quarta-feira, 17 de julho de 2013

A claraboia e o holofote #12







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


Seção I – Burgueses e Proletários


7.  O final: a dinâmica ideal da luta de classes e seu resultado

Ao longo da leitura do Manifesto, tentei mostrar que Marx e Engels queriam recompor a lógica do processo histórico da modernidade burguesa, apresentando-a de maneira extremamente sucinta por meio de uma transposição didática audaciosa, decalcada na estrutura narrativa dos Märchen, isto é, dos contos de fadas: equilíbrio natural – desequilíbrio introduzido pelo vilão dotado de poderes fantásticos – novo equilíbrio alcançado pelo herói ao assumir, de maneira controlada, os poderes fantásticos do vilão derrotado.

Ao Märchen do fantasma do comunismo, o Manifesto contrapõe um outro Märchen: o da burguesia como classe revolucionária e demiúrgica, que destrói o equilíbrio estático do feudalismo e introduz uma revolução contra tudo o que é natural e permanente. Na sua destruição criadora (para retomar a famosa expressão de Schumpeter), a burguesia perde o controle sobre os poderes que invocou e dá origem ao proletariado, o herói destinado a instaurar o novo equilíbrio, usando as armas fabulosas criadas pela burguesia: o sistema industrial moderno baseado nas colossais forças produtivas liberadas pela revolução burguesa.

Ocorre que o recurso à estrutura dos Märchen (possivelmente inconsciente por parte dos autores do Manifesto), conduz a uma inevitabilidade de resultados que extrapola a lógica do processo histórico. O Märchen deixa de ser apenas um recurso didático e torna-se uma garantia de que o futuro se realizará de acordo com os ditames de uma moral ingênua, que exige que o vilão seja derrotado pelo herói para que o equilíbrio seja restituído. 

Alguns estudiosos, como Michel Löwy, dedicaram-se a mostrar o forte componente messiânico do marxismo revolucionário. O que eu proponho é que este messianismo, que pretende dispor de um holofote para iluminar o futuro, se expressa, do ponto de vista do relato histórico, por meio da estrutura narrativa dos Märchen e que essa estrutura contamina a compreensão da lógica do processo. 

As virtudes da exposição do Manifesto, assim como os vícios decorrentes da estrutura narrativa adotada, talvez sejam mais evidentes na sequência que termina a primeira seção do Manifesto do Partido Comunista.


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O proletariado passa por diferentes fases de desenvolvimento. Sua luta contra a burguesia começa com a sua existência.

No começo, empenham-se na luta operários isolados, mais tarde, operários de uma mesma fábrica, finalmente operários de um mesmo ramo de indústria, de uma mesma localidade, contra o burguês que os explora diretamente. Dirigem os seus ataques não só contra as relações burguesas de produção, mas também contra os instrumentos de produção, destroem as mercadorias estrangeiras que lhes fazem concorrência, quebram as máquinas, queimam as fábricas e esforçam-se para reconquistar a posição perdida do trabalhador da Idade Média.

Nessa fase, o proletariado constitui massa disseminada por todo o país e dispersa pela concorrência. A coesão maciça dos operários não é ainda o resultado de sua própria união, mas da união da burguesia que, para atingir seus próprios fins políticos, é levada a por em movimento todo o proletariado, o que por enquanto ainda pode fazer. Durante essa fase, os proletários não combatem seus próprios inimigos, mas os inimigos de seus inimigos, os restos da monarquia absoluta, os proprietários de terras, os burgueses não-industriais, os pequenos burgueses. Todo movimento histórico está desse modo concentrado nas mãos da burguesia e qualquer vitória alcançada nessas condições é uma vitória burguesa.

Mas, com o desenvolvimento da indústria, o proletariado não apenas se multiplica; comprime-se em massas cada vez maiores, sua força cresce e ele adquire maior consciência dela. Os interesses, as condições de existência dos proletários se igualam cada vez mais à medida que a máquina extingue toda diferença de trabalho e quase por toda parte reduz o salário a um nível igualmente baixo. Em virtude da concorrência crescente dos burgueses entre si e devido às crises que disso resultam, os salários se tornam cada vez mais instáveis, o aperfeiçoamento constante e cada vez mais rápido das máquinas torna a condição de vida do operário cada vez mais precária; os choques individuais entre o operário singular e o burguês singular tomam cada vez mais o caráter de confronto entre duas classes. Os operários começam a formar coalizões contra os burgueses e atuam em comum na defesa de seus salários; chegam a fundar associações permanentes a fim de precaverem-se de insurreições eventuais. Aqui e ali a luta irrompe em motim.

De tempos em tempos, os operários triunfam, mas é um triunfo efêmero. O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores. Esta união é facilitada pelo crescimento dos meios de comunicação criados pela grande indústria e que permitem o contato entre operários de diferentes localidades. Basta, porém, este contato para concentrar as numerosas lutas locais, que tem o mesmo caráter em toda parte, em uma luta nacional, uma luta de classes. Mas toda luta de classes é uma luta política. E a união que os burgueses da Idade Média, com seus caminhos vicinais, levaram séculos a realizar os proletários modernos realizam em poucos anos por meio das ferrovias.

A organização do proletariado em classe e, portanto, em partido político, é incessantemente destruída pela concorrência que fazem entre si os próprios operários. Mas renasce sempre, e cada vez mais forte, mais sólida, mais poderosa. Aproveita-se das divisões internas da burguesia para obrigá-la ao reconhecimento legal de certos interesses da classe operária, como, por exemplo, a lei da jornada de dez horas de trabalho na Inglaterra.

Em geral, os choques que se produzem na velha sociedade favorecem de diversos modos o desenvolvimento do proletariado. A burguesia vive em luta permanente; primeiro, contra a aristocracia; depois, contra as frações da própria burguesia cujos interesses se encontram em conflito com os progressos da indústria; e sempre contra a burguesia dos países estrangeiros. Em todas estas lutas, vê-se forçada a apelar para o proletariado, a recorrer a sua ajuda e desta forma arrastá-lo para o movimento político. A burguesia fornece aos proletários os elementos de sua própria educação política, isto é, armas contra ela própria.

Além disso, como já vimos, frações inteiras da classe dominante, em consequência do desenvolvimento da indústria, são lançadas no proletariado, ou pelo menos ameaçadas em suas condições de existência. Também elas trazem ao proletariado numerosos elementos de educação.

Finalmente, nos períodos em que a luta de classes se aproxima da hora decisiva, o processo de dissolução da classe dominante, de toda a velha sociedade, adquire um caráter tão violento e agudo, que uma pequena fração da classe dominante se desliga desta, ligando-se à classe revolucionária, à classe que traz nas mãos o futuro. Do mesmo modo que outrora uma parte da nobreza passou para a burguesia, em nossos dias uma parte da burguesia passa para o proletariado, especialmente a parte dos ideólogos burgueses que chegaram à compreensão teórica do movimento histórico em seu conjunto.

De todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais autêntico.

As camadas médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias. Não são, pois revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, são reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás da roda da História. Quando se tornam revolucionárias, isto se dá em consequência de sua iminente passagem para o proletariado; não defendem então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros; abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no do proletariado.

O lúmpen-proletariado, putrefação passiva das camadas mais baixas da velha sociedade, pode, às vezes, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária; todavia, suas condições de vida o predispõem mais a vender-se à reação.

As condições de existência da velha sociedade já estão destruídas nas condições de existência do proletariado. O proletário não tem propriedade; suas relações com a mulher e os filhos já não tem em comum com as relações familiares burguesas. O trabalho industrial moderno, a subjugação do operário ao capital, tanto na Inglaterra como na França, na América como na Alemanha, despoja o proletário de todo caráter nacional. As leis, a moral, a religião são para ele meros preconceitos burgueses, atrás dos quais se ocultam outros tantos interesses burgueses.

Todas as classes sociais que no passado conquistaram o poder trataram de consolidar a situação adquirida submetendo toda a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão abolindo o modo de apropriação a elas correspondente e, por conseguinte, todo modo de apropriação existente até hoje. Os proletários nada tem de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada até aqui existentes.

Todos os movimentos históricos tem sido, até hoje, movimentos de minorias ou em proveito de minorias. O movimento proletário é o movimento autônomo da imensa maioria em proveito da imensa maioria. O proletariado, a camada mais baixa da sociedade atual, não pode erguer-se, pôr-se de pé, sem fazer saltar todos os estratos superpostos que constituem a sociedade oficial.

A luta do proletariado contra a burguesia, embora não seja na essência uma luta nacional, reveste-se dessa forma num primeiro momento. É natural que o proletariado de cada país deva, antes de tudo, liquidar a sua própria burguesia.

Esboçando em linhas gerais as fases do desenvolvimento proletário, descrevemos a história da guerra civil mais ou menos oculta na sociedade existente, até a hora em que essa guerra explode numa revolução aberta e o proletariado estabelece sua dominação pela derrubada violenta da burguesia.

Todas as sociedades anteriores, como vimos, se basearam no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas. Mas para oprimir uma classe é preciso garantir-lhe condições tais que lhe permitam pelo menos uma existência servil. O servo, em plena servidão, conseguiu tornar-se membro da comuna, da mesma forma que o pequeno burguês sob o jugo do absolutismo feudal, elevou-se à categoria de burguês. O operário moderno, pelo contrário, longe de se elevar com o progresso da indústria, desce cada vez mais, caindo abaixo das condições de sua própria classe. O trabalhador torna-se um indigente e o pauperismo cresce ainda mais rapidamente do que a população e a riqueza. Fica assim evidente que a burguesia é incapaz de continuar desempenhando o papel de classe dominante e de impor à sociedade, como lei suprema, as condições de existência de sua classe. Não pode exercer o seu domínio porque não pode mais assegurar a existência de seu escravo, mesmo no quadro de sua escravidão, porque é obrigada a deixá-lo afundar numa situação em que deve nutri-lo em lugar de ser nutrida por ele. A sociedade não pode mais existir sob sua dominação, o que quer dizer que a existência da burguesia não é mais compatível com a sociedade. 

A condição essencial para a existência e supremacia da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de particulares, a formação e o crescimento do capital; a condição de existência do capital é o trabalho assalariado. Este se baseia exclusivamente na concorrência dos operários entre si. O progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo e involuntário, substitui o isolamento dos operários, resultante da competição, por sua união revolucionária resultante da associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria retira dos pés da burguesia a própria base sobre a qual assentou o seu regime de produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.


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A estrutura argumentativa do texto

O texto apresenta a dinâmica histórica da formação do proletariado como classe e de seu papel revolucionário.  Devido à sua extensão, talvez seja interessante decompor as etapas de seu percurso lógico-narrativo.

A. A formação da classe e da consciência proletária 

O antagonismo entre o proletariado e a burguesia é sistêmico. O proletariado oprimido luta contra a burguesia opressora desde que começa a existir. Entretanto, o sentido e as armas usadas na luta se modificam à medida em que os proletários se organizam como classe e ganham consciência de seus propósitos:

a) Na fase inicial de dispersão e isolamento dos proletários, sua luta é parcial e reacionária. Parcial porque certos proletários se voltam contra certos patrões; reacionária porque, naquele momento, o objetivo do proletariado é retornar às condições do trabalho artesanal herdadas da Idade Média. Por isso, os proletários atacam as máquinas e as instalações das fábricas, isto é, os meros instrumentos de produção, como se eles fossem os opressores.

b) Com o crescimento da indústria, os proletários, em número cada vez maior, são arregimentados para lutar contra os inimigos da burguesia industrial, como a monarquia absolutista, os proprietários de terras com seus privilégios feudais, os pequenos burgueses que controlam o comércio local. O proletariado ganha coesão, por obra da burguesia, e torna-se agente revolucionário, mas a serviço da revolução burguesa. Mas, ao ser recrutado para as lutas da burguesia, o proletariado ganha consciência das lutas sociais e aprende os métodos de combate.

c) O número de proletários não para de crescer. As condições de trabalho se tornam uniformemente mais baixas e os salários são comprimidos pelas crises comerciais. Isso leva os proletários a organizarem-se em coalisões e associações permanentes. O conflito com os patrões burgueses adquire o aspecto de luta de classes. 

d) A facilidade de comunicação criada pela grande indústria permite coordenar as lutas locais em lutas nacionais, que ganham forma político-partidária; todavia, o surgimento de um partido do proletariado enfrenta obstáculos, entre os quais a concorrência que os proletários fazem uns aos outros pela obtenção de emprego (uma das condições de existência do sistema industrial de trabalho assalariado é estimular essa concorrência). Apesar das dificuldades, as associações partidárias do proletariado renascem sempre e se tornam mais fortes, aproveitando-se das dissensões internas da burguesia para obter melhorias dos salários e das condições de trabalho.

e) O avanço da grande indústria e a crescente proletarização da sociedade fazem com que cada vez mais elementos dos segmentos médios e até da classe dominante passem para o lado do proletariado, trazendo consigo conhecimentos úteis para a luta da classe operária do ponto de vista estratégico, político e organizacional. Por fim, no momento mais agudo da luta de classes, uma fração da burguesia passa para o lado da classe proletária revolucionária. É o caso dos ideólogos burgueses (como Marx e Engels), que alcançaram a compreensão do papel do proletariado no processo histórico-mundial. 

O movimento pelo qual o proletariado como classe em si (isto é, como grupo de pessoas que compartilham uma certa posição no interior do sistema produtivo) se torna classe para si (isto uma classe consciente de sua condição e de seus objetivos) é decorrência:

-  do antagonismo sistêmico em relação à burguesia,

-  do seu crescimento numérico,

-  da degradação de suas condições, a despeito de vitórias efêmeras,

-  do seu esforço associativo,

- das contribuições trazidas por elementos de outras classes sociais, que caíram no proletariado.

Na sua fase final, por meio da contribuição teórica dos ideólogos burgueses que passam a apoiar a revolução proletária, o proletariado se torna classe em-si para-si (isto é, consciente da necessidade histórica da sua própria existência e da sua posição no processo como um todo). Essa consciência revolucionária de classe em-si para-si tomará a forma institucional de um partido internacional dos trabalhadores: o partido comunista. 

B. A exclusividade do papel revolucionário do proletariado 

Somente o proletariado é uma classe revolucionária anti-burguesa. As camadas médias (pequena burguesia, artesãos, camponeses) não são revolucionárias, mas sim conservadoras e a até reacionárias. Do mesmo modo que o lúmpen-proletariado, “putrefação passiva das camadas mais baixas da velha sociedade”, essas camadas sociais só se tornam revolucionárias quando se sentem ameaçadas pela burguesia. Neste caso, passam para o lado do proletariado. Sua consciência revolucionária é apenas de empréstimo.

O proletariado é eminentemente revolucionário porque:

a) É a única classe surgida a partir do sistema industrial. Portanto é a única interessada em resolver e ultrapassar as contradições desse sistema, ao invés de recuar para um estágio anterior. 

b) O proletariado não tem nada a perder com a destruição revolucionária da sociedade existente. As condições de existência da sociedade burguesa já estão destruídas nas condições de existência do proletariado. O proletariado não pátria nem propriedade, as relações familiares proletárias nada tem em comum com a família burguesa. Do ponto de vista do proletariado, a lei, a moral e a religião são apenas preconceitos burgueses.

c) O proletariado constitui a maioria da sociedade. O movimento proletário é um movimento autônomo da imensa maioria em proveito da imensa maioria. A luta de emancipação do proletariado, camada mais baixa da sociedade moderna, não pode se consumar sem destruir o conjunto das relações sociais de opressão.

d) As condições básicas de subsistência do proletariado são ameaçadas pelo avanço da sociedade industrial burguesa. Todas as sociedades se basearam no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas. Para oprimir uma classe é preciso garantir-lhe condições tais que lhe permitam pelo menos uma existência servil, mas, na sociedade industrial, o proletário torna-se um indigente e o pauperismo cresce mais rapidamente do que a população e a riqueza. Por isso, a burguesia é incapaz de continuar desempenhando o papel de classe dominante opressora.


e) O próprio sistema industrial burguês suscitou a organização revolucionária internacional do proletariado como classe anti-burguesa. A condição essencial para a existência e supremacia da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de particulares, a formação e o crescimento do capital. A condição de existência do capital é o trabalho assalariado. Este se baseia exclusivamente na concorrência dos operários entre si, mas o progresso da indústria substitui o isolamento dos operários, resultante da concorrência, por sua união resultante da associação. Portanto, o desenvolvimento da grande indústria elimina a concorrência entre os trabalhadores assalariados em que se sustentava. O próprio sistema de grande indústria permite a associação revolucionária dos proletários.

C. A conclusão histórico-política

Em resumo, o Manifesto mostra que as condições históricas pelas quais o proletariado se torna uma classe social são as mesmas que explicam a emergência de uma consciência de classe revolucionária anti-burguesa: o desenvolvimento da grande indústria (o sistema mais avançado de extração do valor produzido pelo trabalho) destrói a concorrência entre os trabalhadores assalariados e leva à sua união crescentemente revolucionária. 

Uma vez que a burguesia é o feiticeiro que perdeu o controle das forças que conjurou, ela é o agente passivo e involuntário das transformações sociais e econômicas que possibilitaram a existência do proletariado como classe consciente de si, organizada num partido revolucionário voltado para a destruição violenta da própria burguesia. 

O final da primeira seção do Manifesto conclui que “a burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.


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A posição do problema

De onde vinha a certeza de Marx e Engels em relação à inevitabilidade do resultado futuro da luta de classes num prazo relativamente curto?

É inegável que as agitações iniciadas em 1847 alimentavam as esperanças dos autores do Manifesto em relação a um levante revolucionário do proletariado. Essas esperanças também podem ter sido responsáveis pela estimativa exagerada da força objetiva do proletariado. No entanto, “a derrota da insurreição parisiense de junho de 1848 – a primeira grande batalha entre o proletariado e a burguesia – colocou novamente em um segundo plano as aspirações sociais e políticas do operariado europeu. (...) Quanto ao Manifesto, este parecia ficar, a partir de então, relegado ao esquecimento.” (Friedrich Engels, Prefácio à edição inglesa do Manifesto Comunista, de 1888).

O problema é que, mesmo aceitando a descrição da burguesia feita pelo Manifesto, isto é, mesmo aceitando que a tese de que burguesia produz as condições que ameaçam sua supremacia de classe, nada garante que a sua destruição seja inevitável nem próxima. Tampouco há garantia de que a destruição da burguesia seja obra do proletariado, nem de que essa vitória representará o fim das sociedades divididas pela luta de classes entre opressores e oprimidos. 

Em outras palavras, apesar da pertinência de vários momentos da exposição do Manifesto, não há uma conexão lógica entre o processo descrito e os resultados previstos. As claraboias se mostraram eficientes para trazer luz ao presente histórico e social, mas os holofotes foram incapazes de iluminar o futuro.

A lacuna lógica se manifesta quando aproximamos a premissa e a conclusão da primeira seção:

“A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes. 
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, tem vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito.
(...)
A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.”


A premissa reconhece que a luta de classes pode ter dois resultados: a transformação revolucionária da sociedade ou a destruição das duas classes antagônicas.  A conclusão afirma a vitória inevitável do proletariado.

Cabe então perguntar: 

(1) por que a luta não poderia se estender por um período extremamente longo? 

(2) por que uma luta prolongada não poderia modificar a própria estrutura das classes em conflito e a forma mesma do conflito?  

(3) por que a luta entre a burguesia e o proletariado não poderia terminar com a destruição das duas classes? 


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(1) por que a luta  de classes não poderia se estender por um período extremamente longo? 

Pela própria natureza conclamatória, o Manifesto se coloca diante da ação de curto prazo, mesmo que a escala de sua análise retroceda em escala secular ou milenar. Assim, embora o texto não seja explícito quanto à uma vitória imediata do proletariado, é evidente que Marx e Engels contavam com uma revolução vitoriosa em data próxima. É o que se percebe nessa declaração:

É sobretudo para a Alemanha que se volta a atenção dos comunistas, porque a Alemanha se encontra às vésperas de uma revolução burguesa e porque realizará essa revolução nas condições mais avançadas da civilização europeia e com um proletariado infinitamente mais desenvolvido que o da Inglaterra do século XVII e o da França no século XVIII; e por que a revolução burguesa alemã só poderá ser, portanto, o prelúdio imediato de uma revolução proletária. (Manifesto, seção IV – Posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição).

A expectativa de uma luta de curto prazo parecia justificável teoricamente pela aceleração do processo de associação do proletariado (graças aos meios de comunicação criados pela grande indústria) e pelos sintomas de que a hora decisiva se aproximava, entre eles o fato de que uma pequena fração da classe burguesa passava para o lado do proletariado, como acontecera às vésperas da Revolução Francesa. 

É preciso reconhecer, no entanto, que o erro quanto à proximidade de uma revolução não indica em si mesmo uma falha na compreensão do processo histórico e social, mas sim uma avaliação indevida das forças em conflito. A dura lição de junho de 1848 e a repressão política da década de 1850 tornarão Marx e Engels mais cuidadosos ao estimarem o grau de maturidade do proletariado. Também levarão Marx a aprofundar sua análise da dinâmica do capital (que resultará na Contribuição à Crítica da Economia Política) e da dinâmica do conflito de classes (que resultará no 18 Brumário de Luis Bonaparte). 

Desse ponto de vista, o fracasso prático sangrento de 1848 reverterá em aprendizado teórico na década seguinte.  Mas isso implicará um recuo das expectativas de vitória revolucionária a curto prazo.


(2) por que uma luta prolongada não poderia modificar a própria estrutura das classes em conflito e a forma mesma do conflito?  

A história de muitas sociedades é a história da luta de classes, mas a luta mesma tem sua historicidade na medida em que o processo de luta transforma as classes antagônicas e remodela a sociedade, criando novas classes. 

É o que parece ter acontecido com a luta prolongada entre burguesia e proletariado e com a compreensão teórica dessa luta pela diversidade das teorias marxistas, muitas das quais contestam o potencial revolucionário do proletariado (Edward Bernstein), a centralidade do trabalho e da produção na análise social (Herbert Marcuse e André Gorz), ou até mesmo postulam que a luta de classes seja uma estrutura inconsciente impossível de ser verificada empiricamente (Slavoj Zizek).

A verdade é que os próprios termos iniciais do antagonismo caíram em desuso. Basta verificarmos quão poucas vezes Eric Hobsbawn usa a palavra “burguesia” na sua análise do curto século XX em A Era dos Extremos,  ou constatarmos que o Dicionário do Pensamento Marxista, organizado por Tom Bottomore, não tem um verbete para o termo “proletariado” e sim para o termo mais geral e já um pouco cediço de “classe operária”.


(3) por que a luta entre a burguesia e o proletariado não poderia terminar com a destruição das duas classes? 

Em nenhum momento, o Manifesto considera seriamente a possibilidade de um colapso da forma de produção capitalista por causa da destruição recíproca das classes antagônicas. Talvez seja essa a diferença mais flagrante entre a perspectiva marxista, mesmo a das obras posteriores, e regime de pensamento catastrofista com o qual estamos todos familiarizados. Entre as nossas perspectivas de presente ou futuro próximo estão:

- o reino da estupidez e da mediocridade do último homem (Nietzsche);

- a impossibilidade de emancipação, representada pela bota que esmaga eternamente a face humana (Orwell);

- a tirania da intimidade (Sennett);

- a derrocada da sociabilidade pelo meta de sobrevivência do eu-mínimo (Lasch);

- a substituição da vida social pelo regime dos simulacros e das simulações (Baudrillard);

- a sociedade de controle (Deleuze);

- a vitória definitiva do liberalismo e do mercado (Fukuyama);

- o colapso da civilização pela destruição dos ecossistemas (Jared Diamond);

etc.

Se, do ponto de vista da esquerda, a contração do horizonte e das possibilidades de transformação constitui uma limite para o pensamento, também nos torna mais agudos na percepção do caráter ilusório das esperanças revolucionárias de outras épocas.  É o que permite enxergar a estrutura narrativa que sustenta a crença na vitória do proletariado e a afirmação da sua inevitabilidade. Essa estrutura narrativa, que permite o salto da premissa da seção I do Manifesto para a conclusão final, é  a do conto da carochinha, com sua moralidade ingênua e sua justiça dos acontecimentos. 

Nossa crença nos Märchen foi corroída pela marcha dos desastres do século XX, mas será que nosso pessimismo significa que nos tornamos mais lúcidos quanto ao futuro?  Ou simplesmente estamos comprometidos com uma estrutura narrativa de outro tipo?  Por que é mais fácil acreditarmos no fim do mundo do que no fim do capitalismo? 







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