quarta-feira, 12 de abril de 2017

A claraboia e o holofote #31 (IV)







Cenas da Revolução de 17


Cena I


Os cinco dias


23 de fevereiro (8 de março no calendário gregoriano) era o Dia Internacional da Mulher. Uma multidão de mulheres vindas dos bairros operários saiu às ruas em direção ao centro de Petrogrado em protesto contra o racionamento de pão. As tentativas feitas pelo governo para acalmar a população foram inúteis. No dia seguinte, quase todas as fábricas da cidade entraram em greve. No terceiro dia, os grevistas em marcha foram impedidos de cruzar as pontes do Neva, mas atravessaram sobre a superfície congelada do rio e, do outro lado, acabaram por confraternizar com os cossacos, que impediram um ataque da polícia. À noite, o czar enviou ordens para que os tumultos na capital cessassem na manhã seguinte, um domingo.  Nada havia sido proposto pelas organizações operárias para aquele dia, mas a multidão saiu dos bairros operários, especialmente Vyborg, e seguiu para o centro, onde encontrou os soldados em postos de combate. Ao ver que eles hesitavam em atirar, os oficiais os obrigaram a disparar contra o povo. Houve uns 40 mortos e outro tanto de feridos. Os manifestantes se dispersaram e voltaram para casa. Parecia que o levante popular tinha acabado, mas, na noite de 26 para 27, os soldados se amotinaram contra os oficiais e, pela manhã, confraternizaram com os operários. Eles atravessaram as pontes do Neva, tomaram armas do Arsenal e invadiram o Palácio de Inverno. A bandeira da Rússia imperial foi baixada. Era o fim do czarismo.



Os eventos na análise de Trotsky


a) O papel de Petrogrado

Não é exagero dizer que Petrogrado realizou sozinha a Revolução de Fevereiro. O resto do país não fez mais do que aderir. Somente em Petrogrado se registraram combates. Não houve, em todo o país, um só grupo popular, um só partido, uma só instituição, um único regimento que se levantasse em defesa do antigo regime.
(León Trotsky, História da Revolução Russa, vol. I, capítulo VIII, Paz e Terra, Rio de Janeiro, p. 133)


b)  O caráter antidemocrático das revoluções democráticas

Deve-se a queda do poder à iniciativa e ao esforço de uma cidade que representava mais ou menos 1/75 da população do país. Se desejarmos, poderemos dizer que o maior dos atos democráticos se realizou do modo menos democrático possível. Todo o país encontrou-se diante de um fait accompli. (...) Isso vem lançar uma intensa luz sobre a questão do funcionamento das formas democráticas em geral e, em particular, num período revolucionário. As revoluções têm constantemente infligido rudes golpes no fetichismo jurídico da “vontade popular”, golpes mais implacáveis por serem elas mais profundas, mais audaciosas e mais democráticas.
(idem,  p. 133)


c) A questão da espontaneidade das forças sociais

Tugan-Baranovsky tem razão quando afirma que a Revolução de Fevereiro foi obra dos operários e camponeses, estes últimos representados pelos soldados. Subsiste, entretanto, uma séria controvérsia: Quem dirigiu a insurreição? Após a vitória, essas questões tornaram-se o pomo da discórdia entre os partidos. A solução mais simples consistia na fórmula universal: ninguém conduziu a Revolução – ela se fez por si mesma. A teoria das “forças espontâneas”, mais do que qualquer outra, é conveniente não apenas a esses senhores que, ainda na véspera, tranquilamente administravam, julgavam, acusavam, defendiam, negociavam, ou comandavam e que agora se apressavam em fazer causa comum com a Revolução; porém ela conviria também a numerosos políticos profissionais e ex-revolucionários que, adormecidos durante a Revolução, queriam acreditar terem-se conduzido tal como todos os demais.(...)

O liberalismo adotou inteiramente a teoria do caráter espontâneo e impessoal da insurreição. Foi com simpatia que Miliukov solicitou a opinião do professor semi-liberal, semi-socialista Stankevich, conferencista que desempenhara durante algum tempo o papel de comissário do Governo no quartel-general. “As massas puseram-se por si mesmas em movimento, obedecendo a um apelo íntimo, inconsciente” – escreve Stankevich, a respeito das jornadas de fevereiro. Com que palavras de ordem marcharam os soldados? Quem os conduziu quando conquistaram Petrogrado, quando incendiaram o Palácio da Justiça? Não foi uma ideia política, nem uma palavra de ordem revolucionária, nem uma conspiração, nem um motim, porém um movimento de forças elementares, o qual reduziu bruscamente a cinzas o antigo regime, sem nada deixar dele. A força espontânea adquire aqui um caráter quase místico. (...)

Mas o que aconteceu com os bolcheviques? Já o sabemos, em parte. Os principais líderes das organizações clandestinas bolcheviques em Petrogrado eram três: os antigos operários Shliapnikov e Zalutsky e o antigo estudante Molotov. Shliapnikov, que durante muitos anos vivera no estrangeiro e que mantinha relações estreitas com Lenin, era, do ponto de vista político, o mais amadurecido e o mais ativo dos três mil militantes que constituíam o Birô do Comitê-Central. As próprias memórias de Shliapnikov demonstram, entretanto, melhor do que qualquer outro documento, que o trio não estava à altura dos acontecimentos. Até a última hora os líderes pensavam que se tratava apenas de uma demonstração revolucionária – mais uma entre tantas outras – porém de modo algum uma insurreição armada. Kayurov, que já citamos, um dos líderes do bairro de Vyborg, afirma categoricamente o seguinte: “Não recebemos instrução alguma dos órgãos centrais do Partido... O Comitê de Petrogrado estava preso e o representante do Comitê-Central, o camarada Shliapnikov, não se encontrava em condições de dar instruções para o dia seguinte”. (...)

Uma vez que o Partido Bolchevique não podia garantir aos insurretos uma liderança autorizada, que dizer das outras organizações políticas? Assim fortificava-se a convicção geral de um movimento de forças espontâneas na Revolução de Fevereiro. Contudo, esta opinião era muitíssimo errônea ou, pelo menos, sem conteúdo. (...)

Registrando os acontecimentos dos últimos dias de fevereiro, o Serviço Secreto declarava também que o movimento era “espontâneo”, isto é, não fora metodicamente dirigido de cima: acrescentava, entretanto: “O proletariado foi por inteiro trabalhado pela propaganda”. Essa afirmativa tocava no ponto justo: os profissionais da luta contra a Revolução, antes de substituir nos cárceres os revolucionários libertados, discerniam melhor do que os líderes do liberalismo o processo daquele momento. (...)

Em cada fábrica, em cada corporação, em cada companhia militar, em cada taverna, em cada hospital do Exército, em cada acantonamento e, até mesmo, nos campos despovoados progredia um trabalho molecular da ideia revolucionária. Por toda parte havia comentários dos acontecimentos, principalmente operários com os quais se obtinham informações e dos quais se esperava a palavra necessária. Esses chefes de grupos estavam muitas vezes entregues a si mesmos, ingeriam os fragmentos de generalizações revolucionárias que chegavam até eles por diversos caminhos descobrindo por si mesmos, nos jornais liberais, o que lhes era necessário, lendo nas entrelinhas. Seu instinto de classe era aguçado pelo critério político, e, mesmo que não levassem todas as suas ideias até o fim, o seu pensamento nem por isso trabalhava menos, sem um instante de trégua, obstinadamente, e sempre na mesma direção. Esses elementos de experiência, de crítica, de iniciativa e de abnegação penetravam nas massas e constituiam o mecanismo íntimo despercebido a um olhar superficial porém decisivo no que se tratava do movimento revolucionário, como processo consciente. Aos políticos, fanfarrões do liberalismo e do socialismo domesticado, tudo o que se produz no meio das massas parece geralmente um processo instintivo, como se se passasse num formigueiro ou numa colmeia. (...) O pensamento operário era mais científico: não somente por ter sido fecundado, em grande parte, pelos métodos marxistas como, principalmente, porque se tinha nutrido da experiência viva das massas que entrariam bem cedo na arena revolucionária. O caráter científico do pensamento se manifesta em sua correspondência com o processo objetivo e na sua capacidade para entusiasmar esse processo e dirigi-lo.  Esta faculdade, mesmo em pequenas proporções, a possuiriam as esferas governamentais que se inspiravam no Apocalipse ou que acreditavam nos sonhos de Rasputin? Acaso teriam base científica as ideias do liberalismo que esperava que uma Rússia atrasada, participando da contenda dos gigantes do capitalismo, pudesse ao mesmo tempo vencer e obter um regime parlamentar? (...) Na verdade, vivia-se no reino de um poderoso torpor espiritual, no país dos fantasmas, das superstições, das ficções, ou antes, se quisermos, no reino das “forças espontâneas”. Não temos, pois o direito de dizer: enquanto a sociedade oficial, essa superestrutura de numerosos andares que constituiam as classes dirigentes, seus grupos, seus partidos e seus clãs, vivia dia por dia na sua inércia e no seu automatismo, nutrindo-se das reminiscências de ideias caducas, surdas às inexoráveis exigências do progresso, seduzidas pelos fantasmas, sem prever coisa alguma, operava-se, nas massas proletárias, um processo espontâneo e profundo, não somente de ódio crescente contra os dirigentes e de um juízo crítico sobre a sua incapacidade, como também de acumulação de experiências e de consciência criadora, processo que se confirmou na insurreição e no triunfo da revolução.

À questão acima apresentada: Quem dirigiu a Revolução de Fevereiro? Podemos, por conseguinte, responder com a clareza desejável: os operários conscientes e bem temperados e sobretudo os que se formaram na escola do partido de Lenin. Devemos acrescentar porém que esta liderança suficiente para assegurar a vitória da insurreição não estava em condições, logo no início, de colocar a direção do movimento revolucionário entre as mãos da vanguarda proletária.

( idem, pp. 134-142) 



No próximo capítulo, quero comentar alguns problemas que essas linhas de Trotsky colocam para a sociologia, para a teoria política e para a interpretação histórica da Revolução Russa.





 A claraboia e o holofote

aniversário de 4 anos









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