Cenas da Revolução de 17
Reflexões sobre a história, a revolução e as massas num dia de greve geral
I
O historiador britânico David Longley, num belo ensaio de 1992, narra como as disputas internas entre os vitoriosos da
Revolução de Outubro levaram à publicação de várias memórias sobre o período
revolucionário. De forma alguma essas memórias eram falsas ou imprecisas, mas
elas não eram neutras nem pretendiam apenas satisfazer a curiosidade pública.
Elas serviam basicamente como peças de acusação contra os adversários e de
endosso a certas posições partidárias. Assim é que Nicolai Sukhanov, integrante
do Soviete de Petrogrado e membro do Comitê Central até ser
expurgado junto com os outros mencheviques em 1918, defendia, no seu extenso
relato memorialístico, que a revolução de fevereiro fora um movimento
espontâneo dos operários e dos soldados, uma vez que os bolcheviques não se
mostraram capazes de liderar as massas. Em resposta a Sukhanov, o operário
Alexandr Shliapnikov, figura de proa do partido bolchevique em Petrogrado no
momento em que eclodiu a insurreição de fevereiro, também publicou suas
memórias, defendendo o papel proeminente da liderança operária. Se a revolução
de fevereiro fora vitoriosa isso se devia à ação corajosa do operariado do
bairro de Vyborg mobilizado pelos líderes operários bolcheviques, e não pelos
intelectuais (como Lenin, Trostsky, Zinoviev, Kamenev e o próprio
Sukhanov). Por sua vez, em defesa dos intelectuais do partido, Zinoviev
respondeu que a fraqueza dos bolcheviques em fevereiro se devia
justamente ao fato de que o partido não tinha nenhum representante em
Petrogrado no momento da insurreição, uma vez que todos os seus líderes
intelectuais estavam presos ou exilados. Mesmo assim, o partido pôde exercer
uma significativa influência intelectual sobre a consciência das massas devido
ao longo trabalho acumulado nos anos anteriores. Outro ataque às posições de
Shliapnikov apareceu numa coletânea de depoimentos sobre a revolução, cuja
publicação foi possivelmente instigada por Stalin. Dessa coletânea se
sobressaíam os depoimentos de Vassily Kayurov e Ivan Chagurin, operários na
época dos acontecimentos de fevereiro, que denunciavam a incompetência e a
falta de liderança de Shliapnikov nos momentos cruciais da insurreição.
Igualmente por instigação de Stalin, I. A. Iakolev, um comissário do povo
encarregado de promover a coletivização da agricultura, escreveu um artigo em
que fazia uma objeção decisiva às alegações de Schliapnikov: Se havia sido a
liderança operária bolchevique a responsável pelo curso dos acontecimentos no
final de fevereiro, por que ela não instalou logo a ditadura do proletariado e
dos camponeses (que era a proposta do partido) e por que os bolcheviques não
assumiram a chefia do Soviete de Petrogrado? Em outras palavras: por que foi preciso que Lenin liderasse outra revolução (essa sim bem-sucedida) em outubro de 17?
Na conclusão de seu artigo, David Longley mostra
que, independentemente do que pensemos a respeito do caráter e das
motivações de Iakolev, é necessário reconhecer que ele levantou questões
que não foram adequadamente exploradas pela historiografia da Revolução Russa justamente porque essa historiografia aceita, sem um exame crítico, as premissas assumidas
pelo relato de Schliapnikov (ver nota 1). Alexandr Schliapnikov parece ter sido uma testemunha privilegiada dos acontecimentos: foi um operário bolchevique de primeira hora, que participou ativamente da revolução, sem nunca se deixar intimidar pela autoridade de Lenin, o que o levou a ser expulso do Comitê Central e, mais tarde, executado por
ordem de Stalin. Para os historiadores (não-comunistas) parece ser evidente que,
se o homem tinha tais credenciais sociais e políticas, e se foi vítima da brutalidade assassina de Stalin, as teses desse homem devem ser verdadeiras. Ora,
é justamente a ingenuidade epistemológica desse critério, decorrente do parti-pris moral e político dos historiadores que o artigo de Longley coloca em questão ao mostrar que, se aceitarmos as teses de Shliapnikov, ficamos impotentes diante da questão decisiva formulada por Iakolev, da qual depende a correta compreensão do processo revolucionário de 1917.
II
Os historiadores, sobretudo aqueles que produzem sínteses de
divulgação destinadas a leigos cultos e estudantes – como Eric Hobsbawn ou Paul
Johnson –, costumam relatar os fatos e processos com a onisciência dos
narradores de romance do século XIX. É claro que, como profissionais sérios,
eles cumprem aqueles preceitos que, para o leigo culto e até alguns
profissionais da historiografia, garantem a objetividade histórica: a triagem
honesta das fontes, a consideração dos pontos de vista divergentes e a
resolução crítica das divergências pela aplicação de métodos consensuais nas
academias. Todavia, de qualquer investigação histórica que vá além de um
exercício acadêmico (tese, dissertação, tratado ou papers) destinado
a especialistas, espera-se que preencha um requisito que, pudicamente, nunca é
explicitado pelos historiadores profissionais, mas é amplamente conhecido por
críticos literários: o de causar no leitor aquela satisfação diante de uma
sucessão de eventos que, além de dotado de direção e sentido, tem uma
moralidade implícita, uma linha que separa o certo e o errado, à qual o
historiador dá dar o seu endosso, colocando-se no lado certo da linha e
servindo de testemunha de acusação contra a iniquidade do réu (o capitalismo, o
comunismo, o nazismo, o colonialismo, o Terror jacobino, a Inquisição, a
superstição, as perseguições de Dominiciano etc.) em defesa das vítimas (o
proletariado, os dissidentes nos gulags, os judeus, as populações nativas, os
girondinos, os esclarecidos, os cristãos, e assim por diante). Não se trata
apenas de julgar moralmente as ações desta ou daquela figura histórica ou fazer
a contabilidade dos mortos e feridos de uma época, mas de afirmar a moralidade
do processo contra as formas injustas e desviantes. Ao ganhar a
forma de relato em 3ª pessoa feito por um narrador onisciente, como os romances
tradicionais do século XIX , o relato do historiador ganha uma força
suplementar devido ao efeito de realidade próprio da forma narrativa adotada. O
leitor sente que tem diante de si um pedaço vivo do próprio devir histórico e
não apenas a enunciação autoral de uma hipótese de investigação cuja autoridade
deveria depender apenas das regras do rigor acadêmico. O exercício
historiográfico particular feito pelo historiador se torna, para os leitores
seduzidos pela força narrativa, em visão da própria História.
Essa confusão entre historiografia (registro, investigação,
relato) e História (evento, processo) é especialmente perigosa quanto se trata
de acontecimentos abertos à guerras políticas de interpretação. É difícil
imaginar medievalistas em disputas encarniçadas sobre a vantagem de aderir aos
cronistas guelfos ou aos gibelinos, mas é fácil compreender que, para os
historiadores da Revolução Russa ou da Guerra Civil Espanhola, não há
neutralidade possível. Tudo o que se pode esperar é a pesquisa rigorosa e
honesta. Ainda assim, se o relato for bem-sucedido terá o duplo efeito insidioso de
apresentar-se como visão da realidade histórica e, ao mesmo tempo, delimitar uma linha
moral do certo e do errado, dos carrascos e das vítimas.
Para um cético como eu, a beleza do artigo de David Longley está
justamente em afastar esse duplo efeito, colocando em prática aquela profilaxa que tenho defendido tantas
vezes como condição para o exercício da inteligência, isto é, de uma
compreensão rigorosa dos eventos e dos processos (oposta à tolice, à
simplificação middlebrow e às adesões precipitadas). Longley
mostra bem que a discussão sobre o caráter espontâneo ou dirigido da
insurreição de fevereiro de 17 não resulta de lacuna de informações sobre o que
aconteceu. Pelo contrário, os eventos foram abundantemente relatados dos mais
variados pontos de vista. Todavia, como o enquadramento dos eventos é diferente
em cada um dos depoimentos devido ao fato de que eles eram instrumentos nas
disputas pelo poder no Comitê Central a partir de 1918 (disputas que poderiam
resultar em ostracismo ou morte para o lado vencido), os historiadores se veem
obrigados a selecionar quais são os depoimentos que considerarão válidos. No
fundo, como mostra Longley, isso é feito com base numa regra prática (de cunho
político e moral), que consiste em aceitar como verdadeiros os testemunhos
daqueles que foram perseguidos por Stalin, o que confere uma espécie de
consagração às versões de Shliapnikov (executado em 1937), Sukhanov (executado
em 1940) e Trotsky (assassinado em 1940). Todavia, como afirma Longley, essa
adesão à versão das vítimas de Stalin deixa intocadas certas premissas cuja
investigação é necessária para a compreensão da Revolução Russa (ver nota 2).
No caso do brilhante relato que é a História da
Revolução Russa, de Trotsky, não podemos perder de vista que, apesar da forma
obreirista que o trotskismo veio a assumir, o autor minimizou a participação de
Shliapnikov – um dos poucos membros do Comitê Central que era de origem
operária -, ao passo que se valeu amplamente das memórias de Sukhanov, que era
menchevique, e de Kayurov, ligado a Stalin. Mas,
para além dos problemas historiográficos decorrentes desse uso das fontes e da própria
posição de Trotsky no processo revolucionário russo, e daqueles decorrentes do
efeito de realidade do relato de Trotsky, acredito que seja necessário examinar
com cuidado uma série de questões políticas e sociológicas a respeito do processo revolucionário, da ação das massas e do papel do
partido, questões que – a meu ver - não podem ser resolvidas se colocadas nos termos dicotômicos das antigas polêmicas sobre o papel dos indivíduos excepcionais
versus o papel das forças sociais, sobre a agência versus a estrutura, ou sobre a liberdade versus a determinação.
Não que essas dicotomias fossem destituídas de sentido. Acredito
que, por exemplo, que a discussão entre direção e espontaneidade do movimento
das massas, embora formulada de modo apressado no calor das
lutas políticas entre socialistas e anarquistas, e entre os seguidores de Lenin
e de Rosa Luxemburg, tinha em seu núcleo
uma questão muito mais importante, a qual foi obliterada quando a esquerda francesa
pós-68 rompeu com o PCF e passou a remodelar o debate
político com os conceitos de biopolítica, microfísica do poder, rizoma,
revoluções moleculares e de fim dos grandes relatos. Essa questão importantíssima do qual dependia todo o debate das esquerdas do começo do século XX era: qual é a potência da
massa? Isto é, o que quer e o que pode a multidão?
Sem poder enfrentar diretamente essa questão, mas certo de que ela
deve ser levada a sério mais uma vez pela esquerda (ver nota 3), quero
retornar, no próximo capítulo, ao debate sobre a espontaneidade do movimento
popular e a necessidade de direção do partido, tema a respeito do qual Trostsky
propõe algumas considerações interessantes.
Notas
Nota 1 – “Iakolev’s question, it would
appear, cannot be answered within the framework put forward by Shliapnikov. Yet
it remais a valid question that demands an answer. What needs to be done,
therefore, is to reexamine Shliapnikov’s framework. Shliapnikov was arguing a
political case, and his History was part of that case. This does not mean that
he lacked objectivity or honesty, but merely that, on the whole, he selected
those facts that supported his political case: that the February revolution was
not spontaneous, but was led by the Bolshevik leadership in Petrograd at the
time, which alone was up to the task, and which upheld the revolutionary
traditions of the Bolshevik party without recourse to any outside help. His
case rests on a few simples premises:
1.That the February revolution began on
International Women’s Day, 23 February (8 March) 1917, with strikes and
demonstrations by women workers who had influenced by meetings organized by the
Bolsheviks;
2.That the Vyborg district of Petrograd
was the centre of the revolutionary movement;
3.That the Bolshevik, rather than anyone
else, led the demonstrations, imposing their slogans on the crowds, and
preventing violence towards the soldiers, with a view to winning them over.
4.That the arrest of most members of the
Petersburg committee of the Bolshevik party, in the early morning of 26
February, did not interrupt Bolshevik leadership of the movement, as
Shliapnikov was able to arrange for the Vyborg district committee to take over;
5.That the Bolshevik leadership was clear
in its idea of what should be substituted for the old régime;
6.And that they were only
under-represented on the soviet because they were outmaneuvered by politicians
who took advantage of the party activists being occupied leading workers on the
streets.”
D. A. Longley, “Iakolev’s Question, or the
historiography of the problem of the spontaneity and leadership in the Russian
Revolution of February 1917” in Revolution in Russia: Reassessments of
1917, org. Edith Rogovin Frankel, Jonathan Frankel, Baruch Knei-Paz,
Cambridge University Press,1992, pp. 381-3)
Nota 2 - "Whereas Soviet historians have
been severely restricted, their Western counterparts have been uninterested in
the historiography of the question, and often appear to work on a rule of thumb
that if someone was persecuted by Stalin, and had his views distorted, then
these must be right. This has led to an exaggerated respect for Sukhanov,
Trotsky and Shliapnikov, with little effort to distinguish between their views.
But the debate, or our initiated by Sukhanov’s book was not an academic one
about historical truth, but part of a struggle for political power, whose
victims, from all sides, paid the penalty: Sukhanov, Kamenev and Zinoviev were
executed. We should beware of allowing our sympathy for a man’s fate, or our distate
for some of his actions, to determine our attitude to his evidence. All the
protagonists used history for political ends, but not all, even on Stalin’s
side, did so dishonestly. Thus we cannot reject Kaiurov’s and Iakolev’s views
in toto simply because they were unpleasant characters in the 1920’s and
1930’s. Nor can we accept Shliapnikov’s approach uncritically, simply out of
admiration for his courageous defense of this views throughout his
lifetime". (idem, ibidem, p. 382-3)
Nota 3 – Ocorre hoje uma greve geral
contra a reforma trabalhista e previdenciária que foi proposta às pressas - e
sem nenhum debate com os setores que sofrerão os seus efeitos - por um governo
de legitimidade contestável, destituído de apoio popular e cujos integrantes
são suspeitos de corrupção. A situação do país é agravada pela insegurança no
plano econômico. As previsões de retomada do crescimento são incertas e o
índice de desemprego é elevado (por volta de 14% no primeiro trimestre deste
ano). Mesmo assim, o atual ministro da Justiça diz que a greve geral é apenas
“baderna”, enquanto o prefeito de São Paulo chama os grevistas de
“preguiçosos”. Embora eu respeite o voto de pobreza intelectual que fizeram o
ministro Serraglio e o prefeito Dória, eu olho para o meu país e pergunto com
sincera perplexidade: o que quer e o que pode a multidão?