terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Até agora











Passado o choque da derrota, e já habituados aos personagens, podemos agora começar a avaliar o novo governo. Os seus defensores garantem que ele “tem tudo para dar certo” e sempre destacam a sua maciça base de apoio, os quase 58 milhões de votos recebidos. Os ministros e o próprio presidente costumam falar das medidas “robustas” que serão adotadas para isso ou aquilo. No entanto, as propostas mal foram ventiladas durante a campanha e a equipe ministerial mostra pouca coesão. As falas do chefe de Estado embora pareçam duras, firmes e peremptórios, são inseguras, incertas e oscilantes. Sempre na defensiva e um tanto frágil, o homem parece mais enérgico em apontar inimigos do que em indicar soluções. Os seus apoiadores dizem que isso ainda é efeito do atentado sofrido em Juiz de Fora. Verdade ou não, o espetáculo do vai-e-vem das decisões, as falas bisonhas deste ou daquele ministro e a inexperiência ou inadequação do elenco têm suscitado comentários jocosos e talvez já decepcione alguns de seus eleitores.

É que, por parte dos bolsonaristas, as expectativas eram muito altas. No dia da vitória, um motoboy que entrega pizzas festejava na minha rua. Ele se definiu como “um microempresário do setor de distribuição de alimentos” e sabia que agora o Brasil iria sair da crise em que a corrupção do PT mergulhou o país. Naquela mesma semana, um eleitor reagiu ao comentário crítico de um jornalista da Folha de São Paulo, dizendo: “Bolsonaro não foi eleito para fazer reformas, mas para o restabelecimento de princípios e valores morais”.

É compreensível que exista uma grande dose de auto-engano e de ilusão em épocas de eleição, mas é preciso levar em conta de que tipo de ilusão se trata. Os anos de conflito político e polarização que acompanharam as investigações da Operação Lava-Jato alimentaram um diagnóstico sobre a crise brasileira que ganhou ares de lugar-comum na imprensa, nas redes sociais e na conversa de esquina. De acordo com esse diagnóstico, estaríamos vivendo uma crise de gravidade sem precedentes no plano político e econômico, que levou o Brasil a um retrocesso em todos os setores. Uma crise tão profunda que levará uns vinte anos para superada (por que vinte anos? ninguém sabe). Tal crise teria sido causada pelo alto custo de um Estado inchado, corrupto e ineficiente, pois dominado pelo patrimonialismo da elite política, pelos males do presidencialismo de coalizão, com seu toma-lá-dá-cá promíscuo, e, enfim, pelo aparelhamento ideológico do Estado por esquerdistas, comunistas, terroristas ou bandidos ligados a Lula e ao PT.

Para sair da crise seria preciso encontrar uma alternativa consistente à direita. Essa demanda começou a se manifestar nas passeatas de Junho de 2013, nos panelaços de 2014, nos protestos de 2015 e 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff. Alguns intelectuais e jornalistas diziam representar uma Nova Direita, capaz de sanar os problemas do país pelo combater à corrupção, ao patrimonialismo e à hegemonia da esquerda. Enquanto o grosso da imprensa se limitava a fazer campanha pelas "reformas necessárias" no plano previdenciário e fiscal, a Nova Direita tinha em vista sua própria revolução: combate sem trégua à corrupção do Estado (como se a corrupção fosse vício exclusivo do Estado, repelido com horror pelo empresariado), desmantelamento do patrimonialismo pelo enxugamento da máquina administrativa, desregulamentação dos mercados, defesa da meritocracia e das soluções tecnocráticas de gerenciamento estatal. A Nova Direita, já se imaginando no poder, propunha até mesmo a criminalização das esquerdas. 

Embora bastante estridente na imprensa e na internet, essa Nova Direita era minoritária e quase não existia fora do Instituto Mises. Nas passeatas e protestos, o que se via mesmo era a velha direita: alguns integralistas, muitos saudosistas da ditadura militar e as legiões do Arcanjo Miguel, dispostas a lutar contra o aborto, o feminismo, o gayzismo e a imoralidade que aí está... A romagem dos agravados engordou com a chegada de setores da classe média irritados com os direitos recém-adquiridos pelas empregadas domésticas e com a invasão dos aeroportos e das universidades por "gente mais escurinha". Havia ainda uma massa de trabalhadores precarizados, representados pela numerosa classe dos motoristas de Uber, que se viam como "empresários" prejudicados de alguma forma pelas grandes somas desviadas pelos corruptos ligados ao governo. Por último, havia também a massa de jovens revoltados contra o establishment. Como o poder estava nas mãos de um partido de esquerda, era compreensível que esses jovens acabassem se alinhando à direita. Os mais extremados dentre eles marcavam sua insubordinação dando ouvidos à pregação de Olavo de Carvalho, um velho astrólogo esquistão, radicado nos Estados Unidos, que repete com veemência as teorias conspiratórias que circulam nos meios da alt right norte-americana, acrescidas de alguns disparates de cunho próprio. 

A vitória eleitoral só foi possível pela aliança entre a Nova Direita e as velhas direitas. Sua estratégia  de campanha consistia em obter apoio da massa de insatisfeitos fazendo acusações vagas e genéricas à classe política e exigindo punições duras e exemplares especialmente contra Lula e o PT. Uma vez castigados os culpados, o país entraria no rumo certo desde que o novo governo tivesse um sólido compromisso com a competência e a moralidade. A competência seria fornecida por um austero gerenciamento técnico da economia, atento às demandas do mercado. A moralidade viria tanto dos grupos religiosos conservadores quanto das Forças Armadas, apresentadas como reserva moral da nação e mantenedores da ordem e da soberania nacionais. Por razões que ainda devem ser estudadas pela ciência política ou pela patologia forense, a aliança entre Nova Direita e velhas direitas acabou por se firmar na figura de Jair Bolsonaro, que durante três décadas fora apenas uma  figura  pitoresca do baixo clero da Câmara dos Deputados. Ao ex-capitão, empurrado subitamente para as luzes da ribalta, cabia agora a missão de resgatar os valores perdidos e insistentemente proclamados pelos congressistas que votaram pelo afastamento de Dilma Rousseff: Deus, Pátria, Família, Moralidade. 

Com a vitória de Bolsonaro, começou a circular entre os seus apoiadores uma visão curiosa sobre a natureza da democracia e do mandato popular. De acordo com essa visão, o presidente eleito teria a chancela e a força do voto para impor suas decisões sem questionamento, de modo que aos candidatos e partidos derrotados e seus eleitores caberia apenas baixar a cabeça e apoiar o vencedor, que representaria a vontade coletiva da nação. Essa unanimidade em torno do líder é que promoveria o avanço do país pois “é preciso parar com o mimimi e a choradeira e deixar o homem trabalhar”. Fazer oposição, expressar discordância de princípios ou simplesmente formular dúvidas seriam provas de falta de patriotismo e um acinte à vontade do povo. Essa versão ingênua do Füherprinzip foi assim resumida por um eleitor bolsonarista num comentário de internet: “Democracia é isso, ou aceita ou cai fora”. 

Enfim, essa é a teoria e essas são as expectativas dos apoiadores do novo governo, porém nem todas as indicações ministeriais de Bolsonaro correspondem aos elevados padrões de competência e de moralidade apregoados tantas vezes. Também não são claros os limites entre as funções públicas e o papel dos membros da família do presidente e do seu vice. Além disso, faltam transparência, clareza e coerência na apresentação de metas e propostas e há um excesso de proclamações de valores a serem defendidos ou combatidos, de maneira mais ou menos quixotesca. 

As dificuldades iniciais do novo governo têm várias fontes. Algumas vêm da inexperiência administrativa ou da incompetência pura e simples de alguns dos integrantes da equipe, conforme poderemos comprovar nos próximos meses. Outras vêm do voluntarismo afoito e irrefletido tantas vezes manifestado por Bolsonaro e por alguns de seus conselheiros. Outras ainda resultam da própria incongruência dos projetos dos vários segmentos da direita representados no governo: o ativismo jurídico, o intervencionismo militar (acompanhado de revisionismo histórico), o neoliberalismo, a cruzada contra o marxismo cultural e o globalismo, as pautas morais e religiosas do conservadorismo cristão. Há, porém, uma outra dificuldade, ainda mais profunda e que desafia qualquer grupo que venha a ocupar o governo de um país. Trata-se da dificuldade inerente ao exercício do poder de Estado.

Para governar não basta sentar-se num trono que concederia ao ocupante o dom misterioso de resolver problemas pela simples proclamação da sua vontade. Nem as piores tiranias funcionam sem mediações. Primeiro é preciso que o governante assuma as rédeas do Estado, o que não é a mesma coisa que ser eleito ou tomar posse do cargo. O encaminhamento das soluções para os problemas do país depende da capacidade de governar a máquina do Estado, com seus compromissos internos e externos, com seus múltiplos órgãos, suas instâncias de consulta, seus processos de decisão, seus sistemas de pesos e contrapesos, sua burocracia. Essas dificuldades não são exclusivas do governo de Bolsonaro. É comum que eleitores e políticos que lutam para chegar ao poder cometam dois tipos de erro: o de superestimar a capacidade do governo em resolver os problemas da sociedade e o de subestimar a complexidade da máquina do Estado. 

Mesmo que fosse possível reunir um grupo perfeito de técnicos competentes com reputação ilibada, isso não garantiria o êxito do governo, pois governar não é apenas encontrar soluções técnicas para os problemas, mas sobretudo o ato político de decidir quais são as prioridades, de lidar com o descontentamento dos preteridos, de mobilizar consenso em torno das propostas e de fazer com que a máquina do Estado se mova na direção dessas propostas, o que pode requerer concessões ou alianças indigestas. As soluções políticas nunca são puras nem elegantes. Não há técnica ou ciência que possam eliminar a incerteza do processo. Quando um grupo conquista o poder de Estado sempre corre o risco de acabar sendo conquistado e transformado drasticamente pelas exigências da máquina do Estado. Por isso, diante da urgência dos problemas, da magnitude das expectativas e da impaciência dos eleitores, existe sempre a tentação de buscar atalhos, domando a máquina à força. Tentação que deve ser especialmente forte entre os membros e partidários de um governo que cultua a figura do líder como messias e mito e tem a democracia em tão baixa conta que acha que suas credenciais democráticas possam ser comprovadas simplesmente por declarações perfunctórias de respeito à Constituição. O fato de que o Führerprinzip ingênuo dos bolsonaristas receba um endosso nada ingênuo de alguns ministros heideggerianos, como o chanceler Araújo, deve ser mais do que suficiente para espantar a modorra dos verdadeiros amigos da democracia.





100 anos do assassinato de Rosa Luxemburgo


"Liberdade é sempre a liberdade 
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