domingo, 28 de abril de 2013

A claraboia e o holofote #3





Carta a Murilo Medici Navarro da Cruz


Murilo,

Na seção I, o Manifesto pega fogo quando fala das conquistas da burguesia. Tudo ali é antológico, o texto brilha, mas a seção não começa bem. Espero que você se convença, como eu, de que não é no Manifesto que vamos encontrar uma sociologia da modernidade ou uma filosofia da história. 

Um abraço


Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


Seção I – Burgueses e Proletários


1. Uma redação do estudante Karl Marx comentada por um professor

No início da seção I do Manifesto, encontramos uma redação escolar do jovem Karl Marx. O tema proposto era “a sociedade moderna se encaminha para a harmonia?”

Em 1848, o aluno Karl Marx escreveu:

A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes. 

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, tem vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito.

Nas mais remotas épocas da História, verificamos, quase por toda parte, uma completa estruturação da sociedade em classes distintas, uma múltipla gradação das posições sociais, Na Roma antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres das corporações, aprendizes, companheiros, servos; e, em cada uma destas classes, outras gradações particulares.

A sociedade burguesa moderna, que brotou da ruína da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das que existiram no passado.

Entretanto, a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado.
(Manifesto do Partido Comunista, seção I Burgueses e Proletários).



Em 2013, o professor que leu a redação fez as seguintes observações:

O estudante Karl Marx demonstra vivacidade e domínio dos instrumentos retóricos, mas o gênero “manifesto” - escolhido pelo estudante - exige uma rapidez que se casa mal com o pensamento. Um manifesto procura suscitar emoções e canalizá-las para a aprovação imediata. Ele se move a golpes de frases de efeitos destinadas a tornarem-se slogans repetidos ad nauseam.  O manifesto é o gênero antidialético por excelência. 

A redação do aluno mostra sinais de precipitação e aventureirismo, a começar pela generalização inicial: A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes. 

Onde e quando o aluno, tão jovem e tão ocupado com as lides políticas, teria tido tempo de estudar a história de todas as sociedades existentes? 

O aluno pretendia fazer uma afirmação contundente, mas é ele que sai contundido. Na pressa de conquistar o leitor para seu ponto de vista, ele se esqueceu da maneira inteligente com que havia iniciado o preâmbulo do Manifesto, através de um movimento que parte da aparência e avança através das contradições daquilo que aparece. Ele propôs, de maneira sucinta e brilhante, que o fantasma do comunismo era apenas uma imagem invertida das relações reais. 

Dessa vez, o estudante não tomou as precauções necessárias e resolveu anunciar, de cara, uma suposta verdade fundamental, para a qual ele só pôde aduzir alguns parcos exemplos (a sociedade romana e a sociedade “medieval”), cada um dos quais já é uma generalização histórica. Por ser jovem, o aluno não sabe que indicar dois pontos da história (por exemplo, o mundo romano e a Europa ocidental medieval) define apenas uma reta cronológica, mas não o vetor de um processo histórico. 

Toda a história seria a guerra, velada ou declarada, entre opressores e oprimidos? Toda a guerra terminaria em transformação revolucionária ou na destruição de ambos os oponentes?  Seria preciso que o estudante se esforçasse um pouco em dar exemplos dessas situações. Como se dão tais guerras? Quais guerras entre opressores e oprimidos terminaram em transformação revolucionária? Quais guerras terminaram na destruição de ambos os oponentes? E por qual razão não há possibilidade de acomodação entre as partes beligerantes? 

Além das generalizações ambiciosas, mas infundadas, o aluno não resolveu uma inconsistência lógica: por um lado, ele afirma que as guerras se dão entre opressores e oprimidos, mas, por outro lado, ele mostra que a sociedade romana e a sociedade “medieval” eram estruturadas em múltiplas classes, cada qual com suas gradações.  Neste caso, haveria múltiplas lutas de classes? Será que cada classe combatia a classe que lhe era superior e era combatida pela classe que lhe era inferior? 

Infelizmente, não podemos esperar que o aluno responda a essas perguntas, seja por causa seu conhecimento histórico lacunar, seja por causa da pressa com que ele avança para a sociedade moderna - que ele qualifica como “sociedade burguesa” ou “a época da burguesia” , sem ter previamente explicado o que é esta classe social. E mais: de maneira paradoxal, ele afirma que, embora a sociedade burguesa tenha criado novas classes e novas formas de luta, o caráter distintivo desta época é a simplificação crescente do antagonismo entre as classes, que se torna cada vez mais o conflito entre a burguesia e o proletariado.

Novamente, não há nenhuma evidência histórica ou sociológica que permita fazer tal declaração. É uma pena que o estudante Karl Marx, que mostra um gosto acentuado pelos romances de Balzac, não tenha dado mais atenção à maneira como o célebre romancista francês mostra o enredamento complexo e multidirecional dos conflitos de classe (em grande parte, lutas por status, feitas à base de desafios abertos e de alianças oportunistas).

Um sinal de que não sou o único a sentir os defeitos da redação do aluno Karl Marx é o fato de que seu colega Engels tentou, a posteriori, emendar a generalização da abertura por meio de uma nota em que comenta que as afirmações do colega valem apenas para as sociedades que se estruturaram em classes sociais, depois da dissolução das comunidades primitivas baseadas na propriedade comum. Embora isso também seja discutível, Engels ao menos cita as fontes de sua conclusão. 

Engels também acrescentou, em nota, uma definição rápida do que era a burguesia e o proletariado: 

Por burguesia entende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social que empregam o trabalho assalariado. Por proletariado, a classe dos assalariados modernos que, não tendo meios próprios de produção, são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver.
(Nota de Engels à edição inglesa do Manifesto, 1888)

A definição de Engels tem o mérito da clareza e da concisão, mas é demasiado formal. O único traço de historicidade que nela encontramos é o uso do adjetivo “moderno” aplicado à burguesia e ao proletariado. Trata-se de um epíteto que é pau para toda obra, já que pretende especificar sem especificar coisa nenhuma, pois é justamente o caráter distintivo da modernidade que está em jogo: se a sociedade moderna se caracteriza pelo antagonismo entre burguesia e proletariado, definir a burguesia e o proletariado como grupos modernos não esclarece nada sobre a dinâmica histórico-social dessas duas classes. Sabemos apenas que elas são correlatas num dado momento histórico, que é a modernidade: uns empregam o trabalho assalariado, outro se vendem como força de trabalho assalariado.

Com certeza, Engels julgava que a seção I do Manifesto demonstrava o movimento histórico que conduzia a essa relação dual e antagônica que definia a sociedade moderna. O problema é que se quando se afirma que a burguesia é a classe dos capitalistas modernos, perde-se justamente o movimento que começa no enraizamento da burguesia na sociedade feudal, movimento ao qual Marx se mostra tão atento no restante da seção I .

Portanto, as notas de Engels não corrigem os problemas na redação do aluno Marx. Na verdade, enquanto Engels se refere estaticamente a algo que se apresenta pronto (a burguesia e o proletariado modernos), o aluno Marx está tentando capturar um movimento. Seus meios são insuficientes, sua pressa deve ser censurada, mas sua ambição teórica deve ser incentivada. 

Em deferência à sua ousadia e inteligência, considero que o aluno está aprovado, mas recomendo vivamente mais cuidado na redação da continuação da seção I do Manifesto.



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