Cenas
da Revolução de 17
Cena I
Os cinco dias
23 de fevereiro (8 de março no
calendário gregoriano) era o Dia Internacional da Mulher. Uma multidão de
mulheres vindas dos bairros operários saiu às ruas em direção ao centro de
Petrogrado em protesto contra o racionamento de pão. As tentativas feitas pelo
governo para acalmar a população foram inúteis. No dia seguinte, quase todas as
fábricas da cidade entraram em greve. No terceiro dia, os grevistas em marcha
foram impedidos de cruzar as pontes do Neva, mas atravessaram sobre a superfície
congelada do rio e, do outro lado, acabaram por confraternizar com os cossacos,
que impediram um ataque da polícia. À noite, o czar enviou ordens para que os
tumultos na capital cessassem na manhã seguinte, um domingo. Nada
havia sido proposto pelas organizações operárias para aquele dia, mas a
multidão saiu dos bairros operários, especialmente Vyborg, e seguiu para o
centro, onde encontrou os soldados em postos de combate. Ao ver que eles
hesitavam em atirar, os oficiais os obrigaram a disparar contra o povo. Houve
uns 40 mortos e outro tanto de feridos. Os manifestantes se dispersaram e
voltaram para casa. Parecia que o levante popular tinha acabado, mas, na noite
de 26 para 27, os soldados se amotinaram contra os oficiais e, pela manhã, confraternizaram
com os operários. Eles atravessaram as pontes do Neva, tomaram armas do Arsenal
e invadiram o Palácio de Inverno. A bandeira da Rússia imperial foi baixada.
Era o fim do czarismo.
Os eventos na análise de Trotsky
a) O papel de Petrogrado
Não é exagero dizer que Petrogrado
realizou sozinha a Revolução de Fevereiro. O resto do país não fez mais do que
aderir. Somente em Petrogrado se registraram combates. Não houve, em todo o
país, um só grupo popular, um só partido, uma só instituição, um único
regimento que se levantasse em defesa do antigo regime.
(León Trotsky, História da
Revolução Russa, vol. I, capítulo VIII, Paz e Terra, Rio de Janeiro, p. 133)
b) O caráter antidemocrático das revoluções democráticas
Deve-se a queda do poder à iniciativa e
ao esforço de uma cidade que representava mais ou menos 1/75 da população do
país. Se desejarmos, poderemos dizer que o maior dos atos democráticos se
realizou do modo menos democrático possível. Todo o país encontrou-se diante de
um fait accompli. (...) Isso vem lançar uma intensa luz sobre a questão do
funcionamento das formas democráticas em geral e, em particular, num período
revolucionário. As revoluções têm constantemente infligido rudes golpes no
fetichismo jurídico da “vontade popular”, golpes mais implacáveis por serem
elas mais profundas, mais audaciosas e mais democráticas.
(idem, p. 133)
c) A questão da espontaneidade das
forças sociais
Tugan-Baranovsky tem razão quando
afirma que a Revolução de Fevereiro foi obra dos operários e camponeses, estes
últimos representados pelos soldados. Subsiste, entretanto, uma séria
controvérsia: Quem dirigiu a insurreição? Após a vitória, essas questões tornaram-se
o pomo da discórdia entre os partidos. A solução mais simples consistia na
fórmula universal: ninguém conduziu a Revolução – ela se fez por si mesma. A
teoria das “forças espontâneas”, mais do que qualquer outra, é conveniente não
apenas a esses senhores que, ainda na véspera, tranquilamente administravam,
julgavam, acusavam, defendiam, negociavam, ou comandavam e que agora se
apressavam em fazer causa comum com a Revolução; porém ela conviria também a
numerosos políticos profissionais e ex-revolucionários que, adormecidos durante
a Revolução, queriam acreditar terem-se conduzido tal como todos os
demais.(...)
O liberalismo adotou inteiramente a
teoria do caráter espontâneo e impessoal da insurreição. Foi com simpatia que
Miliukov solicitou a opinião do professor semi-liberal, semi-socialista
Stankevich, conferencista que desempenhara durante algum tempo o papel de
comissário do Governo no quartel-general. “As massas puseram-se por si mesmas
em movimento, obedecendo a um apelo íntimo, inconsciente” – escreve Stankevich,
a respeito das jornadas de fevereiro. Com que palavras de ordem marcharam os
soldados? Quem os conduziu quando conquistaram Petrogrado, quando incendiaram o
Palácio da Justiça? Não foi uma ideia política, nem uma palavra de ordem revolucionária,
nem uma conspiração, nem um motim, porém um movimento de forças elementares, o
qual reduziu bruscamente a cinzas o antigo regime, sem nada deixar dele. A
força espontânea adquire aqui um caráter quase místico. (...)
Mas o que aconteceu com os bolcheviques?
Já o sabemos, em parte. Os principais líderes das organizações clandestinas
bolcheviques em Petrogrado eram três: os antigos operários Shliapnikov e
Zalutsky e o antigo estudante Molotov. Shliapnikov, que durante muitos anos
vivera no estrangeiro e que mantinha relações estreitas com Lenin, era, do
ponto de vista político, o mais amadurecido e o mais ativo dos três mil
militantes que constituíam o Birô do Comitê-Central. As próprias memórias de
Shliapnikov demonstram, entretanto, melhor do que qualquer outro documento, que
o trio não estava à altura dos acontecimentos. Até a última hora os líderes
pensavam que se tratava apenas de uma demonstração revolucionária – mais uma
entre tantas outras – porém de modo algum uma insurreição armada. Kayurov, que
já citamos, um dos líderes do bairro de Vyborg, afirma categoricamente o
seguinte: “Não recebemos instrução alguma dos órgãos centrais do Partido... O
Comitê de Petrogrado estava preso e o representante do Comitê-Central, o
camarada Shliapnikov, não se encontrava em condições de dar instruções para o
dia seguinte”. (...)
Uma vez que o Partido Bolchevique não
podia garantir aos insurretos uma liderança autorizada, que dizer das outras
organizações políticas? Assim fortificava-se a convicção geral de um movimento
de forças espontâneas na Revolução de Fevereiro. Contudo, esta opinião era
muitíssimo errônea ou, pelo menos, sem conteúdo. (...)
Registrando os acontecimentos dos
últimos dias de fevereiro, o Serviço Secreto declarava também que o movimento
era “espontâneo”, isto é, não fora metodicamente dirigido de cima:
acrescentava, entretanto: “O proletariado foi por inteiro trabalhado pela
propaganda”. Essa afirmativa tocava no ponto justo: os profissionais da luta
contra a Revolução, antes de substituir nos cárceres os revolucionários
libertados, discerniam melhor do que os líderes do liberalismo o processo
daquele momento. (...)
Em cada fábrica, em cada corporação, em
cada companhia militar, em cada taverna, em cada hospital do Exército, em cada
acantonamento e, até mesmo, nos campos despovoados progredia um trabalho
molecular da ideia revolucionária. Por toda parte havia comentários dos
acontecimentos, principalmente operários com os quais se obtinham informações e
dos quais se esperava a palavra necessária. Esses chefes de grupos estavam
muitas vezes entregues a si mesmos, ingeriam os fragmentos de generalizações
revolucionárias que chegavam até eles por diversos caminhos descobrindo por si
mesmos, nos jornais liberais, o que lhes era necessário, lendo nas entrelinhas.
Seu instinto de classe era aguçado pelo critério político, e, mesmo que não
levassem todas as suas ideias até o fim, o seu pensamento nem por isso
trabalhava menos, sem um instante de trégua, obstinadamente, e sempre na mesma
direção. Esses elementos de experiência, de crítica, de iniciativa e de
abnegação penetravam nas massas e constituiam o mecanismo íntimo despercebido a
um olhar superficial porém decisivo no que se tratava do movimento
revolucionário, como processo consciente. Aos políticos, fanfarrões do
liberalismo e do socialismo domesticado, tudo o que se produz no meio das
massas parece geralmente um processo instintivo, como se se passasse num
formigueiro ou numa colmeia. (...) O pensamento operário era mais científico:
não somente por ter sido fecundado, em grande parte, pelos métodos marxistas
como, principalmente, porque se tinha nutrido da experiência viva das massas
que entrariam bem cedo na arena revolucionária. O caráter científico do
pensamento se manifesta em sua correspondência com o processo objetivo e na sua
capacidade para entusiasmar esse processo e dirigi-lo. Esta
faculdade, mesmo em pequenas proporções, a possuiriam as esferas governamentais
que se inspiravam no Apocalipse ou que acreditavam nos sonhos de Rasputin?
Acaso teriam base científica as ideias do liberalismo que esperava que uma
Rússia atrasada, participando da contenda dos gigantes do capitalismo, pudesse
ao mesmo tempo vencer e obter um regime parlamentar? (...) Na verdade, vivia-se
no reino de um poderoso torpor espiritual, no país dos fantasmas, das
superstições, das ficções, ou antes, se quisermos, no reino das “forças
espontâneas”. Não temos, pois o direito de dizer: enquanto a sociedade oficial,
essa superestrutura de numerosos andares que constituiam as classes dirigentes,
seus grupos, seus partidos e seus clãs, vivia dia por dia na sua inércia e no
seu automatismo, nutrindo-se das reminiscências de ideias caducas, surdas às
inexoráveis exigências do progresso, seduzidas pelos fantasmas, sem prever
coisa alguma, operava-se, nas massas proletárias, um processo espontâneo e
profundo, não somente de ódio crescente contra os dirigentes e de um juízo
crítico sobre a sua incapacidade, como também de acumulação de experiências e
de consciência criadora, processo que se confirmou na insurreição e no triunfo
da revolução.
À questão acima apresentada: Quem
dirigiu a Revolução de Fevereiro? Podemos, por conseguinte, responder com a
clareza desejável: os operários conscientes e bem temperados e sobretudo os que
se formaram na escola do partido de Lenin. Devemos acrescentar porém que esta
liderança suficiente para assegurar a vitória da insurreição não estava em
condições, logo no início, de colocar a direção do movimento revolucionário
entre as mãos da vanguarda proletária.
( idem, pp. 134-142)
No próximo capítulo, quero comentar alguns problemas que essas linhas de
Trotsky colocam para a sociologia, para a teoria política e para
a interpretação histórica da Revolução Russa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário