sexta-feira, 31 de maio de 2013

A claraboia e o holofote #6







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



Excurso n.1 –


Sutilíssimo leitor,

Queira me acompanhar neste exercício de pensamento. Comece pela colagem que fiz de citações do preâmbulo e da primeira seção do Manifesto do Partido Comunista.

Um espectro ronda a Europa. Tudo o que é sólido desmancha no ar. Populações brotando da terra como por encanto. A sociedade burguesa assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.

Em seguida, considere alguns textos que propõem elementos, a meu ver preciosos, para uma teoria dos personagens fantásticos:



a. Tzvetan Todorov, “A Narrativa Fantástica” in As Estruturas da Narrativa

Passemos à função literária do sobrenatural. Existe uma coincidência curiosa entre os autores que cultivam o sobrenatural e os que, na obra, se preocupam particularmente com o desenvolvimento da ação: são os mesmos. Os contos de fada nos dão a forma primeira, e também a mais estável, da narrativa.

(...)

Toda narrativa é movimento entre dois equilíbrios semelhantes, mas não idênticos. No começo da narrativa, haverá sempre uma situação estável, as personagens formando uma configuração que pode ser móvel, mas que conserva entretanto intatos certo número de traços fundamentais. Digamos, por exemplo, que uma criança vive no seio de uma família; ela participa de uma micro-sociedade que tem suas próprias leis. Em seguida, sobrevém algo que rompe a calma, que introduz um desequilíbrio (ou, se quiser, um equilíbrio negativo); assim, a criança deixa, por uma razão ou por outra, sua casa. No fim da história, depois de ter superado muitos obstáculos, a criança, crescida, reintegrará sua casa paterna. O equilíbrio é então restabelecido, mas não e o mesmo do começo: a criança não é mais criança, é um adulto entre outros. A narrativa elementar comporta dois tipos de episódio: os que descrevem um estado de equilíbrio ou de desequilíbrio e os que descrevem a passagem de um ao outro. Os primeiros se opõem aos segundos como o estático ao dinâmico, como a estabilidade à modificação, como o adjetivo ao verbo. Toda narrativa comporta esse esquema fundamental, se bem que seja frequentemente difícil reconhecê-lo: podemos suprimir seu começo ou sem fim, intercalar digressões, outras narrativas etc.

(...)

Os acontecimentos sobrenaturais intervém para romper o desequilíbrio mediano e provocar a longa demanda do seguindo equilíbrio. O sobrenatural aparece na série de episódios que descrevem a passagem de um estado a outro. Com efeito, o que poderia transformar a situação estável do começo, que os esforços de todos os participantes tendem a consolidar, senão precisamente um acontecimento exterior, não só à situação, mas ao próprio mundo natural?

Uma lei fixa, uma regra estabelecida: eis o que imobiliza a narrativa. Mas, para que a transgressão da lei provoque uma modificação rápida, é preciso que forças sobrenaturais intervenham; senão a narrativa corre o risco de se arrastar, esperando que um justiceiro humano perceba a ruptura do equilíbrio inicial. O elemento maravilhoso é a matéria que melhor preenche essa função precisa: trazer uma modificação da situação precedente, romper o equilíbrio (ou o desequilíbrio). Ao mesmo tempo, é preciso dizer que essa modificação pode produzir-se por outros meios, se bem que esses sejam menos eficazes. 




b. André Jolles, “O Conto” in Formas Simples

A ideia de que tudo deva passar-se no universo de acordo com nossa expectativa é fundamental, em nossa opinião, para a forma do conto da carochinha (Märchen); ela é a disposição mental específica do conto. Perrault via muito bem, como tantos outros, que se trata de uma disposição moral, mas não no sentido de uma ética filosófica. Se pensarmos com Kant que a ética responde à pergunta “Que devo fazer?” e que o nosso julgamento ético inclui, portanto, uma determinação axiológica dos atos humanos, o conto não tem lugar aí. Mas  podemos admitir que, para além dessa ética, existe uma outra que responde à pergunta: “Como devem as coisas acontecer no universo?” e existe um juízo axiológico, orientado para o acontecimento e não para o ajuste de contas [o cumprimento do dever individual]; e verifica-se ser este o julgamento ético que a linguagem inculca na forma do conto da carochinha.

Ao invés da ética filosófica, que é uma ética da ação, chamarei a esta a ética do acontecimento ou moral ingênua (...) O nosso julgamento da ética ingênua é de ordem afetiva; não é estético, dado que nos fala categoricamente; não é de ordem utilitarista nem hedonista, porquanto seu critério não é o útil nem o agradável; é exterior à religião, visto não ser dogmático nem depender de guia divino, é um julgamento puramente ético, quer dizer absoluto. Se partirmos desse julgamento para determinar a forma do conto, podemos dizer que existe no conto da carochinha um forma em que o acontecimento e o curso das coisas obedecem a uma ordem tal que satisfazem completamente as exigências da moral ingênua e que, portanto, serão “bons” e “justos” segundo nosso juízo sentimental absoluto.

Nesse aspecto, o conto da carochinha opõe-se radicalmente ao acontecimento real como é observado de hábito no universo. É muito raro que o curso das coisas satisfaça às exigências da moral ingênua, é muito raro que seja “justo”; logo, o conto da carochinha se opõe ao universo da “realidade” (...) Pode-se dizer que a disposição mental do conto da carochinha exerce aí a sua ação em dois sentidos: por uma parte, toma e compreende o universo como uma realidade que ela recusa e que não corresponde à sua ética do acontecimento; por outra parte, propõe e adota um outro universo que satisfaz a todas as exigências da moral ingênua.

(...)

Sevícias, desprezo, pecado, arbitrariedades, todas estas coisas só aparecem no conto da carochinha para que possam ser, pouco a pouco, definitivamente eliminadas e para que haja um desfecho em concordância com a moral ingênua. Todas as mocinhas pobres acabam por casar com o príncipe que devem desposar, todos os jovens pobres tem a sua princesa; e a morte, que significa, em certo sentido, o auge da imoralidade ingênua, é abolida no conto. Essa construção interna do conto é que suscitará a satisfação de que falamos há pouco: ao ingressar-se no universo do conto da carochinha, aniquila-se o universo de uma realidade tida por imoral.




c. Slavoj Zizek, Um mapa da ideologia, Introdução: O espectro da ideologia

E talvez seja aí que devamos buscar o último recurso da ideologia, o cerne pré-ideológico, a matriz formal em que são enxertadas as várias formações ideológicas: no fato de que não existe realidade sem o espectro, de que o círculo da realidade só pode ser fechado mediante um estranho suplemento espectral. Mas, por que não existe realidade sem o espectro? Lacan fornece uma resposta precisa a esta pergunta: o que vivenciamos como realidade não é a “própria coisa”, é sempre já simbolizado, constituído e estruturado por mecanismos simbólicos – e o problema reside no fato de que a simbolização, em última instância, sempre fracassa, jamais consegue “abarcar” inteiramente o real, sempre implica uma dívida simbólica não quitada, não redimida. Esse real (a parte da realidade que permanece não simbolizada) retorna sempre sob a forma de aparições espectrais. (...)

Portanto, o cerne pré-ideológico da ideologia consiste na aparição espectral que preenche o buraco do real. É isso que todas as tentativas de traçar uma linha separatória entre a “verdadeira” realidade e a ilusão (ou de fundamentar a ilusão da realidade) deixam de levar em conta: para que emerja (o que vivenciamos como) a “realidade”, algo tem que ser foracluído dela – em outras palavras, a “realidade”, tal como a verdade, nunca é, por definição, “toda”. O que o espectro oculta não é a realidade, mas seu “recalcamento primário”, o X irrepresentável em cujo “recalcamento” fundamenta-se a própria realidade. 


********

Sapientíssimo leitor,

No preâmbulo do Manifesto, declara-se que era tempo de os comunistas exporem seu modo de ver na forma de um manifesto, que se opusesse ao conto da carochinha do fantasma do comunismo. Ocorre que, na sua primeira seção, o Manifesto tem a forma de um relato da constituição da sociedade burguesa moderna e da sua oposição irreconciliável com o proletariado (que ainda iremos analisar nos próximos capítulos deste folhetim filosófico). O relato de Marx, embora apele para as realizações da burguesia que podiam ser admiradas na primeira metade do século XIX, é curiosamente genérico e impreciso historicamente. É verdade que o jovem Marx não pode ser culpado disso: o assunto era novo e a historiografia social só iria dar grandes passos mais tarde, por influência de Marx e das grandes teorias sociológicas do final do século. Mas, exatamente por causa dessa insuficiência do jovem Marx, a burguesia aparece menos como classe social do que como personagem dotada de poderes demiúrgicos. Talvez seja o caso de pensar que:

1.  A lógica do relato da primeira seção do Manifesto não é outra senão a lógica da narração fantástica, em que o movimento entre os dois equilíbrios (o mundo relativamente imóvel da antiguidade e do feudalismo e o mundo da sociedade emancipada sem classes) resulta da intervenção de uma potência fantástica, que subverte todas as regra de maneira súbita e brutal: a burguesia.

2.  Contra o conto da carochinha do fantasma do comunismo, Marx está opondo o conto da carochinha da burguesia, em que a classe social é transformada num personagem decalcado na figura do Fausto, de Goethe (conforme Marshall Berman analisou muito bem). Todavia, num nível mais profundo, uma vez que a burguesia não pode ser redimida como acontece no final de Fausto, o impulso fáustico da burguesia a levará para um confronto com o proletariado, em que ela será irremediavelmente vencida. Existe aí alguma lógica histórico-dialética aí?  Ou existe apenas a exigência de um desfecho que satisfaça a ética do acontecimento da moral ingênua, característica dos contos da carochinha?

No começo da primeira seção do Manifesto, Marx disse que a luta de classes “terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito”. A possibilidade de aniquilação recíproca das duas classes antagônicas é mencionada só para ser esconjurada pela certeza da vitória do proletariado no final da primeira seção. Tal certeza parece resultar da confiança de Marx num esquema narrativo que se apoia na intervenção de poderes fantásticos e não numa análise da conjuntura de forças da época (como as que ele fará, na década de 1850, em obras como o 18 Brumário).

3.  Zizek fala de um suplemento espectral da realidade, que surge porque há um excedente do real que jamais é simbolizado e - por causa do retorno do que é recalcado - reaparece na forma de espectro.  É verdade que Zizek se refere à simbolização “primária” que constitui a realidade vivida. No entanto, seria o caso de pensarmos que esses espectros aparecem também nas tentativas (sempre incompletas, sempre insuficientes) de constituir uma práxis social transparente e de compreender plenamente a práxis. O que seria o próprio conteúdo da oitava tese contra Feuerbach, que conduz minha leitura: 

Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que induzem às doutrinas do misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e no compreender dessa práxis.

Portanto, podemos sempre esperar que os espectros e todo o cortejo de personagens fantásticos, demônios e poderes místicos (ou mistificadores) apareçam como suplemento fantasmático das interpretações do mundo social, todas elas sempre insuficientes e corroídas por contradições internas jamais explicitadas (das quais um exemplo é precisamente a presença das duas metáforas opostas para a História no Manifesto: a história como palco e a histórica como motor).

Tais contradições não são dialéticas, uma vez que não dinamizam a apreensão do processo real. Elas são apenas feridas internas que fazem claudicar todo esquema teórico.



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