terça-feira, 25 de junho de 2013

A claraboia e o holofote #10





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Seção I – Burgueses e Proletários


5.  A luz fanada do holofote e a resiliência do capital

Uma dos grandes desafios teóricos que Marx enfrentou foi  integrar as análises precisas de processos presentes em esquemas de mudança histórica de longo prazo, cujas regularidades tendenciais permitissem antecipar o desenrolar dos acontecimentos. Muitas vezes, Marx não resistiu à tentação de dirigir um holofote para o futuro: “Mas quando o manto imperial de Napoleão cair finalmente sobre os ombros de Luís Bonaparte, a estátua de bronze de Napoleão ruirá do topo da Coluna Vendôme.” Os leitores de Marx conhecem de cor a passagem final do 18 Brumário e congratulam o autor pela profecia realizada. O problema para nós, herdeiros de Marx, é que a estátua de bronze derrubada em 1871 foi recolocada em 1875 e lá permanece até hoje. É isso que precisa ser explicado. A agudeza dialética na exposição das contradições (uma verdadeira claraboia que ilumina o presente) não parece muito acertada quando se trata da previsão do futuro. Sua ânsia de dar conta da totalidade do processo é, no mais das vezes, apenas uma ambição que esbarra na inelutável parcialidade da experiência histórica. 

No capítulo anterior, vimos um dos momentos felizes do Manifesto. Passo agora a uma das suas passagens mais problemáticas.


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Vimos, portanto, que os meios de produção e de troca, sobre cuja base se ergue a burguesia, foram gerados no seio da sociedade feudal. Numa certa etapa do desenvolvimento desses meios de produção e de troca, as condições em que a sociedade feudal produzia e trocava – a organização feudal da agricultura e da manufatura, em suma, o regime feudal da propriedade – deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno desenvolvimento. Tolhiam a produção em lugar de impulsioná-la. Transformaram-se em outros tantos grilhões quer era preciso despedaçar; e foram despedaçados.

Em seu lugar, surgiu a livre concorrência, com uma organização social e política apropriada, com a supremacia econômica e política da classe burguesa.

Assistimos hoje a um processo semelhante. A sociedade burguesa, com suas relações de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção, contra as relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio.  Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já criadas. Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo, desaba sobre a sociedade – a epidemia da superprodução. A sociedade vê-se subitamente reconduzida a um estado de barbárie momentânea; como se a fome ou uma guerra de extermínio houvessem lhe cortado todos os meios de subsistência; o comércio e a indústria parecem aniquilados. E por quê? Porque a sociedade possui civilização em excesso, meios de subsistência em excesso, indústria em excesso, comércio em excesso. As forças produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações burguesas de propriedade; pelo contrário, tornaram-se poderosas demais para estas condições, passam a ser tolhidas por elas; e assim que se libertam desses entraves, lançam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa. O sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio. E de que maneira consegue a burguesia vencer essas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que leva isso? Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitá-las.

As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia. 

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Depois de haver composto um retrato hiperbólico das relações sociais e econômicas da sociedade dominada pelo capital - um mundo em que nada é sagrado e tudo o que é sólido desmancha no ar -, Marx integra a sua descrição da moderna sociedade burguesa no quadro do desenvolvimento histórico de longo prazo: a sociedade burguesa surge quando o desenvolvimento das forças produtivas, no seio do mundo feudal, rompe os limites impostos pelas relações de propriedade vigentes. 

Disso parece resultar uma regularidade do processo histórico: toda a vez que as forças produtivas atingem seu desenvolvimento pleno, elas passam a ser tolhidas pelas relações de propriedade que promoveram esse desenvolvimento.  

Se há uma contradição interna no sistema de produção e troca, essa contradição se localiza nas relações de propriedade, isto é, nas condições de realização do sistema. As relações de propriedade devem estimular as forças produtivas, mas, ao mesmo tempo, elas as regulam e limitam.  Quanto às forças produtivas, elas podem ser despertadas, estimuladas, multiplicadas, mas jamais são portadoras de contradições fatais.  As forças produtivas são sempre inocentes, como o devir nietzschiano ou a natureza naturante de Spinoza (como notou Toni Negri em A Anomalia Selvagem). Por isso mesmo, trata-se de um dos conceitos marxianos mais vagos e menos estudados.   

Marx alega que o modo de produção dominado pelo capital estimulou o desenvolvimento de forças produtivas tão colossais que elas já não podem mais ser controladas pelas relações de propriedade vigentes e, por isso, tendem a romper essas condições de regulação.  A revolta das forças produtivas contra as relações burguesas de propriedade aparece na forma de crises que destroem uma parte das mercadorias e das forças produtivas, aniquilando momentaneamente o comércio e a indústria. 

Embora discutível no plano da teoria econômica, a metáfora da “epidemia de superprodução” ao menos coloca em evidência que as crises econômicas não resultam da insuficiência das forças produtivas, mas das condições que as regulam, isto é, das relações burguesas de propriedade. Por isso, os meios de que a burguesia dispõe para enfrentar essas crises (destruição das forças produtivas e das mercadorias, conquista de novos mercados e exploração mais intensa dos mercados existentes) não resolvem a contradição entre as forças produtivas e as relações de propriedade. Pelo contrário, as soluções dadas para as “epidemias de superprodução” preparam novas crises e diminuem a capacidade de lidar com elas.

Assim, as forças produtivas que a burguesia suscitou para romper os limites do mundo feudal atingiram tal desenvolvimento que ameaçam romper os limites do mundo burguês. 

Minha questão é: isso é verdade? 



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Digressão sobre os limites do capitalismo

É sabido que Marx e Engels erraram na sua estimativa dos limites do mundo burguês e precipitaram-se na declaração de que os coveiros do capital já estavam a postos. A verdade é que esses coveiros já foram enterrados há muito tempo, enquanto o capital continua sendo o íncubo dos povos.  Isso não quer dizer que o domínio do capital não tenha limites identificáveis. Tais limites são condicionados pela maneira como o capitalismo se apropria da riqueza. O sociólogo alemão Elmar Altvater identificou quatro formas de apropriação capitalista: valorização primária, produção de mais-valia absoluta, produção de mais-valia relativa e neo-imperialismo.

(1) A valorização primária consiste na apropriação de um território com vistas a transformar a natureza ou a força de trabalho em mercadorias num sistema de trocas monetárias. “No decorrer do século XIX, as últimas manchas brancas do mapa-múndi são colonizadas e incluídas nos impérios dominados pelas nações europeias. Mas a expansão no espaço não está concluída quando as áreas continentais são ocupadas e submetidas à valorização primária. São explorados, submetidos à valorização primária e transformados em mercadoria comercial e dinheiro o fundo dos mares, os continentes ártico e antártico, o mundo dos glaciares das cordilheiras, as florestas tropicais úmidas, o espaço ao redor da Terra, os nanoespaços moleculares dos genes. A valorização primária é um processo de transformação de bens (quase sempre públicos, isto é, acessíveis a todos) em mercadorias privadas, um processo duplo de desapropriação e apropriação privada.” (Elmar Altvater, O Fim do Capitalismo como o conhecemos, capítulo 3)

(2) A mais-valia absoluta é apropriada pelo aumento da jornada de trabalho, a intensificação do trabalho e o arrocho salarial, até o limite da sobrevivência do trabalhador.

(3) A produção de mais-valia relativa acontece mediante o aumento de produtividade pela racionalização do tempo de trabalho, como a que foi proposta por Taylor e tornou-se a base do fordismo (produção industrial em série, alto índice de produtividade e aumentos salariais que promovem consumo).  A aliança entre o fordismo e o Estado de Bem-estar Social constitui o quadro do capitalismo dos “Trinta anos gloriosos” do pós-guerra no países desenvolvido. 

“Depois da Segunda Guerra Mundial e sob as condições da concorrência sistêmica com o campo socialista, o projeto de um intervencionismo estatal de inspiração keynesiana passa a ser o fundamento da construção de um capitalismo nos termos do Estado de Bem-estar Social, que pode agora, à diferença de épocas históricas anteriores, confiar na ampla aceitação por parte da população. Nessa fase, o aumento da produtividade é elevado. Parte de seus benefícios é repassada aos trabalhadores ou conquistada por eles e suas organizações em conflitos salariais e trabalhistas. A lógica dessas lutas é em parte monetária – quer dizer, trata-se em primeira linha de obter aumentos salariais. Aumentos monetários dos rendimentos salariais são o veículo que permite aos trabalhadores a participação nas gratificações da sociedade e ao mesmo tempo fornecem a condição para que o conjunto das mercadorias coincida com uma demanda com poder aquisitivo suficiente. Mas essa lógica é complementada por exigências não monetárias de melhoria das condições de trabalho, de uma redução da jornada de trabalho, de mais possibilidades de participação em decisões tomadas nos planos da empresa e acima da empresa (cogestão)” (idem, ibidem).

(4) A apropriação neo-imperialista começa “quando as relações entre o fordismo e o Estado de Bem-estar social começam a se dissolver e a concorrência nos mercados globais de commodities se tornou mais acirrada. A liberalização dos mercados financeiros globais também produziu consequências radicais para o jogo da distribuição. Os juros reais e os rendimentos a serem gerados a partir das aplicações de capitais são forçados para cima. A produção de mais-valia relativa na indústria fordista não basta para realizar os rendimentos exigidos nos mercados financeiros globais.” 

A apropriação de mais-valia relativa, então, é complementada pelo deslocamento das fábricas para países pobres onde seja possível extrair mais-valia absoluta, que é transferida para os grandes centros da economia capitalista como remessas de lucro.


No entanto, a quarta forma da apropriação não é uma recaída nos primórdios do capitalismo, mas um método extremamente moderno. A produção de mais-valia absoluta pode ser aumentada com métodos técnicos sofisticados, mecanismos sociais e econômicos e intervenções políticas. (...) Essas inovações foram desenvolvidas com o fim de obter acesso ao excedente do trabalho social em qualquer lugar do mundo. Assim, por exemplo, os aplicadores de capital em países industrializados pensam apenas no rendimento que podem obter, não no processo de produção desse rendimento (...) Os truques de pilhagem entram cada vez mais no campo visual dos consultores financeiros e dos aplicadores” (idem, ibidem).




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Ainda a digressão


Segundo Altvater, as crises mais graves dentro do sistema capitalista são as de transformação, em que uma forma de apropriação é substituída por outra (idem, capítulo 5). Isso aconteceu, por exemplo, quando a aliança entre fordismo e Estado de Bem-estar social entrou em crise na década de 1970 nos países desenvolvidos.  

As crises de transformação mostram os limites de certas formas de apropriação de riqueza, mas parecem não colocar em risco o próprio capitalismo. Todavia, Altvater argumenta que o capitalismo fordista reforçou a dependência mundial pelos combustíveis fósseis, que foi ainda mais agravada pelo atual capitalismo financeiro "virtual". 


A confluência do capitalismo com um regime energético fossilista data do início da Revolução Industrial e coloca limites à utopia de expansão infinita do capital:


- limites geológicos (a disponibilidade de petróleo no planeta);

- limites geopolíticos (o custo da disputa pelas reservas);


- limites econômicos (o custo de extração);  

- limites ecológicos (o custo dos prejuízos causados pelas emissões de gases  e pela destruição ambiental). 

Então é assim que o capitalismo vai morrer? Ele vai se tornar um fóssil como aqueles que explorou desde os primórdios da Revolução Industrial? Ou o capitalismo pode, em mais uma metamorfose, entrar em confluência com o uso de recursos renováveis em formas ainda não conhecidas de apropriação?  

Altvater julga que isso é pouco provável: “As energias renováveis são mais lentas que as energias fósseis (...) Também é mais difícil usar as energias renováveis independentemente do lugar da sua geração, pois a logística de transporte não pode ser organizada com tanta facilidade como no caso das fontes fósseis de energia. Por conseguinte, as energias renováveis exigem estruturas descentralizadas de geração e consumo de energia” (idem, capítulo 8).

Trata-se de uma afirmação bastante aceitável dada a nossa compreensão atual das energias renováveis, mas não é difícil imaginar que essa afirmação será ultrapassada por descobertas cientificas e desenvolvimentos tecnológicos futuros, cujas consequências sociais e históricas são necessariamente imprevisíveis. 

As notícias sobre a morte próxima do modelo fossilista parecem um bocado exageradas, especialmente quando sabemos que muitos países usam ou pretendem usar suas reservas de petróleo justamente para custear políticas de reforço dos direitos sociais em nível local ou nacional, reforçando o modelo fossilista em nível global, com todas as tensões que a dependência do "excremento do diabo" podem causar nas próximas décadas.

É o fossilismo com face humana, disposto a redimir os males do capital. Não se trata nesse caso de um conto da carochinha, mas de uma má piada dialética. 


A presidente da República, Dilma Rousseff, pediu nesta segunda-feira (24) que o Congresso Nacional acelere a aprovação do PL (Projeto de Lei) 5500/13, que destina 100% dos recursos dos royalties do petróleo para a educação do Brasil. A pedido da presidente, o texto tramita em caráter de "urgência constitucional" na Casa.

Para viabilizar a proposta e agilizar todo o processo que legaliza o pedido, a comissão especial que analisa o projeto marcou uma audiência pública para esta terça-feira (25) a partir das 14h30.

A manobra foi feita três dias depois de Dilma ir à TV, na última sexta-feira (21), quando prometeu que lutaria para reverter o dinheiro do petróleo para  a educação. O pedido também reflete a onda de protestos que se espalhou pelo País nas últimas duas semanas, cujas reivindicações vão do fim da corrupção até a melhoria dos serviços de saúde e educação.


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De volta ao Manifesto


Marx nunca hesitou em lançar mão do fantástico ou do sobrenatural. Minha decisão de começar este folhetim filosófico veio de duas imagens célebres do Manifesto: o espectro que ronda a Europa e o feiticeiro  que perdeu o controle sobre as forças que invocou.


Normalmente essas imagens são lidas com complacência, como ilustrações excêntricas e curiosas que revelam um pouco do legado visionário e noturno que Marx herdou do Romantismo alemão. Em todo caso, as imagens são lidas como se fossem meros floreios verbais que podem ser retirados do texto sem maiores danos à compreensão.


O que estou propondo nessas páginas é que as imagens, metáforas e símiles de Marx devem ser levados a sério, como acontece como qualquer outro escritor. Essas imagens estruturam formas de pensar distintas daquelas que seguem a cadeia de razões e argumentos. 


Por isso, não me parece que a imagem do feitiço que se volta contra o feiticeiro seja apenas uma ilustração condescendente para facilitar   a compreensão das crises capitalistas. Acredito que as imagens fantásticas de Marx formam um modelo subjacente que interfere na maneira pela qual o processo social é pensado em termos teóricos e conceptuais. Este modelo subjacente, que eu associo à estrutura dos contos da carochinha, tem um potencial didático poderoso, mas sempre corre o risco de pender para a moral ingênua, na qual fatalmente os feiticeiros malévolos encontram sua nêmesis e os grilhões são partidos.




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Mais sobre esse assunto nos próximos capítulos.










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