sexta-feira, 31 de maio de 2013

A claraboia e o holofote #6







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



Excurso n.1 –


Sutilíssimo leitor,

Queira me acompanhar neste exercício de pensamento. Comece pela colagem que fiz de citações do preâmbulo e da primeira seção do Manifesto do Partido Comunista.

Um espectro ronda a Europa. Tudo o que é sólido desmancha no ar. Populações brotando da terra como por encanto. A sociedade burguesa assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.

Em seguida, considere alguns textos que propõem elementos, a meu ver preciosos, para uma teoria dos personagens fantásticos:



a. Tzvetan Todorov, “A Narrativa Fantástica” in As Estruturas da Narrativa

Passemos à função literária do sobrenatural. Existe uma coincidência curiosa entre os autores que cultivam o sobrenatural e os que, na obra, se preocupam particularmente com o desenvolvimento da ação: são os mesmos. Os contos de fada nos dão a forma primeira, e também a mais estável, da narrativa.

(...)

Toda narrativa é movimento entre dois equilíbrios semelhantes, mas não idênticos. No começo da narrativa, haverá sempre uma situação estável, as personagens formando uma configuração que pode ser móvel, mas que conserva entretanto intatos certo número de traços fundamentais. Digamos, por exemplo, que uma criança vive no seio de uma família; ela participa de uma micro-sociedade que tem suas próprias leis. Em seguida, sobrevém algo que rompe a calma, que introduz um desequilíbrio (ou, se quiser, um equilíbrio negativo); assim, a criança deixa, por uma razão ou por outra, sua casa. No fim da história, depois de ter superado muitos obstáculos, a criança, crescida, reintegrará sua casa paterna. O equilíbrio é então restabelecido, mas não e o mesmo do começo: a criança não é mais criança, é um adulto entre outros. A narrativa elementar comporta dois tipos de episódio: os que descrevem um estado de equilíbrio ou de desequilíbrio e os que descrevem a passagem de um ao outro. Os primeiros se opõem aos segundos como o estático ao dinâmico, como a estabilidade à modificação, como o adjetivo ao verbo. Toda narrativa comporta esse esquema fundamental, se bem que seja frequentemente difícil reconhecê-lo: podemos suprimir seu começo ou sem fim, intercalar digressões, outras narrativas etc.

(...)

Os acontecimentos sobrenaturais intervém para romper o desequilíbrio mediano e provocar a longa demanda do seguindo equilíbrio. O sobrenatural aparece na série de episódios que descrevem a passagem de um estado a outro. Com efeito, o que poderia transformar a situação estável do começo, que os esforços de todos os participantes tendem a consolidar, senão precisamente um acontecimento exterior, não só à situação, mas ao próprio mundo natural?

Uma lei fixa, uma regra estabelecida: eis o que imobiliza a narrativa. Mas, para que a transgressão da lei provoque uma modificação rápida, é preciso que forças sobrenaturais intervenham; senão a narrativa corre o risco de se arrastar, esperando que um justiceiro humano perceba a ruptura do equilíbrio inicial. O elemento maravilhoso é a matéria que melhor preenche essa função precisa: trazer uma modificação da situação precedente, romper o equilíbrio (ou o desequilíbrio). Ao mesmo tempo, é preciso dizer que essa modificação pode produzir-se por outros meios, se bem que esses sejam menos eficazes. 




b. André Jolles, “O Conto” in Formas Simples

A ideia de que tudo deva passar-se no universo de acordo com nossa expectativa é fundamental, em nossa opinião, para a forma do conto da carochinha (Märchen); ela é a disposição mental específica do conto. Perrault via muito bem, como tantos outros, que se trata de uma disposição moral, mas não no sentido de uma ética filosófica. Se pensarmos com Kant que a ética responde à pergunta “Que devo fazer?” e que o nosso julgamento ético inclui, portanto, uma determinação axiológica dos atos humanos, o conto não tem lugar aí. Mas  podemos admitir que, para além dessa ética, existe uma outra que responde à pergunta: “Como devem as coisas acontecer no universo?” e existe um juízo axiológico, orientado para o acontecimento e não para o ajuste de contas [o cumprimento do dever individual]; e verifica-se ser este o julgamento ético que a linguagem inculca na forma do conto da carochinha.

Ao invés da ética filosófica, que é uma ética da ação, chamarei a esta a ética do acontecimento ou moral ingênua (...) O nosso julgamento da ética ingênua é de ordem afetiva; não é estético, dado que nos fala categoricamente; não é de ordem utilitarista nem hedonista, porquanto seu critério não é o útil nem o agradável; é exterior à religião, visto não ser dogmático nem depender de guia divino, é um julgamento puramente ético, quer dizer absoluto. Se partirmos desse julgamento para determinar a forma do conto, podemos dizer que existe no conto da carochinha um forma em que o acontecimento e o curso das coisas obedecem a uma ordem tal que satisfazem completamente as exigências da moral ingênua e que, portanto, serão “bons” e “justos” segundo nosso juízo sentimental absoluto.

Nesse aspecto, o conto da carochinha opõe-se radicalmente ao acontecimento real como é observado de hábito no universo. É muito raro que o curso das coisas satisfaça às exigências da moral ingênua, é muito raro que seja “justo”; logo, o conto da carochinha se opõe ao universo da “realidade” (...) Pode-se dizer que a disposição mental do conto da carochinha exerce aí a sua ação em dois sentidos: por uma parte, toma e compreende o universo como uma realidade que ela recusa e que não corresponde à sua ética do acontecimento; por outra parte, propõe e adota um outro universo que satisfaz a todas as exigências da moral ingênua.

(...)

Sevícias, desprezo, pecado, arbitrariedades, todas estas coisas só aparecem no conto da carochinha para que possam ser, pouco a pouco, definitivamente eliminadas e para que haja um desfecho em concordância com a moral ingênua. Todas as mocinhas pobres acabam por casar com o príncipe que devem desposar, todos os jovens pobres tem a sua princesa; e a morte, que significa, em certo sentido, o auge da imoralidade ingênua, é abolida no conto. Essa construção interna do conto é que suscitará a satisfação de que falamos há pouco: ao ingressar-se no universo do conto da carochinha, aniquila-se o universo de uma realidade tida por imoral.




c. Slavoj Zizek, Um mapa da ideologia, Introdução: O espectro da ideologia

E talvez seja aí que devamos buscar o último recurso da ideologia, o cerne pré-ideológico, a matriz formal em que são enxertadas as várias formações ideológicas: no fato de que não existe realidade sem o espectro, de que o círculo da realidade só pode ser fechado mediante um estranho suplemento espectral. Mas, por que não existe realidade sem o espectro? Lacan fornece uma resposta precisa a esta pergunta: o que vivenciamos como realidade não é a “própria coisa”, é sempre já simbolizado, constituído e estruturado por mecanismos simbólicos – e o problema reside no fato de que a simbolização, em última instância, sempre fracassa, jamais consegue “abarcar” inteiramente o real, sempre implica uma dívida simbólica não quitada, não redimida. Esse real (a parte da realidade que permanece não simbolizada) retorna sempre sob a forma de aparições espectrais. (...)

Portanto, o cerne pré-ideológico da ideologia consiste na aparição espectral que preenche o buraco do real. É isso que todas as tentativas de traçar uma linha separatória entre a “verdadeira” realidade e a ilusão (ou de fundamentar a ilusão da realidade) deixam de levar em conta: para que emerja (o que vivenciamos como) a “realidade”, algo tem que ser foracluído dela – em outras palavras, a “realidade”, tal como a verdade, nunca é, por definição, “toda”. O que o espectro oculta não é a realidade, mas seu “recalcamento primário”, o X irrepresentável em cujo “recalcamento” fundamenta-se a própria realidade. 


********

Sapientíssimo leitor,

No preâmbulo do Manifesto, declara-se que era tempo de os comunistas exporem seu modo de ver na forma de um manifesto, que se opusesse ao conto da carochinha do fantasma do comunismo. Ocorre que, na sua primeira seção, o Manifesto tem a forma de um relato da constituição da sociedade burguesa moderna e da sua oposição irreconciliável com o proletariado (que ainda iremos analisar nos próximos capítulos deste folhetim filosófico). O relato de Marx, embora apele para as realizações da burguesia que podiam ser admiradas na primeira metade do século XIX, é curiosamente genérico e impreciso historicamente. É verdade que o jovem Marx não pode ser culpado disso: o assunto era novo e a historiografia social só iria dar grandes passos mais tarde, por influência de Marx e das grandes teorias sociológicas do final do século. Mas, exatamente por causa dessa insuficiência do jovem Marx, a burguesia aparece menos como classe social do que como personagem dotada de poderes demiúrgicos. Talvez seja o caso de pensar que:

1.  A lógica do relato da primeira seção do Manifesto não é outra senão a lógica da narração fantástica, em que o movimento entre os dois equilíbrios (o mundo relativamente imóvel da antiguidade e do feudalismo e o mundo da sociedade emancipada sem classes) resulta da intervenção de uma potência fantástica, que subverte todas as regra de maneira súbita e brutal: a burguesia.

2.  Contra o conto da carochinha do fantasma do comunismo, Marx está opondo o conto da carochinha da burguesia, em que a classe social é transformada num personagem decalcado na figura do Fausto, de Goethe (conforme Marshall Berman analisou muito bem). Todavia, num nível mais profundo, uma vez que a burguesia não pode ser redimida como acontece no final de Fausto, o impulso fáustico da burguesia a levará para um confronto com o proletariado, em que ela será irremediavelmente vencida. Existe aí alguma lógica histórico-dialética aí?  Ou existe apenas a exigência de um desfecho que satisfaça a ética do acontecimento da moral ingênua, característica dos contos da carochinha?

No começo da primeira seção do Manifesto, Marx disse que a luta de classes “terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito”. A possibilidade de aniquilação recíproca das duas classes antagônicas é mencionada só para ser esconjurada pela certeza da vitória do proletariado no final da primeira seção. Tal certeza parece resultar da confiança de Marx num esquema narrativo que se apoia na intervenção de poderes fantásticos e não numa análise da conjuntura de forças da época (como as que ele fará, na década de 1850, em obras como o 18 Brumário).

3.  Zizek fala de um suplemento espectral da realidade, que surge porque há um excedente do real que jamais é simbolizado e - por causa do retorno do que é recalcado - reaparece na forma de espectro.  É verdade que Zizek se refere à simbolização “primária” que constitui a realidade vivida. No entanto, seria o caso de pensarmos que esses espectros aparecem também nas tentativas (sempre incompletas, sempre insuficientes) de constituir uma práxis social transparente e de compreender plenamente a práxis. O que seria o próprio conteúdo da oitava tese contra Feuerbach, que conduz minha leitura: 

Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que induzem às doutrinas do misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e no compreender dessa práxis.

Portanto, podemos sempre esperar que os espectros e todo o cortejo de personagens fantásticos, demônios e poderes místicos (ou mistificadores) apareçam como suplemento fantasmático das interpretações do mundo social, todas elas sempre insuficientes e corroídas por contradições internas jamais explicitadas (das quais um exemplo é precisamente a presença das duas metáforas opostas para a História no Manifesto: a história como palco e a histórica como motor).

Tais contradições não são dialéticas, uma vez que não dinamizam a apreensão do processo real. Elas são apenas feridas internas que fazem claudicar todo esquema teórico.



domingo, 19 de maio de 2013

A claraboia e o holofote #5






Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



Seção I - Burgueses e Proletários


3.  Um personagem célebre


Marx viu o movimento histórico moderno como obra da burguesia, que criou o mercado mundial e a grande indústria. No entanto, esse movimento aparece desligado da luta de classes - que supostamente seria a própria forma da História, de acordo com a proposição inicial do Manifesto. A burguesia surge como o único agente de transformação do mundo moderno. Seus poderes demiúrgicos são colocados em evidência nesta que é, do ponto de vista estilístico, uma das mais belas páginas escritas por Marx:


A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário.


Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus “superiores naturais”, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do “pagamento à vista”.  Afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas duramente, por uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio.  Em uma palavra, em lugar da exploração dissimulada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, direta, despudorada e brutal.


A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então respeitadas como dignas e encaradas com piedoso respeito. Fez do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio seus servidores assalariados.


A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-a a meras relações monetárias.


A burguesia revelou como a brutal manifestação de força na Idade Média, tão admirada pela reação, encontra seu complemento natural na ociosidade mais completa. Foi a primeira a provar o que a atividade humana pode realizar: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas: conduziu expedições que empanaram mesmo as antigas invasões e as Cruzadas.


A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que é sólido e estável desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens. 




I


O poder poético e retórico dessa passagem é tão evidente que cabe perguntar se ainda restou nela algum espaço para análise social, ou se Marx, imantado pelas próprias palavras, simplesmente não retomou temas provenientes de um imaginário social (e artístico) preexistente para elaborar um personagem mítico: a burguesia como demiurgo da modernidade, decalcada no célebre personagem de Goethe, tal como ele aparece na segunda parte do Fausto (1832):


Nunca dizer ao instante que passa: para, és belo! Única palavra de ordem: para a frente, para além das tumbas! O paradoxo ao mesmo tempo angustiante e exaltante da modernidade inaugurada por Fausto – é que o desejo ali, sempre mais forte que o prazer e a sensualidade experimentada com ardor, deve no entanto ceder lugar ao ardor do devir. Aceleração na fuga para a frente. 

(Pierre Chartier, “Os Avatares de Fausto” em O Olhar de Orfeu: os mitos literários do Ocidente, organizado por Bernadette Bricout)

[No final do filme dirigido por Alexander Sokurov (Faust, 2011), Mefistófeles pergunta para onde Fausto vai. O protagonista, avançando através de uma paisagem árida e vulcânica, responde: Dahin! Weiter! Immer weiter!]


O movimento histórico da burguesia, tal como descrito no Manifesto, também é uma fuga para frente. A burguesia subverte todas as relações que Marx supunha herdadas do mundo feudal: o patriarcalismo, os privilégios dos “superiores naturais”, a exaltação religiosa e o entusiasmo cavalheiresco, a dignidade reverenciada de certas profissões, o sentimentalismo. Mas, ao mesmo tempo, a burguesia teria mergulhado a sociedade no egoísmo, no interesse e no cálculo frio, na exploração aberta. 


O papel da burguesia como personagem é dissolver o que parecia estável e profanar o que era sagrado.  Ela não deixa nada durar muito tempo. Na sua condição fáustica, a burguesia é movida por um impulso de transformação, que causa abalos, crises, insegurança e incerteza.  




II


A burguesia que Marx descreve não é uma classe social; ela parece ser apenas a forma personificada de uma força em pleno desdobramento. Como veremos num trecho posterior, essa força é o capital (Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital...). No entanto, essa identificação é feita de maneira quase casual e permanece sem consequências no texto.


No Manifesto, Marx recorre frequentemente a personificações e personagens. A própria ideia de que a História se desenrola como luta de classes exige personagens que representem os opressores e oprimidos. Do ponto de vista da propaganda e da mobilização política, as personificações tem suas vantagens. Como se sabe, é mais fácil organizar os trabalhadores contra os patrões do que conclamar uma união contra a força invasiva do capital e da forma-mercadoria... 


É possível que o gosto por personagens e personificações seja resultado do papel que a literatura teve na formação do pensamento social de Marx. Os numerosos comentários sobre passagens de Shakespeare e de Goethe nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844 demonstram bem a atenção dada à maneira como os processos sociais e econômicos são apreendidos pelos grandes escritores.


O recurso às personificações e às personagens está ligado também a uma certa maneira de conceber a História, que pode ser resumida na metáfora da História-palco, em que a ação é performada por personagens-agentes. Quem adere à metáfora do palco, tende a ressaltar a ação dos sujeitos segundo enredos previamente definidos. Além da falácia teleológica,  essa concepção abre espaço para a suspeita de que há agentes escondidos nos bastidores, manipulando o que vemos no proscênio. Daí que a metáfora do palco sirva de base tanto para as interpretações personalistas e finalistas da História, quando para as teorias conspiratórias.


[No Manifesto, além da metáfora da História-palco, encontramos também a metáfora da História-motor (a roda da História), em que o movimento é produzido por forças em conflito.  Os que preferem a metáfora do motor, dão ênfase ao aspecto impessoal das forças históricas. Isso pode alimentar a ilusão naturalista de que o processo histórico tem regularidades semelhantes às da Natureza e, portanto, pode ser predito. Ou, ainda mais grave, a metáfora da História-motor pode levar a um determinismo absoluto, segundo o qual  há "leis de ferro" que governam o processo, anulando a própria ideia de intervenção ou de agência subjetiva.


O fato de que as duas metáforas ocorram no texto do Manifesto é sintoma das incertezas profundas de Marx quanto à teoria da História]



Marx descreve explicitamente a burguesia como personagem no palco da História: A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário.

Na tradição do romance do século XIX, Marx traça um breve estudo de caráter dessa personagem amoral e brutal. Como uma força implacável da natureza, ela parece ter o poder irresistível de dissolver tudo o que se opõe a seus interesses.  Sem dilemas, nem ambiguidades, ela destrói as ilusões e domina sem rodeios. No entanto, a destruição das ilusões é esclarecimento; a dominação sem dissimulação é o fim da mistificação; a transformação dos meios de produção aumenta a produtividade. Em sua revolução permanente, a burguesia é portadora de esclarecimento,  transparência e eficiência.


O que Marx nos mostra tem pouco a ver com algum processo histórico definido em termos cronológicos ou geográficos. Trata-se muito mais da descrição do estado de espírito ou do vórtice de dissolução causados pela presença da personagem.


De maneira curiosa, Marx parece estar fascinado por ela. Mesmo condenando moralmente sua frieza, sua falta de escrúpulos, seu despudor e a sua brutalidade, ele demonstra uma autêntica volúpia retórica na enumeração das relações sociais dissolvidas pela burguesia. É fácil ver o seu regozijo niilista com a destruição dos véus, das auréolas, dos laços e dos sentimentalismos, tanto quanto com a liberação das forças do trabalho social numa escala sem precedentes. Marx se orgulha da  rapidez espantosa com que a burguesia teria criado a sociedade urbana, europeia e industrialista, calcada no trabalho social organizado: enfim, o mundo moderno. E tudo isso apenas para satisfazer a demanda crescente por mercadorias, segundo a explicação naïve dada nos parágrafos antecedentes do Manifesto (parece que o próprio Marx estava encantado pela multiplicação das mercadorias que se amontoavam numa riqueza sem igual).


A força cega da burguesia leva a uma sociedade em que as relações são, finalmente, transparentes (os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens). A sociedade burguesa seria a primeira a prescindir de dissimulações. A burguesia do Manifesto Comunista dispensaria até a  ideologia... 


Será isso um surpreendente twist dialético ou a consequência de um grave erro de análise?



III

Marshall Berman, que intitulou sua obra mais famosa a partir do trecho em questão do Manifesto, argumentava que Marx (seguindo a trilha aberta pela “tragédia do desenvolvimento” do Fausto) descrevera, antes de Dostoievsky, de Nietzsche e de Rimbaud, o advento da modernidade niilista, cujo poder de desilusão caminha pari passu com o poder de destruição, de modo que “tudo o que é sólido desmancha no ar”:


All the anarchic, measureless, explosive drives that a later generation will baptize by the name of "nihilism" - drives that Nietzsche and his followers will ascribe to such cosmic traumas as the Death of God - are located by Marx in the seemingly banal everyday working of the market economy. He unveils the modern bourgeois as consummate nihilists on a far vaster scale than modern intellectual can conceive. 

(Marshall Berman, All that is solid melts into air, capítulo 2, seção 2)

Marshall Berman não se interessa pelo ativista político dotado de verve retórica que escreveu o Manifesto para mobilizar os trabalhadores num momento de esperanças revolucionárias em alta, nem pelo homem de ciência que propôs conceitos para analisar o processo de mudança histórica e social.  Na visão de Berman, Marx é um artista que tem insights sobre a natureza inquietante e dissolvente da sociedade burguesa. 


Acredito que Berman esteja certo em vários pontos. O trecho do Manifesto descreve uma burguesia que, à maneira de Fausto, é movida para frente por um impulso cego, por uma vontade de potência niilista. Concordo também que a descrição ambivalente dos feitos da burguesia se aproxima das visões elaboradas por vários artistas e pensadores do século XIX e do começo do século XX.   Todavia, parece-me que essa aproximação com a tradição que Berman denomina “modernista” se dá exatamente porque o Manifesto não conseguiu superar o imaginário social mistificado que também serviu de base para os artistas e pensadores modernistas (vários deles, como Baudelaire e Nietzsche, herdeiros de visões conservadores e até reacionários do mundo social). Se o Manifesto tem pontos em comum com as visões dos “modernistas” talvez isso constitua um problema e não uma vantagem.  Ler Marx à luz da modernidade artística, como defende Berman, talvez só sirva para encobrir com um véu estetizante certos erros de avaliação que estão na raiz do pensamento de Marx e do modernismo.


No próximo capítulo do meu folhetim, vou tentar mostrar que a burguesia revolucionária, iluminista, sacrílega e que domina sem dissimulação é um personagem fantástico, da mesma estirpe que outros célebres personagens como o Horla ou Cthulhu. 



domingo, 5 de maio de 2013

A claraboia e o holofote #4






Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



Seção I - Burgueses e proletários



2. Um flashback vertiginoso

Marx disse que “a sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado”. Para sustentar a tese de que o antagonista da burguesia é o proletariado, Marx não recorre ao método “positivista” de acumular evidências de natureza estatística ou observacional. Ele trata de construir um relato em que o conflito surja como resultado da gênese dos próprios antagonistas, a começar da burguesia:


Dos servos da Idade Média nasceram os moradores dos primeiros burgos; desta população municipal saíram os primeiros elementos da burguesia.

A descoberta da América, a circunavegação da África abriram um novo campo de ação à burguesia emergente. Os mercados das Índias Orientais e da China, a colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e das mercadorias em geral imprimiram ao comércio, à indústria e à navegação um impulso desconhecido até então; e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição.

A organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a corporações fechadas, já não satisfazia as necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina.

Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais, a procura por mercadorias continuava a aumentar. A própria manufatura tornou-se insuficiente; então, o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses modernos.

A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou enormemente o desenvolvimento do comércio, da navegação, dos meios de comunicação. Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a expansão da indústria; e à medida que a indústria, o comércio, a navegação, as vias férreas se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e colocando num segundo plano todas as classes legadas pela Idade Média.

Vemos, pois, que a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de transformações no modo de produção e de circulação.

Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia foi acompanhada de um processo político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada e autônoma na comuna, aqui república urbana independente, ali terceiro estado tributário da monarquia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta, base principal das grandes monarquias, a burguesia, com o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.



Num flashback vertiginoso, Marx narra todo o desenvolvimento da burguesia desde suas humildes origens feudais até o Estado industrial moderno. Algumas das melhores qualidades de Marx como escritor estão presentes nesse texto antológico: o dom da fórmula que apreende um conjunto complexo de relações; a lógica implacável que conduz a conclusões fulminantes e, por vezes, sarcásticas. Porém, Marx também introduz abruptamente vários conceitos que simplesmente caíam como raios de um céu azul para os leitores não familiarizados com a Economia Política inglesa: mercado, mercadoria, divisão do trabalho, grande indústria moderna, mercado mundial, capital, modos de produção.

É tentador para o marxista que lê o Manifesto, aceitar como evidentes esses conceitos à luz do desenvolvimento que Marx lhes deu em O Capital. Essa leitura retrospectiva dá ao leitor um sentimento de familiaridade próprio de quem reconhece o terreno por onde caminha (afinal estamos diante do relato canônico da “ascensão da burguesia” na Idade Moderna). Mas, com isso, é a estranheza do texto que deixa de ser conhecida e reconhecida.

Em primeiro lugar, é bastante estranho que o relato do desenvolvimento da burguesia não faça alusão à luta de classes.  Tudo se passa como se a burguesia tivesse se tornado aquilo que é apenas por causa da expansão geográfica dos mercados e dos avanços técnicos. A oficina foi substituída pela manufatura, que foi substituída pela grande indústria para satisfazer a demanda crescente por mercadorias na América, na África e na Ásia. No relato de Marx, é a lógica expansionista do mercado que impele a ascensão da burguesia, não a luta de classes.  Daí o caráter curiosamente acumulativo, linear, não dialético, dessa ascensão em que as novas relações de produção substituem aquelas da “sociedade feudal em decomposição”. A burguesia parece dotada de uma dinâmica própria que dissolve todas as relações que a aprisionam. Ela não precisa combater: ela parece ter o poder de infiltrar-se em toda a parte e mudar as regras do jogo em seu favor. Trata-se de uma classe que aparentemente não tem antagonistas à sua altura. 

Do ponto de vista econômico, a ascensão da burguesia foi resultado do progresso técnico e do crescimento mundial da demanda. O caráter conflituoso e classista só reaparece na explicação de Marx quando ele procura mostrar que a ascensão econômica da burguesia foi acompanhada por um processo de ascensão política. No campo politico, a burguesia teve que conquistar posições para deixar de ser classe oprimida do feudalismo, aproximando-se ou afastando-se das monarquias, em antagonismo com a nobreza, até o momento em que a burguesia ganha a soberania no Estado representativo moderno, que é transformado em comitê dos negócios comuns da classe burguesa (tese que os teóricos marxistas e não-marxistas tiveram muitas ocasiões para discutir...)

O que temos, então, no vertiginoso flashback do desenvolvimento da burguesia?

Do ponto de vista econômico, um desdobramento contínuo de capacidade produtiva e dos meios de circulação para atender uma demanda que parece crescer por si mesma; do ponto de vista político, um confronto continuo para eliminar os obstáculos que tolhem a livre expansão da indústria e do comércio. 

Em resumo: automatismo do mercado no plano econômico; negociação e conflito classista no plano político. 

(Que relação haveria entre essas duas instâncias?  Marx é extremamente vago quando diz que “cada etapa da evolução percorrida pela burguesia foi acompanhada de um processo político correspondente”. A política é epifenômeno da economia? Os fenômenos políticos são paralelos aos fenômenos econômicos? Entre os processos econômicos e os processos políticos há tensão e ação recíproca? Velhas questões sem resposta.)

O que deveria incomodar profundamente um marxista que lê o relato da ascensão da burguesia não é apenas o fato de que a luta de classes aparece apenas como conflito político, mas também o fato de que o relato de Marx está calcado no poder explicativo do mercado:

A organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a corporações fechadas, já não satisfazia as necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados.
(...)
Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais, a procura por mercadorias continuava a aumentar. 

Parece que Marx ainda estava sob o poder fetichista da mercadoria e da demanda e, por esta razão, ao invés do desdobramento dos antagonismos internos do mercado e da mercadoria, o que Marx nos oferece é apenas o espetáculo pobre da espiral ascendente do lucro:

A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou enormemente o desenvolvimento do comércio, da navegação, dos meios de comunicação. Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a expansão da indústria; e à medida que a indústria, o comércio, a navegação, as vias férreas se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e colocando num segundo plano todas as classes legadas pela Idade Média.

A menção isolada e quase acidental aos “capitais” que a burguesia multiplicava mostra bem a distância entre esse discurso - que se aproxima tanto das apologias vulgares do mercado - e a crítica da economia política que Marx vai desenvolver nas duas décadas seguintes ao fracasso revolucionário de 1848.

Nem dialética, nem “positivista”, a abordagem de Marx parece apoiar-se sobre um imaginário social preexistente, mais do que sobre um exame da realidade social. Parece que o manifesto que deveria se contrapor ao espectro do comunismo, cria outros espectros: o do mercado, a da demanda crescente, o da burguesia que, como um fantasma, avança sem resistência por qualquer parte.

Então seria verdade que a burguesia, tal como descrita no Manifesto, é um personagem fantástico? Um sintoma de que Marx não chegou a uma compreensão completa e não fetichizada do processo social?  

Assunto para o próximo capítulo deste folhetim.