Cenas da Revolução de 17
Da espontaneidade
“A essência do marxismo científico consiste
em reconhecer a independência das forças
motrizes reais da história
em relação à consciência (psicológica) que os
homens têm”.
Lukács, História e Consciência de Classe
Em
fevereiro de 1917, alguns dias de agitação popular em Petrogrado levaram ao fim
do czarismo na Rússia. A discussão historiográfica sobre o caráter espontâneo
ou dirigido da insurreição de fevereiro esbarra nos problemas políticos
indicados no ensaio de David Longley que mencionamos no capítulo
anterior. Há, porém, uma outra série de problemas, de cunho
filosófico, sociológico e político, postos por Marx e seus herdeiros
intelectuais e jamais resolvidos por eles, que dizem respeito à possibilidade,
limites e eficácia da ação coletiva espontânea.
A
maneira elástica com que a palavra “espontâneo” é aplicada às mais variadas
situações explicam apenas em parte o desacordo entre os teóricos marxistas.
Espontâneo pode significar (a) que algo aconteceu sem uma causa externa (como
no conceito de “geração espontânea”); (b) que algo resultou de um processo
natural, que não foi produzido pelo seres humanos; (c) que algo foi feito de
maneira irrefletida e sem um objetivo proposto de maneira consciente; (d) que
algo foi feito voluntariamente; (e) que algo acontece de maneira livre,
interrompendo uma série causal mecânica; (f) que algo tem um caráter criativo,
que foge à repetição dos padrões estabelecidos.
Para
a tradição marxista, as acepções (a) e (b) são inaceitáveis. O primeiro porque
se trata apenas de uma declaração de ignorância disfarçada em latim ou grego
(como as misteriosas doenças “idiopáticas” da terminologia médica); o segundo
porque corresponde justamente àquela naturalização dos fenômenos sociais que
Marx procurou demonstrar ser um efeito ilusório e mistificador das relações
econômicas medidas pelo capital (é o caso da crença na auto-regulação
espontânea dos mercados, que pode ser explicada em belos modelos matemáticos
que teimam em desmoronar a cada vez que os agentes se assustam com os resultados
coletivos de suas escolhas).
A
acepção (c) não coloca problemas para os marxistas. A ação humana é
predominantemente irrefletida e inconsciente e, embora sua eficácia seja
limitada, o conjunto de numerosas ações irrefletidas num processo histórico de médio
e longo prazo tem um efeito transformador. Existem, portanto, processos espontâneos
que são produtos da ação irrefletida e inconsciente do conjunto dos indivíduos
de uma época, de uma classe, de um país.
As
questões que dividem os marxistas dizem respeito às acepções (d), (e) e (f). A
possibilidade de ação voluntária (isto é, subjetivamente motivada), livre
(ou seja, que desafia os condicionamentos externos) e criativa (que rompe a
estrutura existente e instaura o novo) depende das interpretação - mais ou menos determinista - dada ao materialismo histórico. De maneira que a clássica questão "qual é o poder da multidão?" é reformulada, pelos marxistas, desta forma:
Por quais mediações os constrangimentos objetivos exercidos pelas relações econômicas sobre os comportamentos individuais se traduzem em possibilidades (subjetivamente percebidas) de ação transformadora?
Ou,
de maneira mais dramática:
Como
uma massa de indivíduos entorpecidos pela pesada rotina de trabalho compulsório
(sobre a qual eles não têm nenhum controle), oprimidos pela pobreza, adestrados
na obediência a patrões e feitores, temerosos da degradação de sua situação já
precária e destituídos de recursos educacionais e culturais para construir
alternativas, como essa massa de desvalidos poderia transformar-se numa força
história de ruptura e mudança revolucionária?
Desde Marx, discute-se o peso relativo a ser dado aos processos
espontâneos, à ação voluntária e à tomada de consciência coletiva. Também se discute se essa
tomada de consciência ocorrerá espontaneamente ou por um trabalho educativo vindo de “fora” e quais são os obstáculos objetivos (condições
econômicas e políticas) e subjetivos (mistificações ideológicas) que podem
impedir a ação ou limitar sua eficácia.
A
coletânea seguinte retraça um pouco da história dessa discussão, tal como a
temos seguido no nosso folhetim político-filosófico.
Marx
& Engels
“Nessa
fase, o proletariado constitui massa disseminada por todo o país e dispersa
pela concorrência. A coesão maciça dos operários não é ainda o resultado de sua
própria união, mas da união da burguesia que, para atingir seus próprios fins
políticos, é levada a por em movimento todo o proletariado, o que por enquanto
ainda pode fazer. (...)
Mas
com o desenvolvimento da indústria, o proletariado não apenas se multiplica;
comprime-se em massas cada vez maiores, sua força cresce e ele adquire maior
consciência dela. Os interesses, as condições de existência dos proletários se
igualam cada vez mais à medida que a máquina extingue toda a diferença de
trabalho e quase por toda a parte reduz o salário a um nível igualmente baixo.
Em virtude da concorrência crescente dos burgueses entre si e devido às crises
comerciais que disso resultam, os salários se tornam cada vez mais
instáveis; o aperfeiçoamento constante e cada vez mais rápido das máquinas
torna a condição de vida do operário cada vez mais precária; os choques
individuais entre o operário singular e o burguês singular tornam cada vez mais
o caráter de confronto entre duas classes. Os operários começam a formar
coalizões contra os burgueses e atuam em comum na defesa de seus salários;
chegam a fundar associações permanentes a fim de se precaverem de insurreições
eventuais. Aqui e ali a luta irrompe em motim.
De
tempos em tempos os operários triunfam, mas é um triunfo efêmero. O verdadeiro
resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla
dos trabalhadores. Esta união é facilitada pelo crescimento dos meios de
comunicação criados pela grande indústria e que permitem o contato entre os
operários de diferentes localidades. Basta, porém, este contato para concentrar
as numerosas lutas locais, que têm o mesmo caráter em toda parte, em uma luta
nacional, uma luta de classes. (...)
A
organização do proletariado em classe e, portanto, em partido político, é
incessantemente destruída pela concorrência que fazem entre si os próprios
operários. Mas renasce sempre, e cada vez mais forte, mas sólida, mais
poderosa. Aproveita-se das divisões internas da burguesia para obrigá-la ao
reconhecimento legal de certos interesses da classe operária, como por exemplo,
a lei da jornada de dez horas de trabalho na Inglaterra. (...)
Finalmente,
nos períodos em que a luta de classes se aproxima da hora decisiva, o processo
de dissolução da classe dominante, de toda a velha sociedade, adquire um
caráter tão violento e agudo, que uma pequena fração da classe dominante se
desliga desta, ligando-se à classe revolucionária, à classe que traz nas mãos o
futuro. Do mesmo modo que outrora uma parte da nobreza passou para a burguesia,
em nossos dias uma parte da burguesia passa para o proletariado, especialmente
a parte dos ideólogos burgueses que chegaram à compreensão teórica do movimento
histórico em seu conjunto”.
(Karl
Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, Boitempo, São
Paulo, 1998, pp. 47-49)
Karl
Kautsky
“Como
doutrina, é evidente que o socialismo tem as suas raízes nas relações
econômicas atuais, exatamente do mesmo modo que a luta de classes do
proletariado e, tal como esta o socialismo deriva da luta contra a pobreza e a
miséria das massas, pobreza e miséria geradas pelo capitalismo. Mas o
socialismo e a luta de classes surgem um ao lado do outro e não derivam um do
outro; surgem de premissas diferentes. A consciência socialista moderna não
pode surgir senão na base de profundos conhecimentos científicos. Com efeito, a
ciência econômica contemporânea é tanto uma condição da produção socialista
como, por exemplo, a técnica moderna, e o proletariado, por mais que o deseje,
não pode criar nem uma nem outra, ambas surgem do processo social
contemporâneo. Mas o portador da ciência não é o proletariado, mas a
intelectualidade burguesa. (...) Desse modo, a consciência socialista é algo
introduzido de fora na luta de classes do proletariado e não algo que surge
espontaneamente no seu seio”.
(Kautsky, Neue
Zeit, 1901-1902, XX, I, nº 3, p,79 apud Lenin, “Que
Fazer?” in Obras Escolhidas, tomo I, Edições Avante,
Lisboa-Moscovo, 1978, p. 107)
Lenin
“Os
motins primitivos refletiam já um certo despertar da consciência. Os operários
perdiam a fé tradicional na inamovibilidade do regime que os oprimia;
começavam... não direi a compreender, mas a sentir a necessidade de uma
resistência coletiva e rompiam resolutamente com a submissão servil às
autoridades. Mas isto contudo era mais uma manifestação de desespero e de vingança
do que uma luta. As greves dos anos 90 oferecem-nos muito mais clarões de
consciência: formulam-se reivindicações precisas, calcula-se antecipadamente o
momento mais favorável, discutem-se os casos e exemplos de outras localidades,
etc. Se os motins eram simplesmente a revolta de oprimidos, as greves
sistemáticas representavam já embriões – mas nada mais do que embriões – da
luta de classes. Em si mesmas, estas greves eram luta trade-unionista, não eram
ainda luta socialdemocrata; assinalavam o despertar do antagonismo entre os
operários e os patrões, mas os operários não tinham, nem podiam ter, a
consciência da oposição irreconciliável entre os seus interesses e todo o
regime político e social existente, isto é, não tinham consciência socialdemocrata.
Nesse sentido, as greves dos anos 90, apesar do imenso progresso que
representavam em relação aos ‘motins’, continuavam a ser um movimento
nitidamente espontâneo.
Dissemos
que os operários nem sequer podiam ter consciência socialdemocrata. Esta só
podia ser introduzida de fora. A história de todos os países testemunha que a
classe operária, exclusivamente com suas próprias forças, só é capaz de
desenvolver uma consciência trade-unionista, quer dizer a convicção de que é
necessário agrupar-se em sindicatos, lutar contra os patrões, exigir do governo
estas ou aquelas leis necessárias aos operários etc. Por seu lado, a doutrina
do socialismo nasceu de teorias filosóficas, históricas e econômicas elaboradas
por representantes instruídos das classes possidentes, por intelectuais. Os
próprios fundadores do socialismo científico moderno, Marx e Engels, pertenciam
pela sua situação social, à intelectualidade burguesa.”
“Mas,
por que razão – pergunta o leitor – o movimento espontâneo, o movimento pela
linha da menor resistência, conduz precisamente à supremacia da ideologia
burguesa? Pela simples razão de que a ideologia burguesa é muito mais antiga
pela sua origem do que a ideologia socialista, de que está mais completamente
elaborada e possui meios de difusão incomparavelmente mais
numerosos.
“A
classe operária tende espontaneamente para o socialismo, mas a ideologia
burguesa, a mais difundida (e constantemente ressuscitada sob as formas mais
diversas), é contudo aquela que mais se impõe espontaneamente aos operários.”
“Só
a mais grosseira incompreensão do marxismo pode levar à opinião de que o
aparecimento espontâneo de massas nos exime da obrigação de criar uma
organização de revolucionários tão boa como ados partidários de ‘Terra e
Liberdade’, ou até incomparavelmente melhor. Esse movimento, pelo contrário,
impõe-nos precisamente esta obrigação porque a luta espontânea do proletariado
não se transformará na sua verdadeira ‘luta de classes’ enquanto não for
dirigida por uma forte organização de revolucionários.”
(Lenin,
“Que Fazer?” in Obras Escolhidas, tomo I, Edições
Avante, Lisboa-Moscovo, 1978, pp 100; 109; 109 nota; 174)
Rosa
Luxemburg
“Destinada
a representar, nos limites de um dado Estado, a totalidade dos interesses do
proletariado como classe, em oposição a todos os interesses parciais e de grupo
do proletariado, a social-democracia esforça-se naturalmente, em toda parte,
por unir todos os grupos nacionais, religiosos e profissionais da classe
operária num único partido comum, unificado. (...)
Do
ponto de vista das tarefas formais da social-democracia como partido de luta, o
centralismo organizativo aparece desde o início como uma condição de cuja
realização dependem, numa relação direta, a capacidade de luta e a energia do
partido. Entretanto, as condições históricas específicas da luta proletária são
aqui muito mais importantes que o ponto de vista das exigências formais de
qualquer organização de luta.
Na
história da luta de classes, o movimento social-democrata foi o primeiro que
sempre contou, em todos os seus momentos e em todo o seu percurso, com a
organização e a ação autônoma e direta da massa.
Assim
sendo, a social-democracia cria um tipo de organização totalmente diferente dos
anteriores movimentos socialistas, como os de tipo jacobino-blanquista.
Lenin
parece subestimar isso quando, no seu livro, exprime a opinião de que o
revolucionário social-democrata nada mais é que 'um jacobino indissoluvelmente
ligado à organização do proletariado com consciência de classe'. Para Lenin,
toda a diferença entre a social-democracia e o blanquismo consiste na
organização e na consciência de classe do proletariado, em lugar da conspiração
de uma pequena minoria. Esquece-se que com isso produz-se uma completa
reavaliação do conceito de organização, um conteúdo inteiramente novo para o
conceito de centralismo, uma concepção inteiramente nova da relação recíproca entre
a organização e a luta.
O
blanquismo não levava em consideração a ação imediata da massa operária e,
portanto, também não precisava de uma organização de massa. Ao contrário, como
a grande massa popular só devia aparecer no campo de batalha no momento da
revolução, e a ação temporária consistia na preparação de um golpe
revolucionário, dado por uma pequena minoria, o sucesso da tarefa exigia
diretamente a clara demarcação entre as pessoas encarregadas dessa ação
determinada e a massa popular. Mas isso igualmente possível e realizável porque
não existia nenhuma ligação interna entre a atividade conspirativa de uma
organização blanquista e a vida cotidiana da massa popular.
Ao
mesmo tempo, a tática, bem como as tarefas detalhadas da ação, já que sem ligação
com o solo da luta de classes elementar, eram livremente improvisadas,
elaboradas em detalhe, fixadas e prescritas de antemão, como um plano
determinado. Assim, os membros ativos da organização transformavam-se
naturalmente em simples órgãos executivos de uma vontade predeterminada fora de
seu próprio campo de ação, em instrumentos de um comitê central. Com isso
estava dado também o segundo momento do centralismo conspirador: a submissão
absoluta e cega das células do partido às autoridades centrais e a extensão do
poder decisivo destas últimas até a mais extrema periferia da organização
partidária.
Radicalmente
diversas são as condições da ação social-democrata. Esta nasce historicamente
da luta de classes elementar. E move-se na contradição dialética de que só na
própria luta é recrutado o exército do proletariado e de que também, só na
luta, as tarefas da luta se tornam claras. Organização, esclarecimento e luta
não são aqui momentos separados, mecânica e temporalmente distintos, como num
movimento blanquista, mas são apenas diferentes aspectos do mesmo processo. Por
um lado, exceto quanto aos princípios gerais da luta, não existe um conjunto
detalhado de táticas, já pronto, preestabelecido, que um comitê central possa
ensinar aos membros da social-democracia, como se estes fossem recrutas. Por
outro lado, o processo de luta que cria a organização conduz a uma constante
flutuação da esfera de influência da social-democracia.
Disso
resulta que a centralização social-democrata não pode fundar-se na obediência
cega, na subordinação mecânica dos militantes a um poder central. E, por outro
lado, nunca se pode erguer uma parede divisória absoluta entre o núcleo do
proletariado com consciência de classe, solidamente organizado no partido, e as
camadas circundantes, já atingidas pela luta de classes, que se encontram em
processo de esclarecimento de classe. O estabelecimento da centralização na
social-democracia sobre estes dois princípios [subordinação cega e separação do
núcleo organizativo do partido] parece-nos uma transposição mecânica dos
princípios organizativos do movimento blanquista de círculos de conspiradores
para o movimento social-democrata das massas operárias. (...) [O centralismo
social-democrata] é por assim dizer , um ‘autocentralismo’ da camada dirigente
do proletariado, é o domínio da maioria no interior da sua própria organização.
Essa
análise do conteúdo próprio da social-democracia mostra claramente que não
podem ainda hoje existir plenamente na Rússia as condições necessárias para
ele. Essas condições são: a existência de uma importante camada de proletários
já educados na luta política e a possibilidade de exprimirem sua capacidade de
ação por meio da influência direta exercida sobre os congressos públicos do
partido, a imprensa partidária etc".
"O
ultracentralismo de Lenin só teria um objetivo politico se usasse o seu poder
para criar uma tática comum de luta para desencadear uma grande ação política
na Rússia. O que vemos, porém, nas transformações do movimento russo até
hoje? As mais importantes e fecundas mudanças táticas dos últimos dez anos não
foram 'inventadas' por determinados dirigentes do movimento e, muito menos, por
organizações dirigentes, mas foram sempre o produto espontâneo do próprio
movimento desencadeado. Assim ocorreu na Rússia, na primeira etapa do movimento
proletário propriamente dito, iniciada no ano de 1896 com a explosão elementar
da gigantesca greve de São Petersburgo, que inaugurou a ação econômica de
massas do proletariado russo. Do mesmo modo foi aberta a segunda fase,
totalmente espontânea, a das manifestações políticas de rua, pela agitação dos
estudantes de São Petersburgo em março de 1901. A significativa mudança de
tática que veio a seguir, abrindo novos horizontes, foi a greve de massa
em Rostov sobre o Don, que rebentou 'por si mesma', com suas improvisadas
agitações de rua ad hoc, comícios populares ao ar livre, discursos públicos
que, poucos anos antes, o mais audacioso e temerário social-democrata, vendo
nisso uma quimera, não teria ousado imaginar. Em todos esses casos, no começo
era 'a ação'. A iniciativa e a direção consciente das organizações
social-democratas representaram aí um papel extremamente insignificante".
(Rosa Luxemburg, “Questões de
organização da social-democracia russa” in Textos Escolhidos volume
1, Editora da Unesp, São Paulo, 2011 pp. 155-8;160-1)
Trotsky
"Tugan-Baranovsky
tem razão quando afirma que a Revolução de Fevereiro foi obra dos operários e
camponeses, estes últimos representados pelos soldados. Subsiste, entretanto,
uma séria controvérsia: Quem dirigiu a insurreição? Após a vitória, essas
questões tornaram-se o pomo da discórdia entre os partidos. A solução mais
simples consistia na fórmula universal: ninguém conduziu a Revolução – ela se
fez por si mesma. A teoria das “forças espontâneas”, mais do que qualquer
outra, é conveniente não apenas a esses senhores que, ainda na véspera,
tranquilamente administravam, julgavam, acusavam, defendiam, negociavam, ou
comandavam e que agora se apressavam em fazer causa comum com a Revolução;
porém ela conviria também a numerosos políticos profissionais e
ex-revolucionários que, adormecidos durante a Revolução, queriam acreditar
terem-se conduzido tal como todos os demais. (...)
O
liberalismo adotou inteiramente a teoria do caráter espontâneo e impessoal da
insurreição. Foi com simpatia que Miliukov solicitou a opinião do professor
semi-liberal, semi-socialista Stankevich, conferencista que desempenhara
durante algum tempo o papel de comissário do Governo no quartel-general. “As massas
puseram-se por si mesmas em movimento, obedecendo a um apelo íntimo,
inconsciente” – escreve Stankevich, a respeito das jornadas de fevereiro. Com
que palavras de ordem marcharam os soldados? Quem os conduziu quando
conquistaram Petrogrado, quando incendiaram o Palácio da Justiça? Não foi uma
ideia política, nem uma palavra de ordem revolucionária, nem uma conspiração,
nem um motim, porém um movimento de forças elementares, o qual reduziu
bruscamente a cinzas o antigo regime, sem nada deixar dele. A força espontânea
adquire aqui um caráter quase místico. (...)
Mas
o que aconteceu com os bolcheviques? Já o sabemos, em parte. Os principais
líderes das organizações clandestinas bolcheviques em Petrogrado eram três: os
antigos operários Shliapnikov e Zalutsky e o antigo estudante Molotov.
Shliapnikov, que durante muitos anos vivera no estrangeiro e que mantinha
relações estreitas com Lenin, era, do ponto de vista político, o mais
amadurecido e o mais ativo dos três mil militantes que constituíam o Birô do
Comitê-Central. As próprias memórias de Shliapnikov demonstram, entretanto,
melhor do que qualquer outro documento, que o trio não estava à altura dos
acontecimentos. Até a última hora os líderes pensavam que se tratava apenas de
uma demonstração revolucionária – mais uma entre tantas outras – porém de modo
algum uma insurreição armada. Kayurov, que já citamos, um dos líderes do bairro
de Vyborg, afirma categoricamente o seguinte: “Não recebemos instrução alguma
dos órgãos centrais do Partido... O Comitê de Petrogrado estava preso e o
representante do Comitê-Central, o camarada Shliapnikov, não se encontrava em
condições de dar instruções para o dia seguinte”. (...)
Uma
vez que o Partido Bolchevique não podia garantir aos insurretos uma liderança
autorizada, que dizer das outras organizações políticas? Assim fortificava-se a
convicção geral de um movimento de forças espontâneas na Revolução de
Fevereiro. Contudo, esta opinião era muitíssimo errônea ou, pelo menos, sem
conteúdo. (...)
Registrando
os acontecimentos dos últimos dias de fevereiro, o Serviço Secreto declarava
também que o movimento era “espontâneo”, isto é, não fora metodicamente
dirigido de cima: acrescentava, entretanto: “O proletariado foi por inteiro
trabalhado pela propaganda”. Essa afirmativa tocava no ponto justo: os
profissionais da luta contra a Revolução, antes de substituir nos cárceres os
revolucionários libertados, discerniam melhor do que os líderes do liberalismo
o processo daquele momento. (...)
Em
cada fábrica, em cada corporação, em cada companhia militar, em cada taverna,
em cada hospital do Exército, em cada acantonamento e, até mesmo, nos campos
despovoados progredia um trabalho molecular da ideia revolucionária. Por toda
parte havia comentários dos acontecimentos, principalmente operários com os
quais se obtinham informações e dos quais se esperava a palavra necessária.
Esses chefes de grupos estavam muitas vezes entregues a si mesmos, ingeriam os
fragmentos de generalizações revolucionárias que chegavam até eles por diversos
caminhos descobrindo por si mesmos, nos jornais liberais, o que lhes era
necessário, lendo nas entrelinhas. Seu instinto de classe era aguçado pelo
critério político, e, mesmo que não levassem todas as suas ideias até o fim, o
seu pensamento nem por isso trabalhava menos, sem um instante de trégua,
obstinadamente, e sempre na mesma direção. Esses elementos de experiência, de
crítica, de iniciativa e de abnegação penetravam nas massas e constituiam o
mecanismo íntimo despercebido a um olhar superficial porém decisivo no que se
tratava do movimento revolucionário, como processo consciente. Aos políticos,
fanfarrões do liberalismo e do socialismo domesticado, tudo o que se produz no
meio das massas parece geralmente um processo instintivo, como se se passasse
num formigueiro ou numa colmeia. (...) O pensamento operário era mais
científico: não somente por ter sido fecundado, em grande parte, pelos métodos
marxistas como, principalmente, porque se tinha nutrido da experiência viva das
massas que entrariam bem cedo na arena revolucionária. O caráter científico do
pensamento se manifesta em sua correspondência com o processo objetivo e na sua
capacidade para entusiasmar esse processo e dirigi-lo. Esta
faculdade, mesmo em pequenas proporções, a possuiriam as esferas governamentais
que se inspiravam no Apocalipse ou que acreditavam nos sonhos de Rasputin?
Acaso teriam base científica as ideias do liberalismo que esperava que uma
Rússia atrasada, participando da contenda dos gigantes do capitalismo, pudesse
ao mesmo tempo vencer e obter um regime parlamentar? (...) Na verdade, vivia-se
no reino de um poderoso torpor espiritual, no país dos fantasmas, das
superstições, das ficções, ou antes, se quisermos, no reino das “forças
espontâneas”. Não temos, pois o direito de dizer: enquanto a sociedade oficial,
essa superestrutura de numerosos andares que constituiam as classes dirigentes,
seus grupos, seus partidos e seus clãs, vivia dia por dia na sua inércia e no
seu automatismo, nutrindo-se das reminiscências de ideias caducas, surdas às
inexoráveis exigências do progresso, seduzidas pelos fantasmas, sem prever
coisa alguma, operava-se, nas massas proletárias, um processo espontâneo e
profundo, não somente de ódio crescente contra os dirigentes e de um juízo
crítico sobre a sua incapacidade, como também de acumulação de experiências e
de consciência criadora, processo que se confirmou na insurreição e no triunfo
da revolução.
À
questão acima apresentada: Quem dirigiu a Revolução de Fevereiro? Podemos, por
conseguinte, responder com a clareza desejável: os operários conscientes e bem
temperados e sobretudo os que se formaram na escola do partido de Lenin.
Devemos acrescentar porém que esta liderança suficiente para assegurar a
vitória da insurreição não estava em condições, logo no início, de colocar a
direção do movimento revolucionário entre as mãos da vanguarda proletária”.
(Trotsky, História
da Revolução Russa volume I, Paz e Terra, Rio de Janeiro,
1977, pp. 134-142)
György
Lukács
“Estudo
concreto significa então: relação com a sociedade como totalidade. Pois somente
nessa relação é que a consciência que os homens podem ter a cada momento de sua
existência aparece em suas determinações essenciais. Ela aparece, de um lado,
como alguma coisa que, subjetivamente, justifica-se, compreende-se e deve compreender-se à luz da situação social e histórica, portanto como algo “justo” e,
ao mesmo tempo, ela aparece como algo que, objetivamente, é transitória em
relação à essência do desenvolvimento social, que não se conhece e não se
exprime adequadamente, portanto, como “falsa consciência”. Por outro lado, essa
mesma consciência aparece sob essa mesma relação como errando subjetivamente as
metas que ela se atribuiu e, ao mesmo tempo, atingindo metas que não
foram desejadas. Essa determinação, duplamente dialética, da “falsa
consciência” permite de não mais tratá-la como se se limitasse a descrever o
que os homens pensaram, sentiram e quiseram efetivamente sob condições
históricas determinadas, em situações de classe determinadas, etc. Elas não são
senão os materiais, muito importantes na verdade, dos estudos históricos
propriamente ditos. Estabelecendo a relação com a totalidade concreta, donde
saem as determinações dialéticas, ultrapassamos a simples descrição e chegamos
à categoria de possibilidade objetiva. Relacionando a consciência à totalidade
da sociedade, descobrem-se pensamentos e sentimentos que os homens teriam tido,
em uma situação vital determinada, se eles tivessem sido capazes de apreender
perfeitamente essa situação e os interesses de dela decorriam tanto em relação
à situação imediata quanto em relação à estrutura, conforme os interesses de
toda a sociedade; descobrem-se então os pensamentos que são conformes à sua
situação objetiva. (...) Ora, a reação racional adequada que deve, de certa
maneira, ser atribuída a uma situação típica determinada no processo de
produção é a consciência de classe. Portanto, a consciência de classe não é a
soma nem a média daquilo que os indivíduos que formam a classe, tomados um a
um, pensam e sentem. E, contudo, a ação historicamente decisiva da classe como
totalidade é determinada, em última análise, por esta consciência e não pelo
pensamentos do indivíduo, esta ação só pode ser conhecida a partir dessa
consciência.
(...)
Somente
tais constatações tornam possível a utilização metódica da categoria de
possibilidade objetiva.
(...)
A
vocação de uma classe à dominação significa que é possível, a partir de seus
interesses de classe, a partir de sua consciência de classe, organizar o
conjunto da sociedade de acordo com seus interesses. E a questão que decide, em
última análise, toda luta de classes é esta: qual é a classe que dispõe, em
determinado momento, desta capacidade e desta consciência de classe? Isso não
elimina o papel da violência na história, nem garante uma vitória automática
dos interesses de classes chamados à dominação e que, então, são portadores dos
interesses do desenvolvimento social. Muito pelo contrário: primeiramente, as
próprias condições para que os interesses de classe possam se afirmar são
frequentemente criadas pela violência mais brutal (por exemplo, a
acumulação primitiva do capital); em segundo lugar, é justamente a questão da
violência, nas situações em que as classes se confrontam na luta pela
existência, que os problemas da consciência de classe constituem os momentos
mais decisivos. (...)
Então,
o que importa é a questão seguinte: até que ponto a classe em questão realiza
de maneira “consciente”, ou de maneira “inconsciente”, ou com uma consciência
“correta” ou com uma consciência “falsa” as tarefas que lhe foram impostas pela
história. (...) O destino de uma classe depende de sua capacidade, em todas as
questões práticas, de ver claramente e de resolver os problemas que lhe impõem
a evolução histórica".
(György
Lukács, Histoire et Conscience de Classe, Les Éditions
de Minuit, Paris, 1976 pp. 72-3;74; 75-6)