terça-feira, 23 de julho de 2013

Il moto non è diverso dalla stasi #1





TURIM

I

Nietzsche



“Turín es mi lugar “probado” y lo escogí desde entonces por residencia. Volvi a ocupar el mismo alojamento que había ya ocupado em la primavera, Via Carlo Alberto, 6111, enfrente del poderoso palácio Carignano, en el que nasció Vittorio Emanuele. Mis ventanas daban a la plaza Carlo Alberto, al mediodia, sobre um horizonte bordeado de colinas. Sin vacilación, y sin dejarme distraer un momento, reanudé mi trabajo. No me quedaba más que terminar el último cuarto de la obra. El 30 de septiembre, gran victoria; séptimo dia, ociosidade de um dios que se pasea a lo largo del Po. El mismo dia escribi también el prefácio de “El Ocaso de los Ídolos”, cuya corrección me habia servido de recreo durante el mes de septiembre.
Jamás he passado um otoño como aquél, jamás hubiera yo creído que uma cosa como aquélla fuera posible sobre la tierra: um Claude Lorrain transportado el infinito, todos los días de igual perfección insuperable.”
(Ecce Homo, capítulo “El Ocaso de los Ídolos”, Obras Completas de Federico Nietzsche, M. Aguilar Editor, Buenos Aires)



Via Carlo Alberto, 6111



Em 5 de abril de 1888, vindo de Gênova, Nietzsche chega à capital da casa de Savóia. Eufórico com o tempo excelente e com as ruas largas, retas e planas, que favoreciam longas caminhadas, escreve para o seu amigo Peter Gast:

Turim, caro amigo, é uma descoberta capital. Falo pensando que talvez possa tirar proveito desta notícia. A minha disposição é boa, trabalho de manhã à noite – um pequeno panfleto sobre a música ocupa-me os dedos – digiro como um semideus, durmo apesar do barulho noturno das viaturas. Tudo isto são sintomas de uma eminente adaptação a Turim. (citado por Daniel Halévy, Nietzsche, capítulo Nox ruit)




Palazzo Carignano: a fachada barroca de Guarino Guarini


Enquanto redige seu  panfleto, Nietzsche descobre numa biblioteca da cidade uma tradução francesa do Código de Manu, a antiquíssima lei sacerdotal hindu que estabelece o sistema de castas e os deveres morais relativos a cada uma delas. Em êxtase, ele torna a escrever a Peter Gast:

Não se poderia, sem pecar contra o espírito, associar na mesma frase a Lei de Manu, livro de uma incomparável espiritualidade, e a Bíblia. Preste-se atenção: as leis de Manu tem atrás de si, em si, uma verdadeira filosofia e não uma repugnante judaíce de rabinismo e superstição (...) Vamos ao essencial e mostraremos a diferença fundamental: com as leis de Manu, as classes superiores, os filósofos e os guerreiros, mantem o controle da multidão; em toda a parte os valores superiores, o consentimento à vida, o sentimento da perfeição, de um triunfal bem-estar: o sol ilumina todas as páginas do livro. Onde o cristianismo exibe a sua insondável vulgaridade (a sexualidade, a mulher, o casamento), as leis de Manu aplicam-se com respeito, amor e confiança. Como se poderia por nas mãos de mulheres e crianças um livro onde se encontram estas palavras: Para evitar o impudor, que cada um tenha a sua mulher, cada mulher tenha um marido. É melhor casar-se do que arder... (citado por Daniel Halévy, Nietzsche, capítulo Nox ruit).

Se há algo que não se pode negar é a amplitude do "demasiado humano" em Nietzsche. Do sublime ao ridículo, da plenitude à tacanheza, nada lhe foi estranho.




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O “pequeno panfleto sobre a música” será publicado no final de setembro de 1888, com o nome de O Caso Wagner.  A violência do ataque contra o antigo ídolo e mentor Richard Wagner, que havia morrido há cinco anos, causará indignação nos círculos wagnerianos e a perda de mais alguns amigos.

Apartémosnos finalmente, por un momento, para respirar, del estrecho mundo a que todo problema sobre el valor de personas condena al espíritu. Un filósofo siente la necesidad de lavarse las manos después de haberse ocupado durante largo tiempo sobre el “caso Wagner”. Ahora voy a exponer mi concepto de lo moderno. Toda época encuentra en la medida de sus fuerzas otra medida para estabelecer qué virtudes le están permitidas y cuáles vedadas. O tiene las virtudes de la vida ascendente, y entonces resiste em sus más profundas raíces a las virtudes de la vida descendente. O ella misma es uma vida que desciende, y entonces tiene necesidad de las virtudes de la decadencia, y odia todo lo que se justifica con la plenitude y la abundancia de fuerzas. La estética está indisolublement ligada a estas premisas biológicas: hay uma estética de la decadencia, hay una estética clássica; lo bello en si es una quimera tal como lo entende el idealismo.


En la estrecha esfera de los llamados valores morales no se puede encontrar un mayor contraste que el que existe entre una moral de señores y una moral de valoraciones cristianas; esta última ha crecido sobre un terreno completamente malsano (los Evangelios nos presentan exatamente los mismos tipos fisiológicos que describen las novelas de Dostoiewski), mientras la moral de los señores (romana, pagã, clásica, moral del Renacimiento) es el linguaje simbólico de las buenas constituiciones, de la vida ascendente, de la voluntad de poder entendida como princípio de la vida. La moral de los señores afirma tan instintivamente como niega la cristiana (Dios, el más allá, renuncía a si mismo, son puras negaciones). La primera comunica a las cosas su plenitude: esclarece, estabelece, racionaliza el mundo; la segunda empobrece, palidece, afea el valor de las coisas, niega el mundo. El “mundo” es una injuriosa palabra del cristianismo. Estas formas contrarias en la óptica de los valores son necesarias; son modos de ver, que no se alcanzan con argumentos y refutaciones. No se refuta el cristianismo, no se refuta una enfermedad de los ojos. El hecho de haber combatido el pesimismo como una filosofía fué el colmo de la idiotez erudita. Las nociones “verdadero” e “no verdadero” no tienen a lo que creo, ningún sentido en la óptica.

De lo único de que nos debemos defender es  de la falsedad, de la doblez del instinto, que no quiere considerar como constrastes estos contrastes; esta, por ejemplo, fué la voluntad de Wagner, que fué un no pequeño maestro de tales falsedades. (El Caso Wagner, epílogo, Obras Completas de Federico Nietzsche, M. Aguilar Editor, Buenos Aires)

Nas décadas seguintes, a crítica às "premissas biológicas" da estética decadente e o desprezo pela "repugnante judaíce de rabinismo e superstição" foram levadas adiante justamente por ideólogos que entronizaram aquilo que Nietzsche combatia: as virtudes da nação alemã, a demagogia e o culto a Richard Wagner, tanto pelas virtudes romanas e nobres de Rienzi, quanto pela pureza cristã de Parsifal.


Como aconteceu muitas vezes, as palavras de Nietzsche foram interpretadas da maneira mais torpe, mas é verdade que havia nelas muita torpeza, muita doença sem cura e muita vulgaridade de pregador de praça pública.




Palazzo Carignano: pórtico da Piazza Carlo Alberto


Feliz com a primavera espiritualmente tão rica, Nietzsche faz as malas e parte no dia 5 de junho. O verão, decide passá-lo na Suiça, em Sils-Maria, onde escreve mais dois livros: O Anticristo e O Crepúsculo dos Ídolos. No outono, retorna a Turim. Põe-se a reler toda a sua obra e escreve Ecce Homo:

É a ele próprio, é à sua glória, que consagra esse livro, o seu último livro. A euforia rompe os freios do hábito e da razão que controlam, em cada pessoa, os reflexos do orgulho ingênuo, e ele entoa a litania dos louvores a si próprio. Leiamos os títulos dos capítulos: Porque sou tão prudente – Porque sou tão refletido – Porque escrevi livros tão bons  – Porque sou uma fatalidade - Glória e eternidade. (Daniel Halévy, Nietzsche, capítulo Nox ruit)

A euforia domina Nietzsche. É certo que havia boas razões para isso. Sua obra começava a suscitar reações de admiração. Numa carta, o crítico Georg Brandes conta  o êxito do seu curso sobre Nietzsche em Copenhagen. Também o dramaturgo sueco August Strindberg lhe escreve, empolgadíssimo com a leitura de O Caso Wagner. Embora estivesse longe de ser entendido e amado, Nietzsche se sente engrandecido e deseja saborear cada momento. Come bem e frequenta os cafés mais movimentados, sempre com roupas bem cuidadas. Quer ser visto e gosta do respeito carinhoso que as pessoas lhe demonstram, como relata na carta a Meta von Salis, de 29 de dezembro:

O mais singular aqui em Turim é a total fascinação que eu exerço – em todas as classes. A cada instante sou tratado como um príncipe, há uma distinção extrema no modo como abrem a porta para mim e me servem uma comida. Cada rosto se transfigura quando entro numa loja grande (citado por Safranski, Nietzsche: biografia de uma tragédia, capítulo 14)



Ponte Vittorio Emanuele


Os sinais do colapso se acumulam rapidamente. Nietzsche fala sozinho, dança nu no apartamento e escreve cartas incoerentes para os amigos Franz Overbeck e Jacob Burckhardt, que se inquietam.

Uma vez mais Nietzsche quis se arrancar ao furor de criar e de destruir que o devora há mais de um ano; quis ultrapassar a inspiração dionisíaca, aumentá-la num outro fervor desconhecido até para ele. Goethe, o apolíneo, tantas vezes invocado desde há dois anos, não o pode salvar. Necessita encontrar outro recurso; não uma serenidade, esse tempo passou, a alma pede-lhe outra coisa, exige um fervor. Criar ou descobrir um novo fervor sempre foi uma das suas esperanças. A euforia exalta-o, o último São Silvestre não passará em vão. Eis o momento, recentemente anunciado com dois versos:

Nun lacht die Welt, der grause Vorhang riss,
Die Hochzeit kam für Licht und Finsterniss ..... 
(Finalmente o mundo ri, a cruel cortina rasga-se/ Chega o tempo dos esponsais para a luz e as trevas)

Em papéis que mãos atentas apanharão daí a pouco na desordem do quarto do alucinado, serão encontrados, escritos a lápis, os dois nomes juntos: Dioniso, o Crucificado. “Num dia que se deve situar entre 28 de dezembro e 3 de janeiro – escreve Charles Andler – Dioniso e o Crucificado fundiram-se nele...” (Daniel Halévy, Nietzsche, capítulo Nox ruit)

No dia 3 de janeiro, Nietzsche viu um cocheiro que chicoteava um cavalo na Piazza Carlo Alberto. Cheio de compaixão, abraçou-se ao animal para protegê-lo e, entre lágrimas, desmaiou. O amigo Franz Overbeck vem buscá-lo e parte com ele no  dia 9. Nietzsche estava demente e assim permaneceu até morrer em 1900.

Ninguém jamais soube o que foi feito do cavalo da Piazza Carlo Alberto, mas o grande diretor húngaro Bela Tárr ofereceu uma resposta ficcional à questão no filme O Cavalo de Turim (A Torinói Ló, 2011). O cocheiro e a sua filha são seres taciturnos, fustigados pela crueldade de um vento incessante, isolados na repetição, no silêncio e na pobreza, até que a própria luz do mundo se esvai. 




II

Primo Levi



Quando o jovem partisan Primo Levi foi preso por uma milícia fascista em dezembro de 1943, ele preferiu declarar-se judeu, ao invés de membro da guerrilha. Depois de passar pelo campo de transferência de Fossoli, em 22 de fevereiro de 1944 foi enviado para Auschwitz, onde recebeu o número de registro 174.517 e foi destinado ao trabalho no campo de Buna-Monowitz (Auschwitz III).

Após a libertação em janeiro de 1945, o Exército Vermelho transferiu os sobreviventes para um campo em Katowice, cujo comandante tentava reunir informações sobre as condições sanitárias do Lager. O médico Leonardo Debenedetti, também sobrevivente, e Primo Levi, que era químico, foram solicitados a redigir o Relatório sobre a organização higiênico-sanitária do campo de concentração para judeus de Monowitz–Auschwitz.  Os sobreviventes começavam a dar o seu testemunho do horror dos campos de extermínio.

A volta para casa foi difícil. O medo, a situação política instável, a falta de meios de transporte, a destruição das cidades do Leste europeu obrigaram Levi a fazer um caminho tortuoso pela Polônia, Bielo-Rússia, Ucrânia, Romênia, Hungria, Alemanha e Áustria. Quando chegou a Turim em outubro daquele ano, começou a escrever o relato da sua experiência em Auschwitz, que se tornou sua primeira obra: Se questo è um uomo.

A recusa das grandes editoras, incluindo a casa Einaudi, de Turim, uma das mais importantes da Itália, não o impediu de publicar o livro por um pequeno editor em 1947. A repercussão foi mínima. Desanimado, Primo Levi se dedicou ao trabalho na indústria química. Mas, em 1956, por causa do vivo interesse que o público demonstrou por uma exposição sobre os deportados de Turim , Levi voltou a propor o livro à editora Einaudi, que o aceitou dessa vez. O sucesso nacional e internacional de Se questo è um uomo encorajou o autor a retomar suas memórias do Holocausto  em várias outras obras.

Com exceção do período como partisan e como prisioneiro, Levi sempre viveu no apartamento do terceiro andar da Corso Re Umberto, 75, onde ele nasceu e que ainda hoje pertence à sua família.


Entrada do edifício de Primo Levi em janeiro de 2013


Na manhã de 11 de abril de 1987, como sempre fazia, a concièrge foi à porta de seu apartamento para entregar-lhe a correspondência. Ela desceu a escada espiral e, mal tinha se fechado em seu quartinho no térreo, ouviu o baque forte de um corpo contra o piso. Era Primo Levi. A autópsia revelou que o esmagamento do crânio lhe causou morte instantânea. Não havia nenhum sinal de violência que não tivesse relacionado à queda.

A divulgação da notícia consternou os amigos e admiradores de Levi. Logo a hipótese de um acidente (Levi se queixara de tontura ao seu médico nos dias anteriores) foi desafiada pela hipótese de suicídio. Para alguns, Levi teria concluído a sua obra e só lhe restava a morte; para outros, a doença da mãe do escritor, que a tornara totalmente dependente do filho se tornou desesperadora à medida que ele envelhecia; para Elie Wiesel, outro grande expoente da literatura de testemunho do Holocausto, Primo Levi, como outros sobreviventes, jamais superou a trauma do Lager e “morreu em Auschwitz, quarenta anos depois”.

A hipótese de suicídio de Primo Levi, ao que me parece, admite pelo menos três interpretações. Pensada à maneira estóica, seria o ato derradeiro de autonomia e de soberania, que daria ao intelectual o direito de encerrar a obra, sem sobras nem aparas. Poderia ser ainda um ato de recusa final do absurdo da existência por alguém que, depois de ter olhado o abismo da crueldade, sentia culpa por ter sobrevivido. Ou seria o ato impulsivo de desesperança de um homem velho que lutava contra a depressão e mergulhou no fosso da escada para liquidar a fatura.

Tenho a impressão de que, para aqueles que acreditam na hipótese do suicídio, a possibilidade de uma morte meramente acidental deve parecer um anticlímax metafísico, isto é, uma intromissão indevida e brutal da contingência do mundo. É por isso que as objeções factuais que o sociólogo italiano Diego Gambetta levantou contra a hipótese do suicídio encontraram e encontram tanta resistência. 

[A discussão sobre a hipótese do suicídio se encontra no famoso artigo de Gambetta, “Primo Levi's Last Moments" e foi retomada num artigo interessante e informativo do psiquiatra Adrian Gramary, "Primo Levi: a queda do sobrevivente".]

Não sei se Primo Levi caiu por acidente ou atirou-se do alto da escada, mas sei que ele nunca demonstrou disposição em acreditar que há um tecido inconsútil que dá sentido último aos acontecimentos . A contingência estava na origem de sua carreira de escritor e constituía o horizonte de sua vida, como ele mesmo disse em 1976:

Una certa affermazione posso però formularla, ed è questa: se non avessi vissuto la stagione di Auschwitz, probabilmente non avrei mai scritto nulla. Non avei avuto motivo, incentivo, per scrivere: ero stato uno studente mediocre in italiano e scadente in storia, mi interessavano di più la física e la chimica, ed avevo poi scelto un mestiere, quello del chimico, che non aveva niente in comune col mondo della parola scritta. È stata l’esperienza del Lager a costringermi a scrivere: non ho avuto da combattere con la pigrizia, i problemi di stile mi sembravano ridicoli; ho trovato miracolosamente il tempo di scrivere pur senza mai sottrare neppure un’ora al mio mestiere quotidiano; mi pareva, questo libro, di averlo già in testa tutto pronto, di doverlo solo lasciare uscire e scendere sulla carta.

Escritor por acaso, mas principalmente sobrevivente por acaso:

Il fato che io sia sopravvissuto, e sia ritornato indenne, secondo me è dovuto principalmente ala fortuna. Solo in piccola misura hanno giocato fattori preesistenti, quali il mio allenamento ala vita di montagna, ed il mio mestiere di chimico, che mi ha concesso qualche privilegio negli ultimi mesi de prigionia. Forse mi ha aiutato anche il mio interesse, mai venuto meno, per l’animo umano, e la volontà non soltanto di sopravvivere (che era comune a molti), ma di sopravvivere allo scopo preciso di raccontare le cose a cui avevamo assistito e che avevamo sopportato. E forse ha giocato infine anche la volontà, che ho tenacemente conservata, di riconoscere sempre, anchei nei giorni più scuri, nei miei compagni e in me stesso, degli uomini e non delle cose, e di sottrarmi così a quella totale umilazione e demoralizzazione che conduceva molti al naufragio spirituale.
(Primo Levi, Se questo è uomo, Apêndice)

A contigência é radical, mas não conduz ao absurdo. Palavras como “provavelmente”, “em pequena medida”, “talvez” servem para dar a dimensão da nossa ignorância, elas não constituem uma denúncia de alguma opacidade insuperável do mundo, à qual recorrem com demasiada facilidade os que sentem o chão ceder quando se dão conta da ausência de Deus. A respeito dessa ausência, Levi fez uma declaração hoje famosa, que nos atira diretamente no plano da história: C’è Auschwitz, quindi non può esserci Dio.



III


Gianni Vattimo e tantos outros


O inverno não estava demasiado frio, mas o chuvisco intermitente e a vontade de descansar o corpo por uns instantes nos fizeram parar no café Al Bicerin.  O lugar é pequeno e mal tínhamos espaço para espalhar nossos agasalhos pesados. Ludmila tinha também que procurar onde deixar a sacola com lãs e o bastidor de bordar que tínhamos comprado num armarinho bem fornido e simpático numa travessa da Corso Re Umberto, quando voltávamos da visita ao prédio de Primo Levi.

Galeria do Teatro Cinema Roma, ao lado do Palazzo Carignano

Acostumados ao ritmo paulistano de Milão, íamos a passo largo e rápido, mas Turim é mais lenta no andar e no falar. Da Corso Re Umberto, pegamos a Via Antonio Gramsci e seguimos pelas arcadas da Via Roma até a Piazza San Carlo, depois até a Piazza Reale. Parávamos o tempo justo para as fotos e filmagens. Eu queria seguir logo à capela onde o Santo Sudário é guardado.

A igreja do Sudário é a mais decepcionante da Itália. Os fiéis se juntam, no fundo, à esquerda de quem entra, para contemplarem o nicho vazio onde se esconde a suposta relíquia do Homem-Deus morto. Se me fosse dado escolher, gostaria que o Sudário fosse autêntico e não uma brincadeira de mau-gosto de Leonardo da Vinci, como nos romances de Dan Brown.

O vazio de uma relíquia contestada me esvaziou também. Precisávamos de um café e o Al Bicerin não fica longe. Trouxeram-nos as taças com as colheres de cabo longo, que não são para mexer o café, mas para alcançar o chocolate no fundo. O café funciona desde o século XVIII na pequena Piazza della Consolata, voltado para uma torre românica.  Dizem que o conde Cavour o frequentava. Nietzsche deve ter estado aqui também na sua segunda temporada em Turim, quando costumava aparecer em lugares mais frequentados. Mas é possível que ele, que gostava tanto de andar à beira do rio, fosse para algum café da Via Po, bem mais perto da sua casa, depois de entrar na biblioteca da universidade ou visitar a Mole Antonelliana em construção.

Um grupo de russos acabou de lotar o café. Falavam alto. Os russos sempre falam alto. Ludmila e eu topamos com eles por toda a Itália, mas era singularmente apropriado encontrá-los na célebre cidade sabauda, cujo projeto urbanístico setecentesco se aproxima tanto do de São Petersburgo, com  seus palácios hieráticos, seus cavaleiros de bronze e suas perspectivas infinitas.



Via Roma vista da Piazza Castello


Houve muitas pontes entre Turim e a Rússia no passado. Antes que a família Agnelli aceitasse construir uma fábrica da FIAT na Rússia (onde se produzia o indestrutível Lada), Gramsci tinha saudado a revolução bolchevique e chegou a representar os marxistas italianos na Rússia, onde conheceu a militante que se tornaria sua esposa. Bem antes, no começo do século XIX, os irmãos de Maistre, Joseph e Xavier, foram os mais famosos dos russo-turineses. Xavier, autor de Viagem à volta do meu quarto, que inspirou Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett,  foi viver em São Petersburgo como pintor. Joseph, o mais brilhante do ideólogos da Reação, encerrou seus dias em Turim, depois da temporada como embaixador da casa de Savóia junto ao czar Alexandre I.


Piazza Castello

Como devia doer ao velho e ultra-católico Joseph de Maistre passar diante da Igreja do Espírito Santo e recordar-se que, ali, o seu muito odiado e desprezado Jean-Jacques Rousseau tinha se convertido ao catolicismo em 1728 só para agradar Madame de Warens, a belíssima carola de quem Jean-Jacques se tornou amante logo que abjurou os erros da sua formação huguenote e genebrina.

É fato, porém, que estávamos mais ocupados em raspar o chocolate do fundo da taça do que com considerações históricas. Mesmo assim,  o vazio do nicho do Sudário e o ar gélido do Santuário me acompanharam como lembrança incômoda, que se tornou ainda mais forte quando, em Roma, visitamos a réplica do Sudário, que é guardada na Igreja de Santa Croce in Gerusalemme junto com as relíquias do Santo Lenho e do Santo Espinho numa sala igualmente gélida, onde um grupo de escolares bocejava.

De maneira apressada, atribuí esse incômodo aos vestígios da minha formação católica, que ainda espera alcançar alguma transcendência pelos olhos da carne. Porém, recentemente, ocorreu-me algo melhor.

Palazzo Reale: ao fundo à esquerda, a torre do Santuário do Sudário

Um dos conceitos centrais do Cristianismo é o de kenósis, isto é, despojamento, esvaziamento. Segundo São Paulo, a redenção foi eficaz porque Jesus se despojou da sua condição divina para tomar o cálice do sofrimento. Ao fazer-se reconhecer como carne sofredora, Jesus acedeu ao ponto mais alto do poder divino.

Tende entre vós os mesmos sentimentos que Jesus, o qual, sendo de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas despojou-se de si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes. (Epístola aos Filipenses, 2, 6-9)

Essa dialética da redenção pelo sofrimento, mediada pela kenósis, foi revalorizada e reinterpretada por vários filósofos recentes de formação hermenêutica.  Gianni Vattimo, discípulo de Gadamer e estudioso de Heidegger e Nietzsche, vem propondo há algum tempo uma versão secularizada da kenósis como a experiência religiosa possível num horizonte histórico que reconhece que Deus está morto. O sagrado somente pode se dar como problema, pela abdicação das certezas e dos dogmas religiosos. Nenhuma sarça ardente vai nos trazer a luz, mas a ausência e a precariedade devem se tornar aberturas para o diálogo e a tolerância. 


Pátio da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Turim


Os filósofos são filhos de seu tempo, mas também são filhos de suas cidades. Como turinês, Gianni Vattimo é mais um elo da cadeia histórica e filosófica daquela que é a mais especulativa das cidades italianas.

Turim é a sede do Sudário: a imagem mesma da kenósis, isto é, do corpo de Jesus despojado de sua divindade. Na universidade de Turim, o grande humanista e reformador Erasmo de Rotterdam obteve seu doutoramento em Teologia em 1506. Em Turim, Joseph de Maistre fez suas reflexões finais sobre o papel da religião católica como defesa contra a maré de descrença revolucionária daqueles que promoviam a razão humana à condição divina. Em Turim, Nietzsche, proclamador da morte de Deus, identificou-se com o Crucificado. Em Turim, Antonio Gramsci abandonou o idealismo e tornou-se adepto do materialismo histórico marxista. Em Turim, Primo Levi declarou que a existência de Auschwitz excluía a existência de Deus. Em Turim, Gianni Vattimo defende que a religião moderna não tem mais o direito de apresentar-se como dogma revelado, mas apenas como abertura e hiância.

O inverno na alma que sentíamos diante do nicho vazio do Sudário era, portanto, a religião possível, sem impostura. Desolada como o transeunte que atravessava a Piazza San Carlo sob o chuvisco de janeiro.

Piazza San Carlo no inverno


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Era hora de pegarmos o trem para Milão. Na Piazza Carlo Alberto, nenhum cavalo. Junto ao Pó, apenas as margens geladas e escorregadias.


Rio Pó: Igreja da Mãe de Deus e Igreja de Santa Maria do Monte









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