quarta-feira, 22 de março de 2017

A claraboia e o holofote #31 (III)







Razões para lembrar de 1917


Quando nasci, o espectro do comunismo parecia mais espectral. Para espantar o fantasma não bastava a água benta das carolas de Santana. Invocavam-se o estado de exceção e o porrete dos homens das casernas, seguidos pela usual tropa de amanuenses e torturadores com alicate. O Marechal Costa e Silva acabava de assumir a Presidência do Brasil.

No mundo em que nasci, completavam-se os trinta anos da vitória dos falangistas sobre os republicanos espanhóis. Franco e Salazar ainda estavam vivos. Angola e Moçambique eram colônias portuguesas. As tropas americanas faziam incursões do tipo search and destroy no Vietnam. Che Guevara estava enfronhado nas matas da Bolívia. A secessão na Nigéria dava origem à efêmera e trágica república de Biafra. Nos Estados Unidos, havia protestos pela paz nas universidades. No verão, hippies de todo o país punham flores nos cabelos para se reunirem em Haight-Ashbury. A Igreja Católica, ainda hegemônica na América Latina, abria-se para a renovação pastoral e doutrinal com o concílio Vaticano II. Na União Soviética, o Presidium Supremo se preparava para a grande comemoração dos cinquenta anos da Revolução.

Vinte depois, eu estava na universidade. O Brasil tropeçava nos seus esforços de redemocratização. Uma assembleia constituinte havia sido eleita, mas a economia vivia às custas de planos que prometiam, sem sucesso, debelar a inflação e instaurar condições para o crescimento. Ronald Reagan e Margaret Tatcher, há muitos anos no poder, eram os porta-vozes do mundo livre e do Estado mínimo. A aliança entre conservadorismo e neoliberalismo que se tornaria o credo (quia absurdum est) de uma geração estava a nascer naquele ano em que a Revolução Russa era uma anciã de setenta anos tão inócua quanto a múmia de Lenin.  Era uma estranha época aquela em que a palavra “libertário”, antes reservada à esquerda radical, passou a ser usada por yuppies (um tipo ascendente da época), que liam a Arte da Guerra em edições de bolso, admiravam Reagan, declaravam que não havia mais esquerda e direita, que não havia mal em ficar rico às custas dos loosers e que Marx estava morto

Certamente aquele Marx que falava da história e do proletariado como sujeito  revolucionário estava realmente morto. Para minha geração, Raymond Aron, que tinha morrido há quatro anos, já não era o antipático desmancha-prazeres gaullista que implicava com Sartre, talvez invejoso da fama e da eloquência do antigo colega normalien. Muitas das objeções que Aron levantara na década de 50, antes mesmo da intervenção soviética na Hungria e das revelações do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, muitos dos argumentos contra as ilusões alimentadas pela esquerda da Rive Gauche a respeito da História, do Progresso, da Revolução e do Proletariado começaram a fazer parte do senso comum naquele momento em que a crise da sociedade do trabalho deixava de ser uma especulação de cientistas sociais e ganhava contornos nítidos até mesmo nos países em desenvolvimento. Nesse ambiente de capitalismo tardio e de promessas de modernização incompletas, a versão militante-comunista do marximo parecia apenas uma fé religiosa messiânica que repugnava o niilismo bem-pensante. Em 1987 era fácil zombar das esperanças emancipatórias da contracultura dos anos 60: daquelas moças e rapazes que carregaram cartazes pelo fim dos bombardeios no Vietnam, que dançaram ao som de Jefferson Airplane em San Francisco, que pegaram em armas contra o regime militar brasileiro, que saíram de Vincennes e Nanterre para fazer barricadas no Quartier Latin.  

A maior parte das pessoas que leem minhas palavras nem havia nascido em 87, portanto, elas não sabem que o tom cinzento e desiludido da época era dado por obras e autores como o Pós-Moderno, de Lyotard, que declarava ultrapassados os grandes relatos (o Progresso, a Revolução, a Emancipação etc.); pela Cultura do Narcisismo ou o Mínimo Eu, de Christoph Lasch, que combatia a sociedade de consumo autoindulgente com uma leitura conservadora e neofreudiana do fetichismo da mercadoria; pela interminável ladainha de Cioran – o niilista poseur - sobre a nulidade do universo; pela defesa do cinismo filosófico nos escritos de Peter Sloterdijk; pela pregação apocalíptica de Paul Virilio e Jean Baudrillard sobre um mundo em que a velocidade, o simulacro e o virtual haviam substituído a duração, a substancialidade e a realidade e em que a política havia sido convertida em espetáculo para as maiorias silenciosas. O maior sinal da anemia em que então se encontrava o marxismo foi o sucesso que  a  editora Companhia das Letras, recém-fundada, granjeou com a publicação de obras como Tudo o que é sólido desmancha no ar, de Marshall Berman (uma dose de marxismo superficial desses que se lê em xérox da faculdade e três doses de Emerson e Thoureau) ou Rumo à Estação Finlândia, divertido livro de fofocas que, à falta de leitura mais séria, tem servido para educação “marxista” das novas gerações.

Naquele ano, não me lembro das notícias sobre as comemorações dos setenta anos da Revolução. A União Soviética de Gorbatchev estava imersa no período convulso da Perestroika e mal havia se recuperado do desastre com a usina nuclear de Chernobyl no ano anterior.  O mundo da cortina de ferro, o mundo de Erich Honecker, do General Jaruselski, de Nicolai Ceausescu e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas logo se desintegraria com uma rapidez inacreditável e quase cômica entre novembro de 1989 e agosto de 1991.

Agora estamos no centenário da Revolução.  A título de piada doméstica, meu filho pregou na parede do quarto um pôster de Lenin que um amigo comprou na Hungria. Para mim, a piada tem um travo amargo, porque eu consigo entender as esperanças que a revolução mobilizou e compreendo a decepção posterior, da qual Rosa Luxemburg foi a primeira porta-voz.  Por isso, meu propósito nos capítulos seguintes não é contar a (praticamente esquecida) história da Revolução Russa, mas escolher, guiado pelas minhas próprias angústias de homem de esquerda, alguns momentos do processo, tais como foram narrados por participantes como Trotsky, Sukhanov, Kerensky, Victor Serge ou por historiadores como Chamberlain, Richard  Pipes ou Orlando Figes. Certamente minha leitura terá algo de anacrônico, porque o que me leva a vasculhar esses arquivos empoeirados são  questões como: o que está vivo e o que está morto no legado de Marx depois do colapso das aspirações revolucionárias e das promessas de emancipação da classe operária?  Ou, o que a esquerda, hoje à deriva, pode aprender com a agitação de fevereiro a novembro de 1917


Voltemos, então, àquela insurreição do final de fevereiro que pegou de surpresa os Romanov e os bolcheviques.

Incipit tragoedia. 










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