domingo, 2 de junho de 2013

A claraboia e o holofote #7





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Excurso n.2 -

A burguesia do Manifesto é um personagem fantástico de conto da carochinha. Como tal, seu papel é instaurar o movimento que transforma o equilíbrio inicial e conduz ao equilíbrio final da narrativa.  Ela suprime o velho equilíbrio do mundo antigo e feudal, relativamente moroso e estável, em direção ao novo equilíbrio da sociedade sem classes. No entanto, ela mesma não pode ser um fator de equilíbrio, mas apenas de movimento. Sua lei é a suprema liberdade de ação e a mobilidade infinita: essa liberdade é um universal abstrato perpetuamente reivindicado pela burguesia, mas que só pode ser efetivado na forma de livre comércio, já que o único nexo que a burguesia conhece é o monetário, ao qual ela reduz todos os demais. O dinheiro é a aparência concreta dessa liberdade abstrata. Liberdade burguesa significa, em última instância, a liberdade de tudo comprar, uma vez que todas as coisas e todos os seres encontram sua equivalência no dinheiro. Somente quando tudo é equivalente (ao dinheiro) e nada é sagrado, é possível extrair as forças latentes do trabalho social e ordená-las segundo configurações que jamais tinham sido imaginadas por aqueles que ainda estavam presos pelos laços do sentimentalismo, do patriarcalismo e dos preconceitos religiosos. Mas essas configurações são sempre provisórias: eis aí o caráter fáustico da burguesia, motor imóvel que dinamiza a história moderna, mas que permanece inexplicado ao longo do Manifesto:

A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais.
(...)
A burguesia, em seu domínio de classe de apenas um século, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais do que todas as gerações passadas em seu conjunto. A subjugação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química na indústria e na agricultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo elétrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização de rios, populações inteiras brotando da terra como por encanto – que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?

No Manifesto Comunista, a função narrativa da burguesia como personagem fantástico é  acelerar esse processo (A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário) a tal ponto que ela é engolida pelo turbilhão que ela mesmo gerou:

A sociedade burguesa, com suas relações de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou.

Isso abrirá caminho para a classe que enterrará a burguesia e abolirá a própria divisão das classes sociais. 


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Afirmar que a burguesia do Manifesto Comunista é um personagem fantástico não é o mesmo que dizer que a análise de Marx é uma fraude intelectual. O fantástico - como categoria literária - não é verdadeiro nem falso, exatamente porque se coloca para além dessa dicotomia:

Assim se explica a impressão que deixa a literatura fantástica: por um lado, ela representa a quintessência da literatura, na medida em que o questionamento do limite entre real e irreal, próprio de toda literatura, é seu centro explícito. 
(Tzvetan Todorov, “A Narrativa Fantástica” in As Estruturas Narrativas)

O personagem fantástico tem o poder de romper com o equilíbrio enrijecido que se manifesta como autoevidência do real.  Ao violar a realidade estabelecida e destruir sua autoevidência,  introduz a perigo, a ameaça, a subversão, a transformação. Ele é a negatividade plasmada na forma de um agente perturbador, ou seja, é a própria figura do negativo. Como mostrei na minha série de ensaios sobre as figuras do negativo, o Horla, Cthulhu e Bartleby rompem a tranquilidade burguesa complacente dos narradores, expondo a margem do abismo junto da qual os narradores caminhavam em seu sonambulismo.

A estrutura básica de toda narrativa fantástica, que é o conto da carochinha, promete um  novo equilíbrio que, em si mesmo, é fantástico, mas revela – como negativo da figura – as insuficiências do mundo vivido (por isso, a moral ingênua do conto da carochinha se opõe ao trágico da realidade). Isso é reconhecido pelo próprio Marx, falando dos socialistas e comunistas crítico-utópicos:

Essa descrição fantástica da sociedade futura, feita numa época em que o proletariado ainda pouco desenvolvido encara sua própria posição de um modo fantástico, corresponde às primeiras aspirações instintivas dos operários a uma completa transformação da sociedade.
Mas as obras socialistas e comunistas também encerram elementos críticos. Atacam todas as bases da sociedade existente. Por isso forneceram em seu tempo materiais de grande valor para esclarecer os operários. Suas proposições positivas sobre a sociedade futura, tais como a supressão do contraste entre a cidade e o campo, a abolição da família, do lucro privado e do trabalho assalariado, a proclamação da harmonia social e a transformação do Estado em simples administrador da produção – todas essas propostas apenas exprimem o desaparecimento do antagonismo entre as classes, antagonismo que mal começava e que esses autores somente conheceram em suas formas imprecisas. Assim, essas proposições tem ainda um sentido puramente utópico.
(Manifesto do Partido Comunista, seção – Literatura socialista e comunista)



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O preço que os marxistas não estão dispostos a pagar é o reconhecimento de que certas obras de Marx, entre as quais o Manifesto do Partido Comunista, não representam uma conquista da ciência materialista da História, mas sim exercícios de literatura fantástica, de imenso poder crítico.

Tenho a impressão de que muitas leituras ruins do Manifesto resultam da desconsideração da estrutura narrativa da primeira seção da obra. Esses equívocos podem ser, grosso modo, associadas a três posições de leitura, que ignoram ou recusam o caráter crítico-fantástico de certas construções de Marx:

a. Literal-cientificismo 

Trata-se da posição dos leitores que exigem que os textos de Marx sejam portadores literais da cientificidade reivindicada pelo autor.  Esses leitores se dividem entre os que consideram que as obras de Marx, em todo ou em parte, estão desatualizadas e oferecem pouca contribuição científica para a análise social hoje, ou aqueles que afirmam um valor de atualidade permanente para Marx. São os marxistas que gostariam de dizer que Marx é eterno, mas tem vergonha de dar bandeira de que são apenas uns crentes...

No conjunto da obra de Marx, o 18 Brumário de Luis Bonaparte ocupa um lugar especial, juntamente com O Capital e o Manifesto do Partido Comunista, este escrito em colaboração com Friedrich Engels. Nessas três obras encontram-se as contribuições fundamentais do marxismo, particularmente quanto à interpretação do capitalismo. Além disso, aí a dialética acha-se aplicada em seus desenvolvimentos mais originais. É nelas que a dialética marxista se revela em suas acepções realmente importantes, isto é, com teoria do conhecimento e como modo de ser do real.
(Octavio Ianni, Apresentação a 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, Paz e Terra)


b. Positivismo das lutas sociais

É a posição dos leitores interessados em extrair elementos críticos que possam orientar as atuais lutas por transformações sociais. Para esses marxistas, o processo social é movido não pela luta de classes (que responde por uma clivagem social profunda), mas sim pelas lutas de classe, entendidas como queda de braço entre as reivindicações dos oprimidos e as exigências das forças da ordem e do capital. Para eles, a dialética se reduz às trocas de porradas entre operário e proprietário. Cada vitória dos oprimidos instaura uma conquista social, que deve ser mantida contra os perigos de revanche dos opressores. Para esse tipo de marxista, as contradições internas só existem nos opressores, não nos oprimidos. Tal posição é positivista porque o processo histórico é interpretado como enumeração de fatos que se sucedem, por exemplo, os resultados das greves e das mobilizações sindicais em termos de conquistas ou retrocessos. A História é reduzida à emancipação da classe operária, que por sua vez é reduzida ao body count dos que caíram nas lutas passadas, para que seus corpos servissem de alicerce às conquistas gloriosas da legislação trabalhista.

Um exemplo desse tipo de positivismo das lutas sociais é a posição do sociólogo norte-americano James Petras 

Com o recuo da organização, da consciência de classe e o desaparecimento do espectro do comunismo, o capital voltou à sua “maneira normal” de maximizar a exploração e o lucro.
(James Petras, O Manifesto Comunistas: qual sua relevância hoje? In Manifesto Comunista, org. Osvaldo Coggiola, Boitempo, 1998):

Petras considera que o espectro do comunismo é um fato positivo, cujo desaparecimento minou as conquistas sociais que deram forma ao Estado de Bem-Estar, forma provisória e relativamente benigna de capitalismo, que agora pôde retornar ao seu curso normal e maléfico. Que Petras considere que o espectro do comunismo fosse uma força efetiva e favorável aos trabalhadores na luta de classes é sinal de uma leitura bastante equivocada do Manifesto, o qual se opõe, como vimos “ao conto da carochinha do fantasma do comunismo”. Mas, na visão de Petras, esse fantasma pesava efetivamente na balança da luta de classes.  

Petras parece aceitar aquela análise tradicional de que muitas conquistas da classe operária resultaram do medo de uma revolução comunista por parte das potências ocidentais, medo que colocava as organizações trabalhadores numa posição de força nas negociações com o patronato. No entanto, seria o caso também de lembrar que o medo de uma revolução comunista foi o motivo alegado para muitos movimentos de repressão das reivindicações sociais e políticas dos trabalhadores. O fantasma do comunismo justificou muita violência contra a classe trabalhadora, mas isso não impede que Petras sinta nostalgia do espectro.

É com essa perspectiva que Petras critica a primeira seção do Manifesto. Em linhas gerais, seu argumento é: se a descrição de Marx é correta, a burguesia é revolucionária e moldou o mundo à sua imagem e semelhança. Todavia, os burgueses são contra-revolucionários e o mundo de hoje não parece com a burguesia, porque há cada vez mais miséria e precarização do trabalho. Logo, a descrição de Marx é factualmente errônea e, além do mais enganosa. Um marxista interessado na vitória dos oprimidos nas lutas sociais não pode se guiar pelas análises do Manifesto:

A ruptura profunda entre a análise de Marx e Engels da expansão capitalista e os efeitos políticos e sociais dela é de vital importância para o momento atual. Os processos econômicos que eles discutem estão apresentando efeitos opostos: reação aguda, atomização do trabalho, estímulo à guerra étnica e corrosão de vastas faixas de produção econômica de toda a América Latina, da África, da ex-URSS e de outros países.
(...)

Assim, a centralidade da “tradição”, da cultura e da comunidade na definição da formação da consciência de classe é muito anterior à celebração ampla e acrítica de Marx e Engels do potencial revolucionário do desenvolvimento das forças produtivas. (...)
A globalização burguesa não criou um “mundo à imagem e semelhança da burguesia”, como os autores argumentaram. 

(...) Ao contrário do que era para Marx e Engels, hoje os capitalistas não “arregimentam os homens que manejarão as armas” que desferirão o golpe mortal ao capitalismo. Eles criam milhões de trabalhadores temporários, instáveis, amedrontados, amarrados ao nexo monetário. Para tornar-se um marxista no sentido de perceber os objetivos do Manifesto, deve-se transcender as falsas afirmações de Marx e Engels sobre o “papel revolucionário” da burguesia. 


c. Culturalismo

Em All that is solid melts into air, Marshall Berman considera que a descrição da burguesia no Manifesto Comunista é a chave para uma compreensão marxista da modernidade cultural marcada pelo niilismo:

Thus, any imaginable mode of human conduct becomes morally permissible the moment it becomes economically possible, becomes "valuable"; anything goes if it pays. This is what modern nihilism is all about. Dostoevsky, Nietzsche and their twentieth-century successors will ascribe this predicament to science, rationalism, the death of God. Marx would say that its basis is far more concrete and mundane: it is build into the banal everyday workings of the bourgeois economic order - an order that equates our human value with our market price, no more, no less, and that forces us to expand ourselves in pushing our price up as far as we can make it go.
(Marshall Berman, All that is solid melts into air, capítulo 2 , seção 3)

Não deixa de ser interessante a perspectiva de que o niilismo que preocupava os modernistas é um epifenômeno das relações do capital e, que por trás de toda a baboseira sobre a morte de Deus, o que está em ação são os negócios do JP Morgan. Saber golpear a lengalenga abstrata do idealismo é um dos méritos inesquecíveis de Marx (um exemplo famoso é a fórmula cômico-crítica “liberdade, igualdade e Bentham”).

Todavia, não é essa a interpretação que Marshall Berman vai desenvolver. Ele leva demasiado a sério o niilismo dos modernos e consegue ler no Manifesto a promessa de que a vitória do proletariado libertará o mundo dos horrores do niilismo burguês. 

Finally, our skeptical doubts (…) must lead us to question one of the primary promises in Marx's work; the promise that communism, while upholding and actually deepening the freedoms that capitalism has brought us, will free us from the horrors of bourgeois nihilism. 
(op. cit. cap 2, seção 3)

O niilismo, na visão de Berman, é o horizonte inescapável da humanidade. O advento de uma sociedade comunista, ao invés de suprimir as relações sociais que instauram o mundo niilista burguês, suscitaria talvez formas de niilismo ainda mais deletérias e ilimitadas. 

If bourgeois society is really the maelstrom Marx thinks it is, how can he expect all its currents to flow only one way, toward peaceful harmony and integration? Even if a triumphant communism should someday flow through the floodgates the free trade opens up, who knows what dreadful impulses might flow in along it, or in its wake, or impacted inside? It is easy to imagine how a society committed to the free development of each and all might develop its own distinctive varieties of nihilism. Indeed, a communist nihilism might turn out to be far more explosive and disintegrative than its bourgeois precursors - though also more daring and original - because, while capitalism cuts the infinite possibilities of modern life with the limites of the bottom line, Marx's communism might launch the liberated self into immense unknown space with no limits at all.
(op. cit. cap 2, seção 3)

Talvez seja o caso de dizer que o niilismo de Berman tem propriedades espectrais que já foram bastante exploradas nos ensaios que escrevi sobre as figuras do negativo (ubiquidade da ameaça, indeterminação histórico-geográfica, insuperabilidade do medo). Que Berman tenha encontrado apoio para a sua leitura da modernidade na descrição da burguesia no Manifesto é sinal de que ele também leu como realidade histórica a verdade ficcional do personagem fantástico. 

Ele está realmente com medo de que Cthulhu se levante do fundo do Oceano Pacífico.



Um comentário:

  1. Professor Valdir?
    É você mesmo?
    Um grande abraço!
    Sua ex-aluna, Elisa
    (elisafujita@uol.com.br)

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