A polarização
Desde as eleições
presidenciais de 2014, quando os candidatos Aécio Neves (PSDB) e Dilma Rousseff
(PT) disputaram uma campanha renhida e ingrata, com uma estreita margem de
vitória para o PT - que então ia para o quarto mandato presidencial -, houve
uma notável polarização no plano político-econômico: de um lado, o “reformismo
suave” do PT (nas palavras de André Singer), do outro lado, um programa de
liberalização mais agressivo defendido pelo PSDB, com apoio do setor
empresarial.
Nos meses que se seguiram
à eleição, os opositores ao PT se levantaram em imensas manifestações de
protesto e descontentamento por todo o país, em especial nas capitais da região
Sudeste. A Fronda dos Coxinhas era fácil de se prever, mas difícil de ser
categorizada em termos sociais: havia os representantes das agremiações da Nova
Direita, todos bastante empenhados e aguerridos, alguns laicos, outros ligados
às igrejas pentecostais; havia os representantes de uma Direita arcaica,
envelhecida e incômoda: os últimos integralistas, os saudosos da caserna e da
tortura, os fascistas de velha cepa, a reação católica tradicional. Havia, por
fim, os descontentes avulsos sem bandeira. Não se tratava, portanto, apenas de
partidários do candidato derrotado Aécio Neves ou do PSDB, que deu uma adesão
morna a essas manifestações. Também não se tratava, como queriam
alguns, de uma passeata de madames burguesas que supostamente mandavam as
empregadas baterem panela em sinal de desaprovação à presidenta Dilma.
O tom cada vez mais
veemente assumido por articulistas como Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino
ou Marco Antônio Villa, a ampla difusão de insultos e boatos pelas redes
sociais, as capas agressivas da revista Veja levaram
os defensores do governo (ou da esquerda em geral) a retrucar com igual
veemência e agressividade. Do lado da oposição, os ataques convergiram para a
questão da corrupção do governo federal e a prática das “pedaladas” fiscais,
que supostamente teriam se tornado constantes no governo de Dilma Rousseff (ver
nota). Essa última acusação serviu de base legal para o pedido de impeachment de
Dilma, mas como se viu na noite de 17 de abril de 2016, os 367 deputados que
votaram a favor do afastamento da presidenta alegaram pretextos vagos ou
motivos curiosos, que iam do folclórico ao patético, sem qualquer análise
cuidadosa da questão.
Nas ruas e nas redes
sociais, não se viu coisa diferente. A verdade é que a questão das “pedaladas”
envolvia aspectos técnicos de difícil compreensão, por isso mesmo ela precisava
ser apoiada por algo mais substancioso, capaz de sacudir a opinião pública.
Isso foi oferecido pelos lances cada vez mais audaciosos da Operação Lava-Jato,
que se apresentava como a versão brasileira da Operação Mãos Limpas que, na
Itália dos anos 1990, investigou uma ampla rede de corrupção política,
financiamento ilegal e envolvimento com a máfia, acabando por levar a uma
reestruturação geral do sistema partidário italiano. No Brasil, subitamente
alguns juízes de instâncias mais baixas e membros do ministério público passaram
ao proscênio, com luzes e fotos de capa, disputando o espaço antes reservado
aos altos magistrados do Supremo Tribunal Federal em evidência desde 2012,
quando começou o julgamento dos envolvidos com o "Mensalão" (o grande
escândalo de corrupção do governo Lula).
A oposição política ao
governo do PT ganhou a forma de uma cruzada judicial e moral contra a
corrupção, que passou a ser vista como um mal inerente às práticas
assistencialistas da esquerda, acusadas de onerar os cofres públicos e impor
uma sobrecarga fiscal sobre os setores produtivos. Apoiar tais políticas passou
a ser sinal de parasitismo, mau-caráter e cumplicidade com a prevaricação.
Alguns influentes formadores de opinião passaram a exigir a destruição total do
legado esquerdista, mais ou menos nos mesmos termos que a esquerda dos anos
1980 queria a destruição do legado do regime militar: o “entulho autoritário”
como se dizia nos tempos da redemocratização do Brasil.
O que quer que se pense
dos representantes da Nova Direita, é óbvio que eles tiveram bastante sucesso
na sua campanha no plano político e conseguiram impor uma série de temas
intensamente discutidos nas redes sociais, na imprensa e nas ruas. Em linhas
gerais, essa pauta consiste na luta contra a corrupção, na proposta de liberalização
econômica e na criminalização da esquerda. As duas primeiras têm um forte
apelo: (1) mesmo os corruptos se declaram contra a corrupção e (2) a liberdade
dos agentes econômicos sob as regras de mercado sem intervenção do Estado
parece realmente algo que ainda não foi tentado no Brasil (essa é a bandeira de
Rodrigo Constantino). A terceira é a tentativa de destruir a própria
respeitabilidade histórica da esquerda como interlocutor político. Esse projeto
tem várias ramificações, como o movimento Escola sem Partido (contra a
doutrinação esquerdista nas escolas); a crítica ao "coitadismo" ou
"vitimismo", isto é, às políticas de reconhecimento dos segmentos
oprimidos: mulheres, homossexuais, negros e índios entre outros; ou a desqualificação
da esquerda, apresentada como doença (a esquerdopatia segundo Reinaldo Azevedo)
ou como imoralidade (na visão de Olavo de Carvalho).
A esquerda, hoje na
defensiva, é compelida a rearticular suas posições em torno dos três itens da
pauta mencionada. No que se refere à luta contra a corrupção, os partidários da
esquerda criticam a orientação política dos juízes e promotores da Operação
Lava-Jato, assim como a natureza ilegal de alguns de seus procedimentos, mas
concordam com a necessidade de uma ampla investigação das redes privadas de
financiamento e favorecimento ilegais que permeiam todo o sistema político (e
não apenas a esquerda ou o governo petista).
No que diz respeito à
proposta de liberalização, privatização e Estado mínimo, a esquerda mantém sua
posição histórica contra os mercados não-regulamentados. Na medida que a
liberdade de mercado exige o fim das cláusulas legais de proteção aos
trabalhadores, os defensores do livre mercado encontrarão entraves não apenas
na oposição parlamentar de esquerda, mas também nos sindicatos e nos segmentos
populares que detém a força numérica do voto. Dadas as condições sociais do
Brasil, uma total desregulamentação dos mercados somente poderia ser feita por
meios de golpes que atentassem contra a democracia (o que não parece ser um
problema para alguns expoentes da Nova Direita, que costumam zombar das ilusões
rousseaunianas acerca da soberania popular).
Por último, o esforço em
transformar a esquerda em patologia pode exercer um efeito irresistível sobre
os neodireitistas radicais, mas seu poder de convencimento é limitado pelo seu
próprio radicalismo. Por isso, justamente esse que é o lance mais ousado da
Nova Direita também é seu calcanhar de Aquiles teórico. Algo parecido, com
resultado igualmente insatisfatório, já tinha sido tentado pela esquerda quando
Adorno coordenou a pesquisa que resultou no livro The Authoritarian
Personality (1950), uma obra pouco convincente que tentava mostrar as
raízes patológicas de uma certa direita. (É verdade que muitos esquerdistas
veem os adeptos da direita como vítimas de recalques freudianos, mas isso
pertence a um folclore teoricamente inócuo e não às bases teóricas das várias
correntes de esquerda. Qualquer tentativa de transformar essa crença folclórica
em argumento se torna uma acusação ad
hominem falaciosa).
Alguns intelectuais neodireitistas gostariam de expurgar não apenas as formas intransigentes e radicais do esquerdismo, mas também a própria herança iluminista que a esquerda sempre reivindicou. Não se trata apenas de afastar Dilma, prender Lula ou cassar o registro do PT, não se trata apenas de instaurar uma patrulha de direita inversa às antigas patrulhas de esquerda, não se trata apenas de denunciar os totalitarismos comunistas, não se trata apenas enterrar O Capital e banir o Manifesto Comunista, trata-se de negar Voltaire, Rousseau e Kant. Trata-se de um projeto coletivo ambicioso, mas que tropeça em alguns óbices práticos, que constituem seu calcanhar de Aquiles. É que no seu esforço de anular a esquerda como interlocutor político, a Nova Direita acaba por lhe prestar um serviço valioso, porquanto reaviva nas várias correntes de esquerda - todas abrangidas pela criminalização - a consciência dos princípios e tarefas históricas que irmanam os comunistas, os socialistas, os anarquistas, os social-democratas e os herdeiros mais consequentes de Stuart Mill.
A meu ver, a novidade da Nova Direita brasileira consiste na aliança entre um ideário conservador visceralmente avesso ao diálogo com a esquerda e uma prática política jacobina de mobilização das “massas” em torno da caçada aos corruptos. Todavia, é difícil ver o que as obras intelectualmente refinadas de pensadores como Eric Voegelin, Russell Kirk, Constantin Noica ou Roger Scruton, que têm servido de suporte aos teóricos da Nova Direita, têm a ver com o furor demogógico e jacobino que faz da caça a um punhado de corruptos uma espécie de catarse nacional, independentemente da questão da legalidade dos procedimentos, como se o juiz Sergio Moro fosse o novo Robespierre incorruptível do Comitê de Salvação Nacional.
Na minha análise do “conservadorismo” à brasileira, vou deixar de lado a proposta de desregulamentação dos mercados, não porque seja irrelevante, mas sim porque se trata de um debate já bastante antigo. O que desejo discutir é o contraste entre o conservadorismo teoricamente respeitável e a forma jacobina que assumiu nas ruas e nas redes sociais.
(continua)
Nota:
O termo “pedalada fiscal” se refere à prática de esconder o orçamento deficitário atrasando o repasse das verbas aos bancos públicos e privados como se, na prática, o governo tivesse tomado um empréstimo não autorizado com esses bancos, o que contraria a Lei de Responsabilidade Fiscal aprovada em 2000, durante a Presidência de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
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Foto: "Egg Fight", obra do artista Yinka Shonibare, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2015
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