domingo, 19 de maio de 2013

A claraboia e o holofote #5






Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



Seção I - Burgueses e Proletários


3.  Um personagem célebre


Marx viu o movimento histórico moderno como obra da burguesia, que criou o mercado mundial e a grande indústria. No entanto, esse movimento aparece desligado da luta de classes - que supostamente seria a própria forma da História, de acordo com a proposição inicial do Manifesto. A burguesia surge como o único agente de transformação do mundo moderno. Seus poderes demiúrgicos são colocados em evidência nesta que é, do ponto de vista estilístico, uma das mais belas páginas escritas por Marx:


A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário.


Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus “superiores naturais”, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do “pagamento à vista”.  Afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas duramente, por uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio.  Em uma palavra, em lugar da exploração dissimulada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, direta, despudorada e brutal.


A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então respeitadas como dignas e encaradas com piedoso respeito. Fez do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio seus servidores assalariados.


A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-a a meras relações monetárias.


A burguesia revelou como a brutal manifestação de força na Idade Média, tão admirada pela reação, encontra seu complemento natural na ociosidade mais completa. Foi a primeira a provar o que a atividade humana pode realizar: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas: conduziu expedições que empanaram mesmo as antigas invasões e as Cruzadas.


A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que é sólido e estável desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens. 




I


O poder poético e retórico dessa passagem é tão evidente que cabe perguntar se ainda restou nela algum espaço para análise social, ou se Marx, imantado pelas próprias palavras, simplesmente não retomou temas provenientes de um imaginário social (e artístico) preexistente para elaborar um personagem mítico: a burguesia como demiurgo da modernidade, decalcada no célebre personagem de Goethe, tal como ele aparece na segunda parte do Fausto (1832):


Nunca dizer ao instante que passa: para, és belo! Única palavra de ordem: para a frente, para além das tumbas! O paradoxo ao mesmo tempo angustiante e exaltante da modernidade inaugurada por Fausto – é que o desejo ali, sempre mais forte que o prazer e a sensualidade experimentada com ardor, deve no entanto ceder lugar ao ardor do devir. Aceleração na fuga para a frente. 

(Pierre Chartier, “Os Avatares de Fausto” em O Olhar de Orfeu: os mitos literários do Ocidente, organizado por Bernadette Bricout)

[No final do filme dirigido por Alexander Sokurov (Faust, 2011), Mefistófeles pergunta para onde Fausto vai. O protagonista, avançando através de uma paisagem árida e vulcânica, responde: Dahin! Weiter! Immer weiter!]


O movimento histórico da burguesia, tal como descrito no Manifesto, também é uma fuga para frente. A burguesia subverte todas as relações que Marx supunha herdadas do mundo feudal: o patriarcalismo, os privilégios dos “superiores naturais”, a exaltação religiosa e o entusiasmo cavalheiresco, a dignidade reverenciada de certas profissões, o sentimentalismo. Mas, ao mesmo tempo, a burguesia teria mergulhado a sociedade no egoísmo, no interesse e no cálculo frio, na exploração aberta. 


O papel da burguesia como personagem é dissolver o que parecia estável e profanar o que era sagrado.  Ela não deixa nada durar muito tempo. Na sua condição fáustica, a burguesia é movida por um impulso de transformação, que causa abalos, crises, insegurança e incerteza.  




II


A burguesia que Marx descreve não é uma classe social; ela parece ser apenas a forma personificada de uma força em pleno desdobramento. Como veremos num trecho posterior, essa força é o capital (Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital...). No entanto, essa identificação é feita de maneira quase casual e permanece sem consequências no texto.


No Manifesto, Marx recorre frequentemente a personificações e personagens. A própria ideia de que a História se desenrola como luta de classes exige personagens que representem os opressores e oprimidos. Do ponto de vista da propaganda e da mobilização política, as personificações tem suas vantagens. Como se sabe, é mais fácil organizar os trabalhadores contra os patrões do que conclamar uma união contra a força invasiva do capital e da forma-mercadoria... 


É possível que o gosto por personagens e personificações seja resultado do papel que a literatura teve na formação do pensamento social de Marx. Os numerosos comentários sobre passagens de Shakespeare e de Goethe nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844 demonstram bem a atenção dada à maneira como os processos sociais e econômicos são apreendidos pelos grandes escritores.


O recurso às personificações e às personagens está ligado também a uma certa maneira de conceber a História, que pode ser resumida na metáfora da História-palco, em que a ação é performada por personagens-agentes. Quem adere à metáfora do palco, tende a ressaltar a ação dos sujeitos segundo enredos previamente definidos. Além da falácia teleológica,  essa concepção abre espaço para a suspeita de que há agentes escondidos nos bastidores, manipulando o que vemos no proscênio. Daí que a metáfora do palco sirva de base tanto para as interpretações personalistas e finalistas da História, quando para as teorias conspiratórias.


[No Manifesto, além da metáfora da História-palco, encontramos também a metáfora da História-motor (a roda da História), em que o movimento é produzido por forças em conflito.  Os que preferem a metáfora do motor, dão ênfase ao aspecto impessoal das forças históricas. Isso pode alimentar a ilusão naturalista de que o processo histórico tem regularidades semelhantes às da Natureza e, portanto, pode ser predito. Ou, ainda mais grave, a metáfora da História-motor pode levar a um determinismo absoluto, segundo o qual  há "leis de ferro" que governam o processo, anulando a própria ideia de intervenção ou de agência subjetiva.


O fato de que as duas metáforas ocorram no texto do Manifesto é sintoma das incertezas profundas de Marx quanto à teoria da História]



Marx descreve explicitamente a burguesia como personagem no palco da História: A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário.

Na tradição do romance do século XIX, Marx traça um breve estudo de caráter dessa personagem amoral e brutal. Como uma força implacável da natureza, ela parece ter o poder irresistível de dissolver tudo o que se opõe a seus interesses.  Sem dilemas, nem ambiguidades, ela destrói as ilusões e domina sem rodeios. No entanto, a destruição das ilusões é esclarecimento; a dominação sem dissimulação é o fim da mistificação; a transformação dos meios de produção aumenta a produtividade. Em sua revolução permanente, a burguesia é portadora de esclarecimento,  transparência e eficiência.


O que Marx nos mostra tem pouco a ver com algum processo histórico definido em termos cronológicos ou geográficos. Trata-se muito mais da descrição do estado de espírito ou do vórtice de dissolução causados pela presença da personagem.


De maneira curiosa, Marx parece estar fascinado por ela. Mesmo condenando moralmente sua frieza, sua falta de escrúpulos, seu despudor e a sua brutalidade, ele demonstra uma autêntica volúpia retórica na enumeração das relações sociais dissolvidas pela burguesia. É fácil ver o seu regozijo niilista com a destruição dos véus, das auréolas, dos laços e dos sentimentalismos, tanto quanto com a liberação das forças do trabalho social numa escala sem precedentes. Marx se orgulha da  rapidez espantosa com que a burguesia teria criado a sociedade urbana, europeia e industrialista, calcada no trabalho social organizado: enfim, o mundo moderno. E tudo isso apenas para satisfazer a demanda crescente por mercadorias, segundo a explicação naïve dada nos parágrafos antecedentes do Manifesto (parece que o próprio Marx estava encantado pela multiplicação das mercadorias que se amontoavam numa riqueza sem igual).


A força cega da burguesia leva a uma sociedade em que as relações são, finalmente, transparentes (os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens). A sociedade burguesa seria a primeira a prescindir de dissimulações. A burguesia do Manifesto Comunista dispensaria até a  ideologia... 


Será isso um surpreendente twist dialético ou a consequência de um grave erro de análise?



III

Marshall Berman, que intitulou sua obra mais famosa a partir do trecho em questão do Manifesto, argumentava que Marx (seguindo a trilha aberta pela “tragédia do desenvolvimento” do Fausto) descrevera, antes de Dostoievsky, de Nietzsche e de Rimbaud, o advento da modernidade niilista, cujo poder de desilusão caminha pari passu com o poder de destruição, de modo que “tudo o que é sólido desmancha no ar”:


All the anarchic, measureless, explosive drives that a later generation will baptize by the name of "nihilism" - drives that Nietzsche and his followers will ascribe to such cosmic traumas as the Death of God - are located by Marx in the seemingly banal everyday working of the market economy. He unveils the modern bourgeois as consummate nihilists on a far vaster scale than modern intellectual can conceive. 

(Marshall Berman, All that is solid melts into air, capítulo 2, seção 2)

Marshall Berman não se interessa pelo ativista político dotado de verve retórica que escreveu o Manifesto para mobilizar os trabalhadores num momento de esperanças revolucionárias em alta, nem pelo homem de ciência que propôs conceitos para analisar o processo de mudança histórica e social.  Na visão de Berman, Marx é um artista que tem insights sobre a natureza inquietante e dissolvente da sociedade burguesa. 


Acredito que Berman esteja certo em vários pontos. O trecho do Manifesto descreve uma burguesia que, à maneira de Fausto, é movida para frente por um impulso cego, por uma vontade de potência niilista. Concordo também que a descrição ambivalente dos feitos da burguesia se aproxima das visões elaboradas por vários artistas e pensadores do século XIX e do começo do século XX.   Todavia, parece-me que essa aproximação com a tradição que Berman denomina “modernista” se dá exatamente porque o Manifesto não conseguiu superar o imaginário social mistificado que também serviu de base para os artistas e pensadores modernistas (vários deles, como Baudelaire e Nietzsche, herdeiros de visões conservadores e até reacionários do mundo social). Se o Manifesto tem pontos em comum com as visões dos “modernistas” talvez isso constitua um problema e não uma vantagem.  Ler Marx à luz da modernidade artística, como defende Berman, talvez só sirva para encobrir com um véu estetizante certos erros de avaliação que estão na raiz do pensamento de Marx e do modernismo.


No próximo capítulo do meu folhetim, vou tentar mostrar que a burguesia revolucionária, iluminista, sacrílega e que domina sem dissimulação é um personagem fantástico, da mesma estirpe que outros célebres personagens como o Horla ou Cthulhu. 



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