Cenas da Revolução de 17
Cena II
A dualidade de poderes
(O Soviete de Petrogrado e o Governo Provisório)
“Formado no mesmo dia – 28 de
fevereiro [1917] – o Soviete de Petrogrado se reuniu sob a liderança dos
mencheviques, apoiados pelo Grupo Central de Trabalhadores (...) O Soviete
constituía-se de ‘deputados’ escolhidos aleatoriamente nas fábricas e nos quartéis,
segundo procedimentos eleitorais que refletiam o consenso, mais do que uma
relação matemática de votos. Pequenas lojas enviavam tantos representantes
quanto as grandes fábricas, e as unidades das guarnições agiam de forma
similar. A prática já tinha alguma tradição na Rússia, mas o sistema era tão
confuso que nos quinze primeiros dias já haviam sido indicados três mil membros
dos Soviete, sendo dois mil soldados – e isso numa cidade em que os
trabalhadores industriais superavam os militares numa proporção de dois ou três
para um. Esses dados demonstram como a Revolução de Fevereiro, na sua fase
inicial, não passou de um motim de soldados.
As sessões plenárias do Soviete
pareciam uma gigantesca assembleia de aldeia. Não havia agenda nem coleta de
votos. Todos tinham o direito de usar a palavra e chegava-se às conclusões por
aclamação. Fosse por causa dos discursos intermináveis de que era palco, ou
devido à convicção dos intelectuais que, consciente ou inconscientemente,
‘conheciam melhor o que era bom para as massas’, o Soviete transferiu o
processo de tomada de decisões para seu comitê executivo – Ispolkóm. De acordo
com a norma estabelecida em 1905, os integrantes desse organismo não foram
eleitos em assembleias, mas nomeados pelos partidos socialistas – três cadeiras
para cada agremiação-, sobrepondo-se ao Soviete e agindo em seu nome.
Pouco notado na época, o fato acarretou
três graves consequências. Fez crescer artificialmente a representatividade do
Partido Bolchevique, que tinha poucos adeptos entre os trabalhadores e nenhum
entre os soldados. Congelou o peso dos socialistas moderados, muito populares
naquela época, mas que logo perderiam influência sobre a população. E
burocratizou as decisões, que passaram a ser tomadas por meio de conchavos entre
os intelectuais e os socialistas.
Refletindo o domínio inicial dos
mencheviques, o Soviete adotou a doutrina da revolução “burguesa”, etapa que a
Rússia estaria atravessando, e durante a qual seria preciso organizar as
massas, preparando-as para a próxima fase socialista, permanecendo fora do
governo. Sob tais argumentos, o Soviete recusou-se a enviar delegados ao Comitê
da Duma, considerando que só lhe cabia garantir que a “burguesia” não traísse a
revolução. Em consequência, a Rússia viu-se diante de um sistema peculiar de
governo, ou ‘poder dual’ – dvovievlástie – que perdurou até outubro. Na teoria,
o Comitê Provisório da Duma – logo batizado Governo Provisório – assumiu total
responsabilidade pelos destinos da nação, enquanto o Ispolkóm funcionava como
uma espécie de suprema corte da consciência revolucionária. Na realidade, e
desde o início, o Ispolkóm assumiu funções legislativas e executivas. Esse
esquema não era realista por dois motivos: em primeiro lugar porque dava
responsabilidade a uma instituição e poder à outra, e, em segundo lugar, porque
os partidos envolvidos tinham objetivos radicalmente diferentes. A Duma
pretendia conter a Revolução e seus membros teriam ficado satisfeitos em
represar o fluxo dos acontecimentos, na noite de 27 de fevereiro; o Ispolkóm
queria aprofundar o processo – para eles, o 27 de fevereiro fora um mero
prelúdio da ‘verdadeira’ revolução socialista.
A inexistência de autoridade pública
conduziu os líderes da Duma à conclusão inexorável de que teriam que formar um
governo, malgrado sua relutância em desafiar o soberano. A questão era como
legitimar esse governo. Alguns sugeriram que se entrasse em contato com o czar,
solicitando consentimento para formar um gabinete. A maioria, porém, preferiu
voltar-se para o Soviete – isto é, o Ispolkóm. Do ponto de vista prático, dada
a sua influência sobre os soldados e os trabalhadores, isso seria
compreensível, mas do ponto de vista da legitimidade pretendida, tinha pouco
sentido; o Comitê Soviético tinha caráter privado, e era constituído por
indivíduos indicados pelos partidos socialistas, enquanto a Duma havia sido
eleita.
Na noite de 1º para 2 de março, os
representantes da Duma, guiados por Miliukov, encontraram-se com os socialistas
para elaborar uma linha política mediante a qual o Soviete daria seu apoio ao
novo governo. Os membros do Ispolkóm não tinham nenhuma intenção de lhes dar
carta branca. O resultado foi um documento redigido por políticos exaustos,
após uma noite de debates, contendo uma plataforma de oito pontos que serviriam
de base à atividade governamental, até a convocação da Assembleia Constituinte.
Os itens principais exigiam a anistia aos prisioneiros políticos, entre os
quais terroristas; preparativos imediatos para uma Assembleia Constituinte, a
ser eleita por voto universal; dissolução de todos os órgãos de polícia;
eleições para recompor os conselhos distritais de autogestão; e permanência em
Petrogrado das unidades militares que participaram da Revolução.
As cláusulas mais nefastas eram as que
estipulavam a imediata dissolução da polícia e eleições para os conselhos
distritais e municipais. Tais medidas significavam a dissolução da burocracia
provincial e a anarquia. De pronto, elas aboliam toda a estrutura
administrativa e de segurança que mantivera intacto o Estado russo. Apenas
levemente menos prejudiciais eram os itens concernentes à guarnição de
Petrogrado, que privavam o governo de autoridade efetiva sobre 160 mil
camponeses armados descontentes, deixados sob a influência dos seus inimigos.
De qualquer forma, foi esse acordo que
deu origem ao Governo Provisório, cujo gabinete era presidido pelo príncipe
Lvov, ativista cívico inócuo e indolente, escolhido apenas por ter encabeçados
a União dos Ziémstva, o que lhe conferia certa aura de representatividade
social. Lvov entendia que democracia significava decisões políticas tomadas por
cidadãos diretamente afetados por elas, e que o governo devia funcionar como um
cartório. Convencido da imensa sabedoria do povo russo, ele se recusou a
sugerir o que quer que fosse às delegações provinciais que foram a Petrogrado
em busca de instruções. O secretário de gabinete, Vladimir Nabokov (pai do
romancista), escreveu: ‘Não recordo uma ocasião sequer em que Lvov usou um tom
de autoridade ou expressou decisão (...) ele personificava a passividade'.
Proeminentes membros do novo governo, e
rivais mordazes, Miliukov e Kerenki foram designados, respectivamente, ministro
das Relações Exteriores e ministro da Justiça.
Aos 58 anos, Miliukov possuía uma
energia ia ilimitada. Historiador profissional, conciliava o trabalho erudito
com a edição do jornal diário e a liderança do Partido
Constitucional-Democrático [conhecido como Kadet , partido que representava o
liberalismo russo]. O que lhe faltava era intuição política: alcançada uma
determinada posição por dedução puramente lógica, ele se agarraria a ela, mesmo
ao ficar evidente sua ineficácia. Mas, sendo o personagem político mais
conhecido em todo o país, ele tinha razão de sentir-se como primeiro-ministro
da Rússia democrática.
Kerénski era o seu oposto. Nos
tribunais, defendendo prisioneiros políticos, e na Duma, adquirira fama de
orador radical. Conferencista brilhante, embora destituído de filosofia, com
apenas 36 anos, ele ardia de ambição política. Ciente de sua semelhança física
com o imperador francês, fazia poses napoleônicas. Vaidoso e impulsivo,
enquanto Miliukov era frio e calculista, ele ascendeu e apagou-se
meteoricamente.
(Richard Pipes, História
Concisa da Revolução Russa, Bestbolso, Rio de Janeiro, 2015,
pp.97-100)
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