Cenas da Revolução de 17
cena VI
As Jornadas de Julho
"No decorrer do debate, Martov relembrou a observação de Cavour
de que qualquer asno poderia governar por meio de estado de sítio.
É como os bolcheviques governaram depois.
Infelizmente estaria além da capacidade de Tseretli
mesmo com a ajuda do estado de sítio."
Sukhanov, The Russian Revolution 1917
“A 2 de julho, à notícia da
contra-ofensiva alemã, os soldados e os operários dos subúrbios de Petrogrado
começaram a agitar-se como em fevereiro. Depois, quando souberam que os
ministros kadets tinham-se demitido sob o pretexto de que membros do governo haviam
concluído um acordo com a Rada da Ucrânia, foram levados ao auge da indignação.
No Soviet, Zinoviev e Trotski
censuraram os responsáveis, esses ministros kadets, agentes da contra-revolução
no próprio seio do governo. Condenaram igualmente os membros do Comitê
Executivo do Congresso dos Sovietes e exigiram sua detenção por não terem
assumido o poder total, apesar de convidados a fazê-lo há várias semanas pelas
fábricas e pelos regimentos da capital.
Estes apelos a uma manifestação
repercutiam num ambiente já carregado: as ameaças dos cossacos, as advertências
da Igreja e dos antigos líderes da Duma, a campanha da extrema-direita tinham
sensibilizados os soldados para os perigos de uma reação. Os da retaguarda
estavam furiosos por ver a disciplina retomar seus direitos, a guerra
continuar, a Revolução terminar. Estavam prontos para responder à força com
violência e os próprios bolcheviques ficaram surpreendidos e também preocupados
com as reações que suas palavras de ordem tinham provocado.
Demonstrando sua cólera ao apelo do
Pravda, os manifestantes se dirigiram para a sede dos Sovietes. Reprovaram
violentamente seus líderes por não se apoderarem do poder, proferiram insultos
e ameaças. Tchernov quis responde e quase foi linchado; escapou por um triz,
graças a uma intervenção de Trotsky. Logo se produziram tumultos, chocando-se
de um lado os marinheiros de Kronstadt, os soldados amotinados, uma parte dos
manifestantes, e de outro tropas fiéis ao Soviet e ao governo. Houve cerca de
40 mortos e mais de 80 feridos. A volta à ordem deu lugar a cenas penosas,
principalmente quando, na madrugada do dia 4 de julho, o exército
dispersou os operários de Putilov, suas mulheres e seus filhos, que
tinham passado a noite em volta da sala do Congresso. Esses infelizes se haviam
juntado à manifestação porque não tinham mais o que comer há vários dias.
Sabendo que contava com a direção dos
Sovietes, o governo procedeu da maneira mais fácil: ignorou as causas profundas
do descontentamento popular e acusou os bolcheviques que, por fim, se tinham
unido ao movimento e haviam organizado manifestações em toda a Rússia. (...)
Para produzir um efeito decisivo e dar um caráter espetacular às acusações,
Perevertchev, Ministro da Justiça, tornou públicos documentos que mostram ser
Lenin um agente do Kaiser. (...) O caso teve uma repercussão considerável.
Lenin fugiu par a Finlândia, onde permaneceu oculto sob um disfarce, e essa
fuga conferiu crédito às acusações formuladas contra ele. Trostky, Zinoviev e
alguns bolcheviques foram presos”.
(Marc Ferro, A Revolução Russa de
1917, Perspectiva, São Paulo, 2007, pp. 69-70)
* * *
“Assim, ao aproximar-se o fim do quarto
mês, a Revolução de Fevereiro, politicamente falando, já se tinha esgotado. Os
conciliadores tinham perdido a confiança dos operários e dos soldados. O
conflito entre os partidos dirigentes dos sovietes e as massas soviéticas
tornara-se desde então inevitável. Após o desfile de 18 de junho, o antagonismo
entre os dirigentes e as massas devia, inelutavelmente, assumir caráter de
violência declarada.
Foi assim que sobrevieram as Jornadas
de Julho. Quinze dias após a manifestação organizada de cima para baixo, os
mesmos operários e soldados saíram para a rua, dessa vez porém graças à própria
iniciativa, e exigiram do Comitê-Executivo Central que assumisse o poder. Os
conciliadores recusaram-se categoricamente. As Jornadas de Julho provocaram
conflitos de rua, causaram vítimas e terminaram pelo esmagamento dos
bolcheviques, declarados também responsáveis pela incapacidade do regime de
fevereiro. A proposta que Tseretelli fizera, a 17 de junho, para que se
declarasse os bolcheviques fora da lei e para que fossem desarmados – proposta
repelida naquela época – foi posta integralmente em execução no começo de
julho. Os jornais bolcheviques foram interditados. Os contingentes militares
dos bolcheviques foram dispersos. Foram tomadas todas as armas aos operários.
Os líderes do Partido foram declarados mercenários do estado-maior alemão. Uns
viram-se forçados a esconder-se, enquanto que outros foram presos.
Foi, porém, precisamente em virtude da
“vitória” alcançada em julho pelos conciliadores contra os bolcheviques, que a
impotência da democracia se manifestou plenamente. Contra os operários e
soldados, os democratas foram obrigados a lançar tropas notoriamente
contra-revolucionárias, hostis não somente aos bolcheviques, como também aos
sovietes. O Comitê-Executivo não possuía mais tropas fiéis”.
(Trotsky, História da Revolução
Russa, vol. 1, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977, p. 383)
O
SOBRINHO DE ENESIDEMO
2012-2017
5 ANOS
O
adiamento
"Quando
da célebre erupção do Helgafell, um vulcão
da
ilha de Heimaey, transmitida ao vivo por uma dúzia
de
equipes de TV a tossir sem parar, eu vi, sob a chuva sulfúrea
um
homem de meia-idade, de suspensórios, que dava de ombros,
sem
importar-se muito com a ventania, o calor,
as
câmeras, as cinzas, os espectadores (inclusive eu,
acocorado
em meu tapete, diante da tela azulada),
e
investia com sua mangueira de jardim, delgada mas nítida,
contra
a lava, até que finalmente vizinhos, soldados,
colegiais
e mesmo bombeiros juntaram-se a ele, todos
apontando
mais e mais mangueira para a lava incandescente
que
avançava, erguendo um muro cada vez mais alto
de
lava fria, endurecida pela água, cinzenta, e com isso
adiaram,
não digo para sempre, não, mas ao menos
por
enquanto, o naufrágio da civilização ocidental, de sorte que
as
pessoas de Heimaey, uma ilha tão distante da Islândia,
a
menos que tenham falecido de lá para cá, continuam
até
hoje a acordar de manhã em suas casinhas de madeira
colorida
e à tarde, longe do olhar das câmeras, regam a alface
adubada
pela lava, que dá pés enormes em seus jardins,
só
temporariamente, é claro, porém sem pânico".
Hans Magnus Enzensberger, O Naufrágio do Titanic, Canto X,
Companhia
das Letras, São Paulo, 2000