Dicionário Aleatório do Sobrinho de Enesidemo
Prólogo
Decidi
começar um dicionário aleatório.
Os
verbetes serão cacos de pensamento, mal redimidos daquela matéria viscosa de
que são feitas as opiniões. Virão sem ordem alfabética e sem roteiro
prévio, mas é bem possível que venham a compor algum sistema, dado o nexo firme
que costuma atar as obsessões de cada um. Todavia, tal sistema, se o houver, não será teoria, nem corpus de verdades, tampouco explicação do mundo. Apenas dará forma e expressão às reações do sujeito empírico particular que sou.
Como
cético, não vejo como alguém poderia ir além disso, mas, como filósofo, entendo
bem a vontade de saltar do particular ao universal, daquilo que nos aparece à
coisa mesma em sua essência, fundamento e verdade. Eis por que não posso garantir que, vez ou outra, não venha a dar ouvido ao demônio da totalidade, com o qual entretenho longas conversas pontuadas de sarcasmo em meio à admiração que tenho pelos ardis dialéticos e proezas especulativas da velha aranha.
Dadas
as angústias e incertezas do tempo, a matéria política - elevada ou abjeta –
fará aparições periódicas neste meu dicionário, bem como a obsessão marxista
que se colou em mim desde meus quinze anos.
Como
espero que tenha ficado claro pela foto que abre este meu Dicionário, espero que
ninguém queira me acompanhar. O caminho é meu, vou sozinho e estou bem assim.
Mãos
à obra.
Filosofia
A filosofia é uma disposição ao mesmo tempo intelectual e vital.
Essa disposição é feita de impulsos contraditórios: abranger o
universal e dar conta do singular. Para isso, o filósofo busca uma instância anterior às clivagens e distinções
correntes entre as coisas e as palavras, entre natureza
e cultura, entre a realidade prática e o conhecimento teórico, entre o objeto e
o sujeito, entre o essência e existência, entre coisa-em-si e fenômeno, entre
necessidade e contingência etc.
Que as "coisas" se ofereçam cindidas, avulsas, fraturadas por contradições internas ou repuxadas por oposições externas, é algo que o
filósofo se recusa a aceitar sem primeiro buscar uma camada anterior (no
sentido temporal, ontológico ou epistemológico) que seja
como uma membrana muito fina que faça a ligação de tudo com tudo. Esse é o
sentido daqueles conceitos profundamente filosófico que encontramos nos
pré-socráticos: a água de Tales, o ar de Anaximandro, o ápeiron de Anaxágoras,
o lógos de Heráclito (que faz ver que a tensão do arco é também a tensão da
lira: produz o movimento da flecha e a harmonia da música), o ser de
Parmênides. Essa busca de uma camada prévia às distinções discursivas
e fenomenais alimentou séculos de investigação metafísica (a partir de Platão e
Aristóteles), mas também alimentou as críticas à metafísica, que consistem em
recusar as distinções metafísicas consagradas e buscar camadas ainda mais
profundas: a vontade de potência, o devir histórico na forma de luta de classes
ou de movimento do sujeito automático do capital, o inconsciente, a abertura do
ser, a linguagem como jogo etc.
Como filósofo, isto é, como alguém que se sente compelido a recuar
sempre o horizonte de análise, acho profundamente insatisfatório ensinar a
filosofia na forma de história das ideias (seja em seu movimento aparentemente autônomo,
seja em seu enquadramento social, econômico e político). O que se perde de vista na "história das ideias" é que a filosofia consiste no movimento vivo e contraditório que, com maior ou menor
sucesso, produziu as obras e as ideias. O que me compraz estudar num filósofo é
sempre o momento da perturbação, da instabilidade, daquele movimento caótico
que acaba se resolvendo num conceito, que depois é refeito, revisto ou
recusado. Do meu ponto de vista, querer ensinar filosofia como história das
ideias é sempre como querer ensinar o alpinismo mostrando apenas fotos de montanhas e mapas do percurso seguido até o topo. É inegável que isso é
útil e pode despertar a curiosidade e o desejo de alguns serem alpinistas, mas nada disso dá conta da experiência e do risco do alpinismo em ato: os meses
de planejamento, a obtenção de recursos, a viagem até o lugar, o frio, o
cansaço, a luta contra a debilidade do corpo, o risco de avalanche e de
hipotermia, a frustração com as tentativas fracassadas. Perde-se a percepção de
que, ao se deixarem levar pela sua inquietude, os filósofos abdicaram de certas
coisas, aventuraram-se em certos terrenos difíceis ou proibidos, perderam-se, reencontraram-se e
tentaram alcançar o topo. Como sou cético, acredito que, em última
instância, todos falharam, mas algumas dessas falhas foram gloriosas e
extremamente profícuas. Essas falhas são as obras dos grandes filósofos com sua massa contraditória de problemas não-resolvidos que continuam a nos solicitar através da espessura do tempo. Essa massa de problemas está acima e além das "ideias" atribuídas a um filósofo.
O que eu acho intolerável no ensino da filosofia como história das
ideias é que a filosofia seja apresentada pelos seus resultados (que podem ser
refutados ou simplesmente relativizados de acordo com o tempo e o lugar em que
foram elaborados) e não pelo seu movimento (que é um impulso vital e
intelectual que dispensa justificativas). Os pensadores que tentaram descrever
e apreender esse movimento, como é o caso de Hegel, de Husserl e Wittgenstein, lançaram-se a uma empreitada extremamente difícil para eles e para nós, seus
leitores.
Dito isso, fique claro que não estou recusando que a
filosofia, mesmo na forma de história das ideias, deva ser ensinada para os
estudantes do Ensino Médio. Acho bem vindo qualquer esforço de aproximar os
jovens da filosofia e acredito que esse ensino pode estimulá-los a sair do
conforto da mediocridade midiática em que muitos deles foram educados desde o
berço. Além disso, é preciso acreditar na capacidade de aprendizado dos alunos e buscar os
instrumentos que possam auxiliá-los. Todavia, há um quarto de século eu decidi
que eu faria isso como professor de literatura e eu manteria a
filosofia como o território selvagem que é preciso percorrer off-road.
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