joseph Seymour, Lenin e o Partido de Vanguarda, 1977-78  | E. K. Hunt e J. Sherman, História do Pensamento Econômico, Editora Vozes, Petrópolis, 1986 | Maurício Tragtenberg, A Revolução Russa, Editora Unesp. São Paulo, 2007 | Leon Trotsky, A história da Revolução Russa (3 vol), Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977 | Adam B. Ulam, Os Bolcheviques, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1976 | Dmitri Volkogonov, Lenin - a new biography, The Free Press, New York, 2014 | Alan Woods, Bolshevism: the Road to Revolution, 1999 |  Grigory Zinoviev, History of the Bolshevik Party, 1924  | Slavoj Žižek (org), Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917, Boitempo Editorial, São Paulo, 2005





Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein


Ernst Bloch



Из искры возгорится пламя







Edição Comemorativa

A claraboia e o holofote

2 anos