Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista
Seção I – Burgueses e Proletários
4. A explosão da granada reconstituída a partir dos estilhaços
O que vemos do capital são os estilhaços, não a própria granada, tampouco a dinâmica da explosão.
Embora o marxismo afirme ter desbravado o continente da História, uma historiografia marxista dificilmente poderia aspirar àquela tranquila pesquisa de arquivo que constitui a rotina dos historiadores profissionais. A ciência da História marxista só pode ser uma arqueologia da modernidade, que reconstitui o processo explosivo/implosivo do capital a partir da interpretação das suas ruínas e de alguns vestígios nos documentos históricos. O capital é um processo, não uma coisa (David Harvey, Condição Pós-Moderna, capítulo 23). Isso torna extremamente complexa a tarefa de rastrear suas formas cambiantes. Apenas as modalidades marxistas vulgares (certamente as mais numerosas), acreditam ver o próprio capital, o capital como coisa, exatamente como certas pessoas veem fantasmas em casas velhas, ou como Hegel via o Espírito do Mundo andando a cavalo em Jena.
Dada a urgência revolucionária de 1848, Marx tinha que recorrer a uma transposição didática para dar conta em poucas páginas de um processo de meio milênio. Tal compressão temporal só poderia ser bem-sucedida se a narração resultante se fixasse na mente dos leitores pela sua própria aparência de naturalidade. Ora, a forma narrativa primordial é a do conto da carochinha, com sua estrutura tripartite: equilíbrio – desequilíbrio – equilíbrio final. O propósito do Manifesto exigia uma comunicação rápida que poderia ser obtida por essa forma simples e arcaica, mas sumamente conhecida e aceita pela sua aparente naturalidade.
Na primeira seção do Manifesto, a história moderna se torna um conto da carochinha em que a burguesia é o personagem que destrói o equilíbrio do mundo feudal e, depois de muitas estripulias, é destruída pelo herói que traz o novo equilíbrio. Porquanto é dotada de poderes imensos para tudo criar e tudo destruir, a burguesia aparece como um personagem fantástico.
Acredito ter mostrado como as páginas iniciais da primeira seção do Manifesto são vagas, imprecisas e até errôneas do ponto de vista do conhecimento histórico. Nada ali poderia servir de método historiográfico. Muitas vezes, as afirmações se atropelam numa precipitação de dissertação estudantil. Todavia, nada disso elimina a forte impressão que causa a narração do turbilhão mundial desencadeado pela burguesia. Marx se esmera literariamente na descrição do desequilíbrio, razão pela qual não chega a ser estranho que Marshall Berman tenha visto em Marx um artista modernista mais do que um analista da modernidade.
Todavia, o esforço literário de Marx e a audácia da sua transposição didática somente tem sentido se colocarem o leitor na trilha do processo tão elusivo do capital. Nos momentos em que isso acontece, o Manifesto ganha uma ondulação dialética que se aproxima da exposição “científica” d’O Capital.
Hoje eu quero comentar uma desses momentos felizes do Manifesto.
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Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo terrestre. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte.
Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela roubou da indústria a sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas – indústrias que já não empregam matérias-primas nacionais, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país mas em todas as partes do mundo. Ao invés das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas demandas, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e de climas os mais diversos. No lugar do antigo isolamento de regiões e nações auto-suficientes, desenvolvem-se um intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se patrimônio comum. A estreiteza e a unilateralidade nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das numerosas literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal.
Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e o constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga à capitulação os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de ruína total, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrangendo-as a abraçar a chamada civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.
A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou os grandes centros urbanos, aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e, com isso, arrancou uma grande parte da população da idiotia da vida rural. Do mesmo modo que subordinou o campo à cidade, os países bárbaros ou semibárbaros aos países civilizados, subordina os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente.
A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A consequência necessária dessas transformações foi a centralização política. Províncias independentes, ligadas apenas por débeis laços federativos, possuindo interesses, leis, governos e tarifas aduaneiras independentes foram reunidas em uma só nação, com um só governo, uma só lei, um só interesse nacional de classe, uma só barreira alfandegária.
A burguesia, em seu domínio de classe de apenas um século, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais do que todas as gerações passadas em seu conjunto. A subjugação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química na indústria e na agricultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo elétrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização de rios, populações inteiras brotando da terra como por encanto – que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?
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A beleza e a concisão do argumento de Marx serão especialmente apreciadas por aqueles que, como eu, submeteram-se à disciplina da ordem das razões no serviço militar de Martial Guéroult e não resistem ao velho hábito de expor o movimento lógico de um texto clássico.
A exposição de Marx, à maneira de uma pequena sonata, organiza-se a partir do desenvolvimento de um tema principal, ao qual se contrapõe um tema secundário numa relação tensa que é solucionada na coda.
(A) Primeiro tema: a burguesia (que doravante chamaremos pelo seu apelativo próprio: o capital) instala-se por toda parte.
- O capital precisa ampliar incessantemente o espaço do mercado (por razões que o Marx de 1848 ainda não era capaz de explicar).
- Essa ampliação se dá pela criação de novas demandas (portanto, de novas mercadorias) e pela conquista de novos territórios fornecedores de matérias-primas e de consumidores.
- As cadeias que ligam a produção ao consumo se tornam cada vez mais longas: consumidores distantes consomem produtos feitos a partir de matérias-primas que provém de muitos lugares do globo.
- Essas cadeias produtivas longas criam sistemas de intercâmbio e de interdependência, no plano material e intelectual.
- As cadeias produtivas curtas e locais são rompidas: as indústrias nacionais são destruídas em toda parte.
- Nenhuma região pode aspirar à autossuficiência. Todos os povos são obrigados a participarem do mercado sob pena de perecerem diante dos canhões (reais e metafóricos) que acompanham as mercadorias de preços baixos.
- O mundo se torna mercado mundial, isto é, o território que em que todos os povos se organizam segundo a lógica do capital (a essência do processo civilizatório eurocêntrico e burguês).
(B) Segundo tema: a expansão do mercado recria novos sistemas hierárquicos.
- O movimento do capital produz concentração de riqueza (Marx ainda não era capaz de dar uma explicação disso na época em que escreveu o Manifesto).
- A concentração de riqueza acarreta aglomeração populacional e centralização do poder (uma vez que o Estado moderno é apenas o comitê executivo da burguesia, segundo a fórmula célebre e muito contestável do próprio Manifesto).
- Na escala local, o campo se submete à cidade. A diversidade e a dispersão regionais, bem como a autossuficiência local, são suprimidas pela configuração do Estado-nação: uma só nação, com um só governo, uma só lei, um só interesse nacional de classe, uma só barreira alfandegária.
- Na escala mundial, o Oriente agrário se submete ao Ocidente industrial. Os povos bárbaros são submetidos aos povos civilizados (ou seja, orientados pela lógica do capital).
(C) Coda: Éloge de Saint-Simon
- O movimento do capital moderniza o planeta, através da aceleração do desenvolvimento tecnológico e científico da indústria.
- Com isso, o movimento do capital revela a força produtiva do trabalho social.
- Através do movimento do capital, o trabalho social emerge como força social (que se colocará em oposição ao capital).
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Não vemos o capital. Ele é um processo, não uma coisa. Podemos, no entanto, rastrear seu movimento pelos seus efeitos. Um deles é a territorialização. O capital se inscreve no tempo histórico e no espaço geográfico. O texto de Marx é uma exposição atilada e sucinta do modo pelo qual o capital delimita seu território na medida em que age sobre ele.
A territorialização do capital resulta de um movimento duplo, combinado e contraditório: de um lado, está a tendência centrífuga de expansão em busca de novos mercados; de outro lado, está a tendência centrípeta de acumulação de riqueza. Ao mesmo tempo que os mercados se expandem, as riquezas de acumulam nas mãos de certos grupos, de certas cidades, de certos países.
Na sua territorialização, o capital busca mercados cada vez maiores, suprimindo a autossuficiência local e deslocando permanentemente suas fronteiras. Mas as riquezas se acumulam e formam centros de poder que definem seus limites em relação a outros centros de poder. O capital suprime as indústrias nacionais, mas cria novas nações.
Do ponto de vista geográfico, há uma solidariedade entre o deslocamento das fronteiras do capital e o estabelecimento de limites entre os Estados-nações. Justamente porque o capital não pode se expandir, sem ao mesmo tempo concentrar riqueza, a própria acumulação impõe barreiras ao fluxo desenfreado do capital. O livre comércio é um ideal impossível de ser realizado porque o movimento do capital recria, atrás de si, novos limites e novos centros administrativos que impõem regras para evitar que o capital acumulado se liquefaça. Cada agente do capital quer livre espaço para suas novas conquistas e exige proteção contra os outros agentes do capital. Por isso, o capital não pode prescindir de Estado.
Da mesma maneira, o movimento do capital instaura, dentro e fora dos Estados-nações, uma oposição entre as regiões centrais (aquelas próximas aos núcleos de poder e de riqueza e, portanto, regulamentadas) e as regiões periféricas (as áreas em que o capital tem livre curso de conquista). Os monumentos de Bruxelas eram indissociáveis da pulsação do coração das trevas no Congo do rei Leopoldo II. Os exemplos recentes são ainda mais numerosos, mas não menos escabrosos, como sabem os bolivianos explorados nas sweatshops de São Paulo ou os operários da Apple chinesa.
O fato é que o capital constrói as capitais (tendência centrípeta) pelo mesmo processo em que que produz as periferias (tendência centrífuga). Nas primeiras, elevam-se os centros administrativos e financeiros: espaços hierárquicos e normativos, para os quais a arquitetura descobre sempre formas renovadas da imponência imperial. Nas bordas do sistema, oficinas imundas, trabalho infantil, condição servil, pobreza e violência cotidiana em quarteirões urbanos degradados ou em espaços ocupados de maneira precária como favelas ou cortiços.
Para cada Brasília, várias candangolândias. Para cada Alphaville, várias omegavilles.
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Meu amigo Murilo,
Que Marx e Engels tenham sido capazes, há mais de 150 anos, de enunciar com tanta clareza e economia verbal um movimento cujos efeitos são tão notórios para nós, que vivemos a globalização neoliberal, é sinal do poder de uma imaginação fantasiosa alimentada pela observação da realidade social e movida por um impulso teórico poderoso que, naquele momento de urgência histórica, só poderia ganhar a forma de conto da carochinha.
Definitivamente é um prazer ler o conto da carochinha do Manifesto Comunista neste momento em que pessoas jovens, como minha filha Beatriz, e adultos cansados, como eu e minha mulher, sentimos que é preciso romper a gaiola das “verdades objetivas” ditas por governantes desorientados, economistas fajutos e jornalistas inescrupulosos e desavergonhados.
A festa de ontem foi boa.
Um grande abraço,
P.S. - A obra que aparece na minha foto é da Ludmila. Chama-se justamente "Gaiola".
Na semana que vem, a continuação do meu folhetim filosófico.
Muito bom. Sei que que não concerne aos objetivos da série sobre o Manifesto, que também me interessou, mas o que mais me chamou a atenção até agora foi a possibilidade de repensar diversos nexos na obra do Marx, bem como rever a relação que normalmente se estabelece - malgrado as polêmicas internas do tipo althusserianos x lukacsianos - entre entre suas "fases". Há algum tempo Meszaros e Ruy Fausto produziram algumas coisas interessantes a respeito, que infelizmente minhas limitações não permitiriam trocar em miúdos aqui se fosse o caso. Para pensar algumas questões também presentes em outros textos (notadamente os que são dirigidos ao Murilo), acho que seria interessante discutir o livro "Time, Labor and Social Domination" de Moishe Postone, eu topo um grupo de discussão mesmo que por e-mail!
ResponderExcluirAbraço,
Neylor
Neylor,
ResponderExcluirFinalmente apareceu!!! Estou muito feliz de encontrá-lo aqui.
Vou ter que recusar o convite para a discussão do livro de Postone. Acho que a tarefa é difícil por três razões: a primeira é o próprio tamanho de Time, Labor and Social Domination; a segunda é a dedicação necessária para examinar O Capital e os Grundrisse a fim de avaliar a pertinência da interpretação de Postone e, se possível desautorizá-la. A terceira razão é que não acredito mais nas tentativas de reconstrução do materialismo histórico. Em geral, elas atualizam a teoria por mais vinte anos e, em seguida, expiram. Como o livro de Postone é do começo dos anos 90, desconfio que agora mesmo algum teórico já lançou ou está prestes a lançar uma novíssima reconstrução do marxismo.
Quanto à divisão das “fases” de Marx, o problema interessava àqueles que, como Lukács e Althusser, queriam elaborar uma doutrina marxista coerente e tinham que dar conta da variedade de posições de Marx ao longo de sua obra. Teríamos o mesmo problema se quiséssemos arrancar uma doutrina da obra de Lukács: ficaríamos com História e Consciência de Classe ou com a Ontologia do Ser Social? E o que fazer com as obras anteriores, muito interessantes, como a Teoria do Romance? Em escala menor, o problema se repete em Althusser.
Eu quero apenas ler os textos de Marx, com tudo o que tem de ultrapassado, de revelador e de brilhante. Esses textos ganham muito quando analisamos a maneira como Marx praticava o alpinismo teórico que, para mim, caracteriza a filosofia: uma prática crítica e inquieta, que quer conquistar a visão da totalidade oferecida pelo topo da montanha, ao mesmo que fica atenta a todas as dificuldades e irregularidades do terreno. Desse ponto de vista, até a análise dos tropeços e desatenções de Marx é altamente educativa para todos nós que só podemos admirar de longe sua tenacidade intelectual.
Um grande abraço,
Valdir