domingo, 21 de abril de 2013

A claraboia e o holofote #2




Carta a Murilo Medici Navarro da Cruz



Murilo,

O preâmbulo do Manifesto é lido de maneira muito apressada. Depois da frase inicial sobre o espectro, normalmente corre-se para a primeira seção que, de fato, é grandiosa. Mas vou seguindo sem pressa. Acho que, apesar de sua concisão, o preâmbulo contém muito material que esclarece o restante do Manifesto, principalmente no que diz respeito à minha questão: os autores conseguiram dar conta do mundo social prático sem deixar um resíduo destinado a tornar-se fantasia? 
Espero que a resposta venha no final do percurso. Por enquanto, mais um pouco de análise do preâmbulo.


Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


 O preâmbulo


2.  Um  conto da carochinha

Volto à segunda conclusão que Marx enuncia no preâmbulo do Manifesto:

É tempo de os comunistas exporem, abertamente, ao mundo inteiro, seu modo de ver, seus objetivos e suas tendências, opondo um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo.

A suposição oculta no preâmbulo, mas declarada nas duas seções iniciais do Manifesto, é que a Europa estava à beira de um movimento revolucionário no qual os comunistas teriam um papel decisivo. Para cumprir esse papel, os comunistas de toda a Europa precisavam de uma orientação comum. Ao invés de células agitadoras autônomas e secretas, era necessária uma organização partidária cuja eficácia estivesse na mobilização coletiva, através da conclamação aberta à luta revolucionária:

O Manifesto Comunista tinha como tarefa a proclamação do desaparecimento próximo e inevitável da moderna propriedade burguesa.
(Karl Marx e Friedrich Engels, Prefácio à edição russa de 1882)

Para ter uma ação revolucionária eficaz, o comunismo precisava superar seu aspecto difuso, inconsistente e clandestino, ou seja, sua aparência de espectro. Esse espectro era o sintoma do temor que o comunismo inspirava aos senhores da Europa contra-revolucionária, mas esse temor não correspondia à relação real de forças. O comunismo era reconhecido como uma potência, mas apenas na medida em que o espectro do comunismo, dotado de poderes obscuros, era o personagem de uma lenda amplamente difundido pela “velha Europa”: a lenda do espectro do comunismo (Märchen vom Gespenst des Kommunismus).

A expressão merece um comentário.

A palavra “espectro” foi consagrada por duas traduções muito prestigiosas: a inglesa de Samuel Moore, com notas de Engels, e a francesa de Laura Lafargue, filha de Marx. “Spectrum” vem do verbo “specio”, que significa observar, olhar, examinar. Trata-se da mesma raiz que resultou nas palavras “espelho”, “especulação” e “inspeção”. Um espectro é literalmente uma aparição, algo que surge diante de nossos olhos. Dai o uso científico que se faz da palavra em expressões como “todas as cores do espectro luminoso”.  Todavia, a palavra alemã original é "Gespenst", que seria melhor traduzida por “fantasma” ou “assombração”.

A palavra culta “espectro” reforça o elemento assustador do comunismo, mas obscurece a ligação da palavra "Gespenst" com universo folclórico e ingênuo, ao qual remete o termo "Märchen":

Märchen, plural Märchen,  folktale characterized by elements of magic or the supernatural, such as the endowment of a mortal character with magical powers or special knowledge; variations expose the hero to supernatural beings or objects. The German term Märchen, used universally by folklorists, also embraces tall tales and humorous anecdotes; although it is often translated as “fairytale,” the fairy is not a requisite motif.
(Britannica Online)

Na tentativa de traduzir a difícil palavra “Märchen”, acredito que a expressão “conto da carochinha” é mais precisa do que “lenda” e tão boa quanto “nursery tale” (usada por Samuel Moore). Portanto, a “lenda do espectro do comunismo” é, em outras palavras, o conto da carochinha da assombração comunista. Essa maneira de traduzir tem a vantagem de evidenciar o caráter fantástico que o comunismo assumia para os supersticiosos senhores da “velha Europa”. Todavia, embora essa assombração indicasse que o comunismo já era reconhecido como potência,  o manifesto comunista deveria opor-se ao conto da carochinha do fantasma do comunismo (Märchen vom Gespenst des Kommunismus).  

Por que os comunistas deveriam fazer oposição a algo que permitia que sua potência fosse reconhecida? Por qual razão era preciso  contrapor-se a um conto da carochinha? O caráter fantasioso e supersticioso do conto não seria suficiente para que ele se dissolvesse por si só nas consciências esclarecidas?  É claro que não. Justamente por isso a força retórica e argumentativa do Manifesto deveria ser tão grande quanto o poder de convencimento do conto da assombração comunista. Isso é o que o significa contrapor o manifesto ao conto da carochinha.

De onde viria esse poder de convencimento do conto da carochinha?

André Jolles, filólogo e historiador da literatura, dedicou uma seção de sua obra clássica sobre as Formas Simples (1930) ao estudo do Märchen. Acredito que quatro das características do Märchen na análise de Jolles ajudam a esclarecer a força que Marx atribui ao conto da carochinha da assombração do comunismo.

1.  O conto da carochinha é inseparável do maravilhoso, que constitui o elemento natural e normal dessas narrativas.

2.  O conto da carochinha sempre se passa num espaço e num tempo indeterminados.  A localização e o tempo histórico quebrariam o fascínio do maravilhoso. 

3. O conto da carochinha é um gênero que admite versões, adaptações, modificações. O conto é dotado de fluidez, de mobilidade, de abertura e renovação constante. Por isso, não tem autor e dissemina-se à medida em que é contado de boca em boca.

4. O conto da carochinha satisfaz as necessidades de uma moral ingênua, segundo a qual os acontecimentos do mundo deveriam punir as más ações. 

As personagens e as aventuras do conto não nos propiciam, pois, a impressão de serem verdadeiramente morais; mas é inegável que nos proporcionam certa satisfação. Por quê? Porque satisfazem, ao mesmo tempo, nosso pendor para o maravilhoso e o nosso amor ao natural e ao verdadeiro mas, sobretudo, porque as coisas se passam nessas histórias como gostaríamos que acontecessem no universo, como deveriam ser.

(...)

Neste aspecto, o Conto opõe-se radicalmente ao acontecimento real como é observado de hábito no universo. É muito raro que o curso das coisas satisfaça às exigências da moral ingênua, é muito raro que seja “justo”; logo, o Conto opõe-se ao universo da realidade.

(...)

Sevícias, desprezo, pecado, arbitrariedades, todas estas coisas só aparecem no Conto para que possam ser, pouco a pouco, definitivamente eliminadas e para que haja um desfecho em concordância com a moral ingênua. Todas as mocinhas pobres acabam por casar com o príncipe que devem desposar, todos os jovens pobres tem a sua princesa...
(André Jolles, Formas Simpleseditora Cultrix)

Embora André Jolles não tire explicitamente essa conclusão, ocorre que a complacência com o maravilhoso, o caráter a-histórico, a fluidez e a adaptabilidade e, principalmente, a conformidade com a moral ingênua conferem ao conto da carochinha a capacidade de persistir como uma rede de expectativas profundas a respeito do mundo, apesar de todos os desmentidos da realidade. O conto da carochinha é uma maneira profundamente enraizada de dar estrutura aos acontecimentos e não pode ser dissipado facilmente. 

O conto da assombração comunista circulava com rapidez graças à fluidez e plasticidade características dos Märchen. A indeterminação histórica e geográfica permitia que o conto se adaptasse a qualquer país e a qualquer circunstância, de maneira que o fantasma do comunismo era ubíquo antes mesmo que o comunismo fosse internacional.

Como toda história da carochinha, o conto do fantasma do comunismo tinha um propósito moralizante: a ordem justa do mundo dependia da destruição do elemento maligno perturbador. No caso, o fantasma do comunismo era o antagonista que deveria ser vencido para que a ordem do mundo fosse restaurada tal como deveria ser. Esse era o propósito da “santa aliança” que unia um impossível grupo de heróis para “exorcizar” o fantasma. Tratava-se de um conto que fazia girar os moinhos da Reação. Portanto, se as potências da “velha Europa” combatiam o comunismo como espectro, o próprio partido comunista deveria denunciar o espectro como conto da carochinha contra-revolucionário. Para isso, era preciso um manifesto do partido comunista.

No preâmbulo, vemos que o movimento do pensamento de Marx é fenomenológico (na medida em que parte das aparências imediatas) e dialético (na medida em que as contradições produzem determinações cada vez mais complexas e concretas): inicialmente o comunismo aparece como fantasma, mera aparição ainda obscura e indeterminada. Mas essa aparência não é um nada, é aparência necessária que revela o reconhecimento de uma potência. Essa potência, porém, só pode se tornar força efetiva, isto é, força histórica revolucionária, se o seu caráter inicial de aparição for superado pela manifestação de sua força, ou seja, de suas determinações reais. 

O manifesto (do latim “manufestus” – aquilo que é apreendido na mão, pego em flagrante e, portanto, é óbvio e evidente) tinha como objetivo fazer com que a visão obscura do comunismo como personagem assustador de um conto da carochinha cedesse lugar à visão manifesta do comunismo como agente revolucionário do processo histórico. 

Marx e Engels acreditavam que havia chegado esse momento. A expressão “é tempo de...” no início da segunda conclusão do prêambulo era a declaração da oportunidade do momento, da maturidade do agente e da urgência da intervenção. Mas por que já era tempo?  

Marx e Engels pretendiam fazer um juízo histórico sobre o presente a partir de uma análise da correlação de forças da época? 

Ou pretendiam agir movidos por especulação teórica e aventureirismo prático para acelerar os acontecimentos? 

O que eles estavam fazendo? Estavam a abrir uma claraboia sobre o presente ou queriam dirigir um holofote para o futuro?

E, o mais importante, os meios de que dispunham permitiam que fizessem isso?

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No próximo capítulo deste folhetim filosófico, quero avançar um pouco na análise histórica que Marx e Engels fazem na primeira seção do Manifesto.



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