sexta-feira, 28 de abril de 2017

A claraboia e o holofote #31 (V)









Cenas da Revolução de 17



Reflexões sobre a história, a revolução e as massas num dia de greve geral







  I

O historiador britânico David Longley, num belo ensaio de 1992, narra como as disputas internas entre os vitoriosos da Revolução de Outubro levaram à publicação de várias memórias sobre o período revolucionário. De forma alguma essas memórias eram falsas ou imprecisas, mas elas não eram neutras nem pretendiam apenas satisfazer a curiosidade pública. Elas serviam basicamente como peças de acusação contra os adversários e de endosso a certas posições partidárias. Assim é que Nicolai Sukhanov, integrante do Soviete de Petrogrado  e membro do Comitê Central até ser expurgado junto com os outros mencheviques em 1918, defendia, no seu extenso relato memorialístico, que a revolução de fevereiro fora um movimento espontâneo dos operários e dos soldados, uma vez que os bolcheviques não se mostraram capazes de liderar as massas. Em resposta a Sukhanov, o operário Alexandr Shliapnikov, figura de proa do partido bolchevique em Petrogrado no momento em que eclodiu a insurreição de fevereiro, também publicou suas memórias, defendendo o papel proeminente da liderança operária. Se a revolução de fevereiro fora vitoriosa isso se devia à ação corajosa do operariado do bairro de Vyborg mobilizado pelos líderes operários bolcheviques, e não pelos intelectuais (como Lenin, Trostsky, Zinoviev, Kamenev e o próprio Sukhanov). Por sua vez, em defesa dos intelectuais do partido, Zinoviev respondeu  que a fraqueza dos bolcheviques em fevereiro se devia justamente ao fato de que o partido não tinha nenhum representante em Petrogrado no momento da insurreição, uma vez que todos os seus líderes intelectuais estavam presos ou exilados. Mesmo assim, o partido pôde exercer uma significativa influência intelectual sobre a consciência das massas devido ao longo trabalho acumulado nos anos anteriores. Outro ataque às posições de Shliapnikov apareceu numa coletânea de depoimentos sobre a revolução, cuja publicação foi possivelmente instigada por Stalin. Dessa coletânea se sobressaíam os depoimentos de Vassily Kayurov e Ivan Chagurin, operários na época dos acontecimentos de fevereiro, que denunciavam a incompetência e a falta de liderança de Shliapnikov nos momentos cruciais da insurreição. Igualmente por instigação de Stalin,  I. A. Iakolev, um comissário do povo encarregado de promover a coletivização da agricultura, escreveu um artigo em que fazia uma objeção decisiva às alegações de Schliapnikov: Se havia sido a liderança operária bolchevique a responsável pelo curso dos acontecimentos no final de fevereiro, por que ela não instalou logo a ditadura do proletariado e dos camponeses (que era a proposta do partido) e por que os bolcheviques não assumiram a chefia do Soviete de Petrogrado?  Em outras palavras: por que foi preciso que Lenin liderasse outra revolução (essa sim bem-sucedida) em outubro de 17?

Na conclusão de seu artigo, David Longley mostra que, independentemente do que pensemos a respeito do caráter  e das motivações de Iakolev, é necessário reconhecer que ele levantou questões que não foram adequadamente exploradas pela historiografia da Revolução Russa justamente porque essa historiografia aceita, sem um exame crítico, as premissas assumidas pelo relato de Schliapnikov (ver nota 1). Alexandr Schliapnikov parece ter sido uma testemunha privilegiada dos acontecimentos: foi um operário bolchevique de primeira hora, que participou ativamente da revolução, sem nunca se deixar intimidar pela autoridade de Lenin, o que o levou a ser expulso do Comitê Central e, mais tarde, executado por ordem de Stalin. Para os historiadores (não-comunistas) parece ser evidente que, se o homem tinha tais credenciais sociais e políticas, e se foi vítima da brutalidade assassina de Stalin, as teses desse homem devem ser verdadeiras. Ora, é justamente a ingenuidade epistemológica desse critério, decorrente do parti-pris moral e político dos historiadores que o artigo de Longley coloca em questão ao mostrar que, se aceitarmos as teses de Shliapnikov, ficamos impotentes diante da questão decisiva formulada por Iakolev, da qual depende a correta compreensão do processo revolucionário de 1917. 




II

Os historiadores, sobretudo aqueles que produzem sínteses de divulgação destinadas a leigos cultos e estudantes – como Eric Hobsbawn ou Paul Johnson –, costumam relatar os fatos e  processos com a onisciência dos narradores de romance do século XIX. É claro que, como profissionais sérios, eles cumprem aqueles preceitos que, para o leigo culto e até alguns profissionais da historiografia, garantem a objetividade histórica: a triagem honesta das fontes, a consideração dos pontos de vista divergentes e a resolução crítica das divergências pela aplicação de métodos consensuais nas academias. Todavia, de qualquer investigação histórica que vá além de um exercício acadêmico (tese, dissertação, tratado ou papers) destinado a especialistas, espera-se que preencha um requisito que, pudicamente, nunca é explicitado pelos historiadores profissionais, mas é amplamente conhecido por críticos literários: o de causar no leitor aquela satisfação diante de uma sucessão de eventos  que, além de dotado de direção e sentido, tem uma moralidade implícita, uma linha que separa o certo e o errado, à qual o historiador dá dar o seu endosso, colocando-se no lado certo da linha e servindo de testemunha de acusação contra a iniquidade do réu (o capitalismo, o comunismo, o nazismo, o colonialismo, o Terror jacobino, a Inquisição, a superstição, as perseguições de Dominiciano etc.) em defesa das vítimas (o proletariado, os dissidentes nos gulags, os judeus, as populações nativas, os girondinos, os esclarecidos, os cristãos, e assim por diante). Não se trata apenas de julgar moralmente as ações desta ou daquela figura histórica ou fazer a contabilidade dos mortos e feridos de uma época, mas de afirmar a moralidade do processo contra as formas injustas e desviantes.  Ao ganhar a forma de relato em 3ª pessoa feito por um narrador onisciente, como os romances tradicionais do século XIX , o relato do historiador ganha uma força suplementar devido ao efeito de realidade próprio da forma narrativa adotada. O leitor sente que tem diante de si um pedaço vivo do próprio devir histórico e não apenas a enunciação autoral de uma hipótese de investigação cuja autoridade deveria depender apenas das regras do rigor acadêmico. O exercício historiográfico particular feito pelo historiador se torna, para os leitores seduzidos pela força narrativa, em visão da própria História.

Essa confusão entre historiografia (registro, investigação, relato) e História (evento, processo) é especialmente perigosa quanto se trata de acontecimentos abertos à guerras políticas de interpretação. É difícil imaginar medievalistas em disputas encarniçadas sobre a vantagem de aderir aos cronistas guelfos ou aos gibelinos, mas é fácil compreender que, para os historiadores da Revolução Russa ou da Guerra Civil Espanhola, não há neutralidade possível. Tudo o que se pode esperar é a pesquisa rigorosa e honesta. Ainda assim, se o relato for bem-sucedido terá o duplo efeito insidioso de apresentar-se como visão da realidade histórica e, ao mesmo tempo, delimitar uma linha moral do certo e do errado, dos carrascos e das vítimas.

Para um cético como eu, a beleza do artigo de David Longley está justamente em afastar esse duplo efeito, colocando em prática aquela profilaxa que tenho defendido tantas vezes como condição para o exercício da inteligência, isto é, de uma compreensão rigorosa dos eventos e dos processos (oposta à tolice, à simplificação middlebrow e às adesões precipitadas). Longley mostra bem que a discussão sobre o caráter espontâneo ou dirigido da insurreição de fevereiro de 17 não resulta de lacuna de informações sobre o que aconteceu. Pelo contrário, os eventos foram abundantemente relatados dos mais variados pontos de vista. Todavia, como o enquadramento dos eventos é diferente em cada um dos depoimentos devido ao fato de que eles eram instrumentos nas disputas pelo poder no Comitê Central a partir de 1918 (disputas que poderiam resultar em ostracismo ou morte para o lado vencido), os historiadores se veem obrigados a selecionar quais são os depoimentos que considerarão válidos. No fundo, como mostra Longley, isso é feito com base numa regra prática (de cunho político e moral), que consiste em aceitar como verdadeiros os testemunhos daqueles que foram perseguidos por Stalin, o que confere uma espécie de consagração às versões de Shliapnikov (executado em 1937), Sukhanov (executado em 1940) e Trotsky (assassinado em 1940). Todavia, como afirma Longley, essa adesão à versão das vítimas de Stalin deixa intocadas certas premissas cuja investigação é necessária para a compreensão da Revolução Russa (ver nota 2).

No caso do brilhante relato que é a História da Revolução Russa, de Trotsky, não podemos perder de vista que, apesar da forma obreirista que o trotskismo veio a assumir,  o autor minimizou a participação de Shliapnikov – um dos poucos membros do Comitê Central que era de origem operária -, ao passo que se valeu amplamente das memórias de Sukhanov, que era menchevique, e de Kayurov, ligado a Stalin. Mas, para além dos problemas historiográficos decorrentes desse uso das fontes e da própria posição de Trotsky no processo revolucionário russo, e daqueles decorrentes do efeito de realidade do relato de Trotsky, acredito que seja necessário examinar com cuidado uma série de questões políticas e sociológicas a respeito do processo revolucionário, da ação das massas e do papel do partido, questões que – a meu ver - não podem ser resolvidas se colocadas nos termos dicotômicos das antigas polêmicas sobre o papel dos indivíduos excepcionais versus o papel das forças sociais, sobre a agência versus a estrutura,  ou sobre a liberdade versus a determinação.

Não que essas dicotomias fossem destituídas de sentido. Acredito que, por exemplo, que a discussão entre direção e espontaneidade do movimento das massas, embora formulada de modo apressado no calor das lutas políticas entre socialistas e anarquistas, e entre os seguidores de Lenin e de Rosa Luxemburg, tinha em seu núcleo uma questão muito mais importante, a qual foi obliterada quando a esquerda francesa pós-68 rompeu com o PCF e passou a remodelar o debate político com os conceitos de biopolítica, microfísica do poder, rizoma, revoluções moleculares e de fim dos grandes relatos. Essa questão importantíssima do qual dependia todo o debate das esquerdas do começo do século XX era: qual é a potência da massa? Isto é, o que quer e o que pode a multidão? 

Sem poder enfrentar diretamente essa questão, mas certo de que ela deve ser levada a sério mais uma vez pela esquerda (ver nota 3), quero retornar, no próximo capítulo, ao debate sobre a espontaneidade do movimento popular e a necessidade de direção do partido, tema a respeito do qual Trostsky propõe algumas considerações interessantes.

(continua)




Notas


  
Nota 1 –  “Iakolev’s question, it would appear, cannot be answered within the framework put forward by Shliapnikov. Yet it remais a valid question that demands an answer. What needs to be done, therefore, is to reexamine Shliapnikov’s framework. Shliapnikov was arguing a political case, and his History was part of that case. This does not mean that he lacked objectivity or honesty, but merely that, on the whole, he selected those facts that supported his political case: that the February revolution was not spontaneous, but was led by the Bolshevik leadership in Petrograd at the time, which alone was up to the task, and which upheld the revolutionary traditions of the Bolshevik party without recourse to any outside help. His case rests on a few simples premises:

1.That the February revolution began on International Women’s Day, 23 February (8 March) 1917, with strikes and demonstrations by women workers who had influenced by meetings organized by the Bolsheviks;

2.That the Vyborg district of Petrograd was the centre of the revolutionary movement;

3.That the Bolshevik, rather than anyone else, led the demonstrations, imposing their slogans on the crowds, and preventing violence towards the soldiers, with a view to winning them over.

4.That the arrest of most members of the Petersburg committee of the Bolshevik party, in the early morning of 26 February, did not interrupt Bolshevik leadership of the movement, as Shliapnikov was able to arrange for the Vyborg district committee to take over;

5.That the Bolshevik leadership was clear in its idea of what should be substituted for the old régime;

6.And that they were only under-represented on the soviet because they were outmaneuvered by politicians who took advantage of the party activists being occupied leading workers on the streets.”

D. A. Longley, “Iakolev’s Question, or the historiography of the problem of the spontaneity and leadership in the Russian Revolution of February 1917” in Revolution in Russia: Reassessments of 1917, org. Edith Rogovin Frankel, Jonathan Frankel, Baruch Knei-Paz, Cambridge University Press,1992, pp. 381-3)

Nota 2 - "Whereas Soviet historians have been severely restricted, their Western counterparts have been uninterested in the historiography of the question, and often appear to work on a rule of thumb that if someone was persecuted by Stalin, and had his views distorted, then these must be right. This has led to an exaggerated respect for Sukhanov, Trotsky and Shliapnikov, with little effort to distinguish between their views. But the debate, or our initiated by Sukhanov’s book was not an academic one about historical truth, but part of a struggle for political power, whose victims, from all sides, paid the penalty: Sukhanov, Kamenev and Zinoviev were executed. We should beware of allowing our sympathy for a man’s fate, or our distate for some of his actions, to determine our attitude to his evidence. All the protagonists used history for political ends, but not all, even on Stalin’s side, did so dishonestly. Thus we cannot reject Kaiurov’s and Iakolev’s views in toto simply because they were unpleasant characters in the 1920’s and 1930’s. Nor can we accept Shliapnikov’s approach uncritically, simply out of admiration for his courageous defense of this views throughout his lifetime".  (idem, ibidem, p. 382-3)

Nota 3 – Ocorre hoje uma greve geral contra a reforma trabalhista e previdenciária que foi proposta às pressas - e sem nenhum debate com os setores que sofrerão os seus efeitos - por um governo de legitimidade contestável, destituído de apoio popular e cujos integrantes são suspeitos de corrupção. A situação do país é agravada pela insegurança no plano econômico. As previsões de retomada do crescimento são incertas e o índice de desemprego é elevado (por volta de 14% no primeiro trimestre deste ano). Mesmo assim, o atual ministro da Justiça diz que a greve geral é apenas “baderna”, enquanto o prefeito de São Paulo chama os grevistas de “preguiçosos”. Embora eu respeite o voto de pobreza intelectual que fizeram o ministro Serraglio e o prefeito Dória, eu olho para o meu país e pergunto com sincera perplexidade: o que quer e o que pode a multidão?










quarta-feira, 12 de abril de 2017

A claraboia e o holofote #31 (IV)







Cenas da Revolução de 17


Cena I


Os cinco dias


23 de fevereiro (8 de março no calendário gregoriano) era o Dia Internacional da Mulher. Uma multidão de mulheres vindas dos bairros operários saiu às ruas em direção ao centro de Petrogrado em protesto contra o racionamento de pão. As tentativas feitas pelo governo para acalmar a população foram inúteis. No dia seguinte, quase todas as fábricas da cidade entraram em greve. No terceiro dia, os grevistas em marcha foram impedidos de cruzar as pontes do Neva, mas atravessaram sobre a superfície congelada do rio e, do outro lado, acabaram por confraternizar com os cossacos, que impediram um ataque da polícia. À noite, o czar enviou ordens para que os tumultos na capital cessassem na manhã seguinte, um domingo.  Nada havia sido proposto pelas organizações operárias para aquele dia, mas a multidão saiu dos bairros operários, especialmente Vyborg, e seguiu para o centro, onde encontrou os soldados em postos de combate. Ao ver que eles hesitavam em atirar, os oficiais os obrigaram a disparar contra o povo. Houve uns 40 mortos e outro tanto de feridos. Os manifestantes se dispersaram e voltaram para casa. Parecia que o levante popular tinha acabado, mas, na noite de 26 para 27, os soldados se amotinaram contra os oficiais e, pela manhã, confraternizaram com os operários. Eles atravessaram as pontes do Neva, tomaram armas do Arsenal e invadiram o Palácio de Inverno. A bandeira da Rússia imperial foi baixada. Era o fim do czarismo.



Os eventos na análise de Trotsky


a) O papel de Petrogrado

Não é exagero dizer que Petrogrado realizou sozinha a Revolução de Fevereiro. O resto do país não fez mais do que aderir. Somente em Petrogrado se registraram combates. Não houve, em todo o país, um só grupo popular, um só partido, uma só instituição, um único regimento que se levantasse em defesa do antigo regime.
(León Trotsky, História da Revolução Russa, vol. I, capítulo VIII, Paz e Terra, Rio de Janeiro, p. 133)


b)  O caráter antidemocrático das revoluções democráticas

Deve-se a queda do poder à iniciativa e ao esforço de uma cidade que representava mais ou menos 1/75 da população do país. Se desejarmos, poderemos dizer que o maior dos atos democráticos se realizou do modo menos democrático possível. Todo o país encontrou-se diante de um fait accompli. (...) Isso vem lançar uma intensa luz sobre a questão do funcionamento das formas democráticas em geral e, em particular, num período revolucionário. As revoluções têm constantemente infligido rudes golpes no fetichismo jurídico da “vontade popular”, golpes mais implacáveis por serem elas mais profundas, mais audaciosas e mais democráticas.
(idem,  p. 133)


c) A questão da espontaneidade das forças sociais

Tugan-Baranovsky tem razão quando afirma que a Revolução de Fevereiro foi obra dos operários e camponeses, estes últimos representados pelos soldados. Subsiste, entretanto, uma séria controvérsia: Quem dirigiu a insurreição? Após a vitória, essas questões tornaram-se o pomo da discórdia entre os partidos. A solução mais simples consistia na fórmula universal: ninguém conduziu a Revolução – ela se fez por si mesma. A teoria das “forças espontâneas”, mais do que qualquer outra, é conveniente não apenas a esses senhores que, ainda na véspera, tranquilamente administravam, julgavam, acusavam, defendiam, negociavam, ou comandavam e que agora se apressavam em fazer causa comum com a Revolução; porém ela conviria também a numerosos políticos profissionais e ex-revolucionários que, adormecidos durante a Revolução, queriam acreditar terem-se conduzido tal como todos os demais.(...)

O liberalismo adotou inteiramente a teoria do caráter espontâneo e impessoal da insurreição. Foi com simpatia que Miliukov solicitou a opinião do professor semi-liberal, semi-socialista Stankevich, conferencista que desempenhara durante algum tempo o papel de comissário do Governo no quartel-general. “As massas puseram-se por si mesmas em movimento, obedecendo a um apelo íntimo, inconsciente” – escreve Stankevich, a respeito das jornadas de fevereiro. Com que palavras de ordem marcharam os soldados? Quem os conduziu quando conquistaram Petrogrado, quando incendiaram o Palácio da Justiça? Não foi uma ideia política, nem uma palavra de ordem revolucionária, nem uma conspiração, nem um motim, porém um movimento de forças elementares, o qual reduziu bruscamente a cinzas o antigo regime, sem nada deixar dele. A força espontânea adquire aqui um caráter quase místico. (...)

Mas o que aconteceu com os bolcheviques? Já o sabemos, em parte. Os principais líderes das organizações clandestinas bolcheviques em Petrogrado eram três: os antigos operários Shliapnikov e Zalutsky e o antigo estudante Molotov. Shliapnikov, que durante muitos anos vivera no estrangeiro e que mantinha relações estreitas com Lenin, era, do ponto de vista político, o mais amadurecido e o mais ativo dos três mil militantes que constituíam o Birô do Comitê-Central. As próprias memórias de Shliapnikov demonstram, entretanto, melhor do que qualquer outro documento, que o trio não estava à altura dos acontecimentos. Até a última hora os líderes pensavam que se tratava apenas de uma demonstração revolucionária – mais uma entre tantas outras – porém de modo algum uma insurreição armada. Kayurov, que já citamos, um dos líderes do bairro de Vyborg, afirma categoricamente o seguinte: “Não recebemos instrução alguma dos órgãos centrais do Partido... O Comitê de Petrogrado estava preso e o representante do Comitê-Central, o camarada Shliapnikov, não se encontrava em condições de dar instruções para o dia seguinte”. (...)

Uma vez que o Partido Bolchevique não podia garantir aos insurretos uma liderança autorizada, que dizer das outras organizações políticas? Assim fortificava-se a convicção geral de um movimento de forças espontâneas na Revolução de Fevereiro. Contudo, esta opinião era muitíssimo errônea ou, pelo menos, sem conteúdo. (...)

Registrando os acontecimentos dos últimos dias de fevereiro, o Serviço Secreto declarava também que o movimento era “espontâneo”, isto é, não fora metodicamente dirigido de cima: acrescentava, entretanto: “O proletariado foi por inteiro trabalhado pela propaganda”. Essa afirmativa tocava no ponto justo: os profissionais da luta contra a Revolução, antes de substituir nos cárceres os revolucionários libertados, discerniam melhor do que os líderes do liberalismo o processo daquele momento. (...)

Em cada fábrica, em cada corporação, em cada companhia militar, em cada taverna, em cada hospital do Exército, em cada acantonamento e, até mesmo, nos campos despovoados progredia um trabalho molecular da ideia revolucionária. Por toda parte havia comentários dos acontecimentos, principalmente operários com os quais se obtinham informações e dos quais se esperava a palavra necessária. Esses chefes de grupos estavam muitas vezes entregues a si mesmos, ingeriam os fragmentos de generalizações revolucionárias que chegavam até eles por diversos caminhos descobrindo por si mesmos, nos jornais liberais, o que lhes era necessário, lendo nas entrelinhas. Seu instinto de classe era aguçado pelo critério político, e, mesmo que não levassem todas as suas ideias até o fim, o seu pensamento nem por isso trabalhava menos, sem um instante de trégua, obstinadamente, e sempre na mesma direção. Esses elementos de experiência, de crítica, de iniciativa e de abnegação penetravam nas massas e constituiam o mecanismo íntimo despercebido a um olhar superficial porém decisivo no que se tratava do movimento revolucionário, como processo consciente. Aos políticos, fanfarrões do liberalismo e do socialismo domesticado, tudo o que se produz no meio das massas parece geralmente um processo instintivo, como se se passasse num formigueiro ou numa colmeia. (...) O pensamento operário era mais científico: não somente por ter sido fecundado, em grande parte, pelos métodos marxistas como, principalmente, porque se tinha nutrido da experiência viva das massas que entrariam bem cedo na arena revolucionária. O caráter científico do pensamento se manifesta em sua correspondência com o processo objetivo e na sua capacidade para entusiasmar esse processo e dirigi-lo.  Esta faculdade, mesmo em pequenas proporções, a possuiriam as esferas governamentais que se inspiravam no Apocalipse ou que acreditavam nos sonhos de Rasputin? Acaso teriam base científica as ideias do liberalismo que esperava que uma Rússia atrasada, participando da contenda dos gigantes do capitalismo, pudesse ao mesmo tempo vencer e obter um regime parlamentar? (...) Na verdade, vivia-se no reino de um poderoso torpor espiritual, no país dos fantasmas, das superstições, das ficções, ou antes, se quisermos, no reino das “forças espontâneas”. Não temos, pois o direito de dizer: enquanto a sociedade oficial, essa superestrutura de numerosos andares que constituiam as classes dirigentes, seus grupos, seus partidos e seus clãs, vivia dia por dia na sua inércia e no seu automatismo, nutrindo-se das reminiscências de ideias caducas, surdas às inexoráveis exigências do progresso, seduzidas pelos fantasmas, sem prever coisa alguma, operava-se, nas massas proletárias, um processo espontâneo e profundo, não somente de ódio crescente contra os dirigentes e de um juízo crítico sobre a sua incapacidade, como também de acumulação de experiências e de consciência criadora, processo que se confirmou na insurreição e no triunfo da revolução.

À questão acima apresentada: Quem dirigiu a Revolução de Fevereiro? Podemos, por conseguinte, responder com a clareza desejável: os operários conscientes e bem temperados e sobretudo os que se formaram na escola do partido de Lenin. Devemos acrescentar porém que esta liderança suficiente para assegurar a vitória da insurreição não estava em condições, logo no início, de colocar a direção do movimento revolucionário entre as mãos da vanguarda proletária.

( idem, pp. 134-142) 



No próximo capítulo, quero comentar alguns problemas que essas linhas de Trotsky colocam para a sociologia, para a teoria política e para a interpretação histórica da Revolução Russa.





 A claraboia e o holofote

aniversário de 4 anos