domingo, 16 de dezembro de 2012

No Père Lachaise: dois amigos conversam







A carta da semana passada foi ocasião do diálogo intercontinental que reproduzimos a seguir




Léo

Acabei de ler a carta! Fiquei muito feliz e, principalmente, vai ser um caminho que percorrerei traçando a "minha" Paris. 


Valdir
A “sua” Paris já está se fazendo aos poucos pela repetição dos caminhos cotidianos. As cidades são redes de circuitos práticos. Nunca iremos percorrê-los todos, mas alguns deles é preciso trilhar de olhos fechados. Uma cidade se torna “nossa” por insistência e aborrecimento. Mas é preciso ter força para não deixar que o tédio e o déjà vu sufoquem a nossa surpresa de recém-chegados, caso contrário vamos perder a capacidade de enxergar os recantos à margem dos circuitos práticos. Eu falo daqueles lugares em que sentimos a urgência de declarar que nada é urgente. Essa aderência é imediata e saudavelmente irracional. Simplesmente não sei explicar porque gosto tanto da rue de Barres, atrás da Igreja de Saint-Gervais. Não é simplesmente por ser uma viela antiga e pouco frequentada. Se fosse assim, eu não me sentiria tão bem na frente da Shakespeare & Co., onde a muvuca não dá trégua.
Então você concorda com o que escrevi na carta? 


Léo
De cara posso falar de duas impressões que se identificaram 100% com as suas: a minha aversão, crescente eu diria, pelos otários do mundo (na sua maioria turistas) e pelos que andam pelo Père Lachaise como se estivessem em um supermercado com sua lista de compras na mão. 


Valdir
Nem adianta ficar bravo com os turistas. Eles fazem parte da paisagem e é bom que eles estejam lá. São o verdadeiro termômetro da normalidade social de um lugar. Quando os turistas desaparecem subitamente é sinal de que logo chegarão os jornalistas fazendo cobertura extraordinária ou os correspondentes de guerra... Um turista é alguém que queria muito estar ali, mas por falta de instrução e de tempo, não tem condições de ler o grande livro da cidade. Ele adquire, então, resumos fáceis na forma de trajetos prontos e camisetas. O turista fica feliz quando suas opiniões preconcebidas foram confirmadas; de volta para casa, ele pode repetir os clichês que sempre ouviu de outros turistas. Dentre as várias espécies de otários do mundo, os turistas são verdadeiros virtuoses da unanimidade. Não se deve negar que há algum mérito nisso. Mas você estava falando dos turistas e dos que passeiam pelo Père Lachaise como se estivessem num supermercado...


Léo
Vou me concentrar nos últimos, porque acho que minha ida ao Père Lachaise foi o estopim para a aversão aos primeiros. 


Valdir:  
Histórias de cemitério são as minhas favoritas. 


Léo: 
No primeiro mês que estava aqui, eu morei com uma família de accueil, como parte do programa intensivo de francês, e dei a sorte de ser uma casa no 11eme, entre as estações Voltaire e Philippe Auguste, a umas três quadras do Père Lachaise. Morei com uma senhora de uns 60 anos que, como dizia ela, tinha uma vida bem particular (e um budget très limité, o que não me permitia tomar mais de 4 minutos contados de banho, mesmo com os 40º do verão) e um gato chamado Général. 


Valdir
Uma senhora de 60 anos com um gato! Très bizarre! Com certeza, ela deve ser a única na França! Pelo nome do gato, ela deve ser gaullista. E você queria tomar banhos de mais de quatro minutos? Muita gente perdeu a cabeça na Revolução por banhos mais curtos que esse. Não viu o que aconteceu com Marat, no famoso quadro de David? Aquilo foi um banho de três minutos e meio! 
Bom, já que estava pertinho do cemitério, deve ter ido várias vezes.


Léo
Pela proximidade achei que a primeira coisa que faria era visitar o cemitério, mas o curso de francês não cumpriu com minhas expectativas e foi muito mais puxado do que imaginei. Resultado, era a última semana que eu ia morar ali, eu tinha que fazer um exposé sobre motores elétricos em carros para o dia seguinte e eu tinha que ir ao Père Lachaise. Como era 15 de agosto, feriado, dividi meu dia em três: faria toda a apresentação até às 3, enviaria para a professora corrigir (ponto que era obrigatório), iria para o cemitério, voltaria às  4 e terminava o trabalho. 


Valdir
Eu recomendo que, assim que puder, você tire uns dias de férias em Paris. A cidade é ótima quando não se está trabalhando tanto. 


Léo
Preciso confessar que minha primeira motivação para ir era ver Jim Morrison e depois dele, todos os outros famosos. Pela pouca quantidade de pessoas que queria ver, julguei que seria tranquilo vê-los em uma hora. Bom, fiz o que tinha que fazer e fui. 
Entrando, a primeira coisa que fiz foi pegar um mapa. Tinha uma pequena fila para pegá-los no balcão de informações, onde uma moça tirava (im)pacientemente as dúvidas de todos os turistas americanos. 


Valdir
Parece que muito da fama de mau humor dos parisienses vem da atitude dos funcionários públicos. Tente imaginar a situação da moça: eternamente aborrecida por causa do salário ruim, do trabalho sem perspectiva e da necessidade de atender os milhares de turistas que fazem sempre as mesmas perguntas. E passar o dia todo num cemitério! Eu fico até com dó da funcionária.  


Léo
O mais interessante ocorreu quando a pessoa na minha frente, que era francesa, estava tirando suas dúvidas e uma adolescente, novamente americana, para não pegar a fila dos mapas entrou na cabine e pegou ela mesma um. O que se seguiu foi um olhar fulminante e um silêncio de uns 5 segundos, quebrados pelos risos da senhora na minha frente, seguidos dos meus. 


Valdir
You lucky bastard! Você presenciou um daqueles momentos em que duas culturas se chocam frontalmente: a eficiência norte-americana baseada no self-service e a burocracia francesa sustentada sobre a tirania que o pequeno burocrata exerce no limite do seu guichê. A adolescente norte-americana usurpou uma prerrogativa que a República Francesa concedeu à funcionária pública em nome dos imortais princípios de 1789. Eu queria ver uma cena dessas e dar risada também!


Léo
Peguei meu mapa e o que pude observar é que, após esse episódio, todos os que se dirigiam a ela em inglês eram tratados impacientemente. Naquele momento percebi que os visitantes, turistas e funcionários não operavam segundo as mesmas diretrizes. Por 30 segundos pensei em qual categoria eu me encaixava e me convenci de que eu não era (e não poderia ser) um turista. 


Valdir
Você foi capaz de refletir sobre a situação e compreendê-la rapidamente: definitivamente você não é um turista.


Léo: 
Marquei no mapa o caminho que faria para ver os túmulos famosos. 


Valdir
Você não nega o engenheiro que é...


Léo
Me convenci que era uma ação emergencial por causa da falta de tempo. Nisso já era 3:15. Decidi ir direto a Jim, que era o principal e o que eu conseguisse fazer com o resto do tempo seria lucro. 


Valdir
Desculpe, Léo, mas ainda é o seu alter-ego engenheiro que está falando...


Léo
Olhei o caminho e comecei, mas mal dei cinco passos, desviei o caminho para o monumento aos mortos. 


Valdir
Agora sim o poeta está cobrando seus direitos!


Léo: 
Depois foram as árvores ao redor que chamaram minha atenção e 10 minutos depois eu ainda estava lá. Ou seja, o relógio me colocou de novo no rumo dos Doors. Consegui chegar, apesar do mapa mal feito (acredito que propositalmente), mas depois foi outra batalha até conseguir um espaço para ver o túmulo dele. É realmente uma sensação interessante estar tão perto de um quase-ídolo. 


Valdir
Nós não encontramos o túmulo de Jim Morrison. Com certeza, o mapa foi feito de maneira displicente por algum funcionário público entediado e mal remunerado que queria se divertir um pouco desorientando os visitantes, que seriam obrigados a voltar para pedir mais informações. Então, o funcionário se levantaria da sua cadeira, daria dois passos para fora da portaria e explicaria  com gestos vagos onde se esconde a sepultura tão procurada. É sempre um jeito de justificar a importância do seu emprego e fingir que se é útil para alguém...
Em todo caso, você foi persistente e encontrou o túmulo do Jim Morrison. E então?


Léo: 
Missão cumprida. Eu tinha agora 25 minutos para aproveitar. Bom, vi La Fontaine, Molière e faltava só Oscar Wilde para completar a hora. Foi no que eu cheguei a uma das praças e vi o túmulo de um deputado, algo bem suntuoso, bem pretensioso: ele matou a justiça! Tirei umas fotos para comprovar!


Foto: Léo Mesquita


Foto: Leo Mesquita

Depois de rir sozinho dessa figura e olhar novamente o caminho que devia fazer, percebi que tinha muito naquele lugar e que eu tinha que procurar minha visão daquilo, então comecei a andar por entre os túmulos menores ao invés de ir pelos caminhos principais.


Foto: Léo Mesquita

Achei mensagens, imagens, esculturas muito interessantes e, como você falou, mais próximos e mais convidativos a ficar admirando e imaginando. 


Valdir
Muitos desses  anônimos quiseram conquistar a mais baixa forma de fama póstuma: o ridículo tumular. É como se dissessem aos passantes: Orai por nós, os deserdados do bom gosto!


Léo
Alguns me chamaram a atenção. O primeiro eu achei enquanto estava perdido procurando Chopin (que pra mim foi um dos mais tocantes - com o perdão do trocadilho).


Foto: Léo Mesquita



O segundo também. Isso é para você perceber o tempo que levei para achar Chopin. 

Foto: Léo Mesquita

Mas valeu a pena. 


Foto: Léo Mesquita

Nesse momento já era quase 5 horas e eu já tinha desistido de fazer o trabalho de francês e comecei a aproveitar o lugar e tudo que ele tinha para mostrar. 


Valdir
Exatamente um daqueles lugares em que sentimos a urgência de declarar que nada é urgente, como eu dizia no começo. Um dos túmulos que mais gosto é o de Victor Noir, que fotografei em 2010:




Léo
Rodei várias vezes, vi Oscar Wilde e os milhões de beijos, dei a volta e vi Balzac. Achei alguém que morreu com orgulho de ser engenheiro e resolvi também registrar.

Foto: Léo Mesquita

Nos últimos minutos antes de fechar, sentei um pouco naquela praça no alto que tinha uma bela vista de Paris. E entrei em um momento de reflexão.


Valdir: 
Está tudo em Balzac. No final de Père Goriot,  Rastignac – que acompanhara o pobre enterro de Goriot -, olha para a cidade desse mesmo lugar e faz o desafio: “À nous deux maintenant”.


Léo: 
E entrei em um momento de reflexão... Que foi quebrado por turistas, acredito que espanhóis, que me perguntavam se eu sabia onde estava Jim Morisson.  


Valdir: 
Dá para entender bem a impaciência dos funcionários da portaria!


Léo: 
Às vezes me pergunto se eu tenho cara de alguém que sabe das coisas, porque sempre me pedem informação na rua. Primeira semana que eu estava em São Paulo já tinha gente me perguntando onde era isso, onde era aquilo. O pior de tudo é que não é raro eu me enganar e mandar a pessoa pro lugar errado. 


Valdir: 
Eu tenho pena de todo mundo que me pede informações de rua. Eu sempre mando as pessoas para o caminho errado. Se houver inferno, deve existir um círculo só para os que desencaminham as pessoas. Com um GPS quebrado pendurado ao pescoço, cada condenado deve tentar sair de um labirinto pedindo informação para mim.


Léo
Enfim, disse que sabia, tentei explicar, não nos entendemos e eu resolvi levá-los até lá. 


Valdir: 
Como ousa usurpar a prerrogativa da funcionária da portaria? A moça vai perder o emprego se os visitantes começarem a pegar os mapas por conta própria e se orientarem mutuamente. Será a anarquia! Você correu o risco de ser fuzilado no fundo do cemitério, junto com os communards.


Léo: 
E acabei o dia exatamente por onde comecei, faltavam 10 minutos para fechar e eu estava de novo frente a frente com Jim. Mas dessa vez tive um momento de epifania e tirei uma foto de um angulo curioso e por um momento estive quase convencido de que ele ainda estava vivo e de jeito nenhum estava ali 

Foto: Léo Mesquita


Valdir
A inscrição em grego - kata ton dáimona eautou - significa que Jim viveu de acordo com as instruções de seu próprio daímon, isto é, seu gênio interior. Como Sócrates, nos diálogos de Platão.
Dizem que Jim Morrison e Allan Kardec são os mortos mais visitados. Muita gente acha que Jim não está morto (ou pelo menos não está enterrado no Père Lachaise); quanto a Kardec, se a doutrina dele estiver certa, não há nada merecedor de visita no seu túmulo. 
Mas estou seguro de que os dois estão bem mortos. Há testemunhas de que Jim Morrison aparece como um fogo fátuo cantando “Light my fire”. Os franceses juram que o Jim é apenas uma emanação de gás inflamável.


Léo: 
Talvez seja somente a maneira de os parisienses se vingarem por ele ser o mais visitado dali. 
Após ser educadamente expulso, ainda encontrei a família Adams!

Foto: Léo Mesquita

Retornei para casa, afinal ainda tinha que terminar o trabalho, mas me prometi que voltaria ainda várias vezes ali (promessa ainda não cumprida); das próximas, com música e um livro. 


Valdir
Quando você finalmente cumprir essa promessa, me diga que músicas e que livro você levou. Vou dar umas sugestões: escute “Je ne regrette rien” em frente ao túmulo de Edith Piaf; para o túmulo de Chopin, é preciso que seja a Sonata nº 2 (opus 35); para o túmulo de Jim Morrison, talvez “Break on Through”. Se o cemitério estiver cheio, escute também “People are strange”.
Afinal, você conseguiu terminar as suas obrigações e tarefas do curso?


Léo
Quando cheguei, lá estavam os comentários da professora e muito o que corrigir. Fiquei até 2h da manhã terminando tudo. 


Valdir: 
É justamente a partir desse horário que o Jim Morrison canta duetos com Edith Piaf...


Léo: 
E voltando à senhorinha, no primeiro dia ela disse que eu não precisava me preocupar com horário de chegar em casa e dormir, porque ela dormia muito tarde. Várias foram as vezes que ela, com espanto genuíno, me perguntou se eu não dormia. Acho que ela ainda não tinha se deparado com um estudante universitário dos dias de hoje, ou pelo menos um estudante universitário brasileiro de engenharia, que é o meu caso.


Valdir: 
Você sabe que é muito fácil ficar deslumbrado com a cidade e esquecer dos estudos. A maior parte dos meus conhecidos amoleceu logo. Espero que você continue com essa firmeza de propósitos. E juro que não estou sendo irônico!


Léo: 
Espero não ter enrolado muito com a história! E que você tenha gostado das fotos! Isso foi uma tentativa de agradecer e mostrar o quanto eu gostei da sua carta! Ah, uma parte que está sendo muito importante na minha Paris é meu quarto aqui em Palaiseau. O sol se põe todo dia na minha janela e às vezes consigo boas imagens. 


Foto: Léo Mesquita

Foto: Léo Mesquita

Foto: Léo Mesquita



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