MILÃO
1848
Em junho de 1847, desejoso de passar algumas semanas de liberdade e de anonimato na companhia da sua amada Giuseppina Strepponi, que dava aulas de canto na capital francesa, Verdi chegou a Paris. Incansável e aparentemente inesgotável, ele já começava a compor uma nova ópera, O Corsário, quando soube da queda do rei Luís Felipe, derrubado pela agitação revolucionária de fevereiro de 1848. Os levantes se espalharam por toda a Europa.
As barricadas em Viena ameaçaram o governo de Metternich, artífice da Santa Aliança reacionária. A notícia se espalhou rapidamente pelo Vêneto e pela Lombardia, que estavam sob o domínio dos Habsburgos desde a queda de Napoleão. Os nacionalistas republicanos radicais, adeptos de Giuseppe Mazzini, viram uma oportunidade para libertar o norte da Itália. Na cidade de Milão, durante cinco dias - as Cinque Giornate de 18 a 22 de março -, os patriotas combateram as tropas austríacas, que foram obrigadas a bater em retirada. A bandeira tricolor foi hasteada no alto do Duomo. Parecia, enfim, que chegara a hora de criar uma Itália livre e unificada.
O pináculo do Duomo em 2012: foto de Ludmila Ciuffi |
Entusiasmado, Verdi correu para Milão, onde chegou no dia 5 de abril. Para o seu libretista Francisco Maria Piave, escreveu: Onore a questi prodi, onore a tutta l’Italia che in questo momento è veramente grande! L’ora è suonata, siine persuaso, della sua liberazione. È il popolo che la vuole e quando il popolo vuole non avvi potere assoluto che le possa resistere. Sì, sì ancora pochi anni forse pochi mesi e l’Italia sarà liberta, una, reppublicana...” (Gustavo Marchesi, Giuseppe Verdi, Skira).
Verdi era um nacionalista sincero e grande admirador de Mazzini, mas também era um homem prático que zelava pelos seus negócios. Em Milão, discutiu com o empresário Merelli a montagem de suas óperas no Teatro alla Scala. Também aproveitou para adquirir uma propriedade rural, o sítio de Sant’Agata, que comprou em 1º de maio. Antes de voltar para Paris e para Giuseppina, Verdi teve um encontro com Mazzini em Milão.
Teatro alla Scala |
No momento em que Verdi regressou à capital francesa, o governo instaurado pela revolução de fevereiro enfrentava uma onda crescente de insatisfação. O idílio entre a burguesia e o proletariado chegara ao fim. Na última semana de junho, as forças do general Cavaignac sufocaram o levante dos trabalhadores. A violência da repressão era inaudita: pela primeira vez a artilharia pesada foi usada dentro da cidade. Milhares de operários foram mortos, dezenas de milhares foram presos e deportados. O evento repercutiu por toda a Europa e, segundo Dolf Oehler (O Velho Mundo desce ao Inferno), constitui o trauma recalcado da modernidade.
(Certamente foi a carnificina que levou Verdi e Giuseppina a buscarem a tranquilidade no subúrbio bucólico de Passy, onde já viviam outros artistas como Chopin.)
Em Turim, o rei Carlos Alberto de Savóia temia um levante radical no Piemonte. Os liberais turineses, entre os quais o jovem Cavour, clamavam por uma intervenção em apoio aos nacionalistas lombardos. As tropas do Piemonte foram enviadas para Milão, mas seu deslocamento foi tão lento e desajeitado que permitiu ao exército austríaco, liderado pelo octogenário Marechal Radetzky, colocar-se em segurança e receber reforços.
Para decepção dos radicais de Milão, logo ficou evidente que a intervenção da casa de Savóia atendia apenas aos objetivos de anexar a Lombardia ao Piemonte, mas o intento não se realizou. No final de maio, as tropas do rei Carlos Alberto foram derrotadas facilmente pelos austríacos na batalha de Custoza. Em março do ano seguinte, uma nova derrota face aos austríacos em Novara levou a um armistício humilhante para o Piemonte. O rei Carlos Alberto abdicou em favor de seu filho Vittorio Emanuele II.
A Lombardia e o Vêneto caíram novamente sob o domínio dos Habsburgos.
1898
A Itália havia se tornado um Estado-nação liberal sob o domínio da casa de Savóia desde 1870, mas as generosas esperanças dos mazzinistas tinham sido desbaratadas. A desigualdade social e regional era imensa. Os trabalhadores urbanos qualificados ou semiqualificados procuravam emprego na França e na Inglaterra. Os camponeses pobres eram atraídos por vagas ofertas de trabalho no Novo Mundo. No Palácio Dória, em Gênova, onde passava os invernos com Giuseppina, Verdi lamentou muitas vezes o infortúnio que empurrava tantos italianos pobres para longe da Pátria.
Em 1898, um aumento súbito e brutal do preço do pão desencadeou tumultos por toda a Itália. Em Milão, os operários da Pirelli começaram a distribuir panfletos de protestos. Policiais infiltrados prenderam os operários. A manifestação dos trabalhadores diante da delegacia de policia resultou na libertação de vários operários, mas um deles continuou detido. Em solidariedade com o companheiro preso, milhares de trabalhadores abandonaram as fábricas para se manifestar. Houve um confronto violento com os policiais. O deputado socialista moderado Filippo Turatti tentou libertar o operário preso, mas nada obteve.
Os protestos duraram quatro dias – as Quattro Giornate, de 6 a 9 de maio. A polícia começou a abrir fogo contra a multidão. Um operário e um policial foram mortos. Os sindicatos convocaram uma greve geral. Em resposta aos tumultos, as forças da “ordem” foram reforçadas e colocadas sob o comando do general Florenzio Bava Beccaris. O rei Umberto I e seu primeiro ministro, o marquês de Rudini, decretaram lei marcial. Com a cidade em estado de sítio, canhões e metralhadoras foram usados para dispersar as barricadas formadas na Porta Garibaldi e na Porta Ticinese. Os números são incertos, mas alguns historiadores falam de 100 operários mortos e 400 feridos (por exemplo, Adrian Liyttelton, “Politics and Society 1870-1915” in The Oxford Illustrated History of Italy).
O estado de sítio foi mantido depois da violentíssima repressão dos trabalhadores. Os jornais de oposição foram empastelados e os vários políticos socialistas, entre os quais Filippo Turati, foram presos. O general Bava Beccaris, que passou a ser chamado de “carniceiro de Milão”, foi condecorado pelo ultrarreacionário rei UmbertoI.
A porta do Duomo |
Os laços e os nós
Em 1848, Mazzini e seus seguidores conseguiram proclamar repúblicas efêmeras em Roma e Veneza. No ano seguinte as forças de Garibaldi, que defendiam a república romana, foram vencidas por tropas francesas. O papa Pio IX retornou do exílio e promoveu uma restauração impiedosa, anunciando com clareza a linha reacionária de seu longuíssimo pontificado.
Mazzini teve que se exilar mais uma vez. Depois de muitos anos em Londres, ele se estabeleceu em Lugano em 1868. Foi na Suiça que o velho revolucionário italiano teve um encontro casual e fugaz com o jovem Friedrich Nietzsche que voltava do serviço como enfermeiro durante a guerra franco-prussiana. O famoso herói italiano deixou uma fortíssima impressão em Nietzsche, conforme contou mais tarde a sua irmã.
Marx não compartilhava a mesma opinião positiva sobre Mazzini. O autor de Das Kapital sempre acreditou que a burguesia republicana e nacionalista era fundamentalmente conservadora. Quando Mazzini fez objeções à Comuna de Paris (18 de março a 27 de maio de 1871), as suspeitas de Marx foram confirmadas. Giuseppe Mazzini morreu pouco depois, em 1872.
O destino de Nietzsche é bem conhecido. Ele abandonou as aulas de Filologia na Basileia e iniciou seu périplo pelas pensões e hotéis da Suiça e da Itália. Em janeiro de 1889, já tomado pela loucura em Turim, escreveu várias cartas estranhas, entre as quais um bilhete endereçado ao rei Umberto I. Nietzsche o chamava de “meu amado filho” e assinava como “O Crucificado”.
Umberto I foi assassinado em julho de 1900 por um anarquista que pretendia vingar-se da condecoração do “carniceiro de Milão”. O regicídio abalou profundamente Giuseppe Verdi, que chegava aos 87 anos. Ele faleceu num hotel em Milão no dia 27 de janeiro de 1901.
A máscara mortuária de Verdi no Museu do Teatro alla Scala: foto de Bia Ciuffi |
2012-2013
Acho que herdei algo do gênio ressentido da minha mãe, que nunca esquecia as maldades e desacatos, reais ou supostos, que lhe foram feitos. Por isso, quando voltamos a Milão, não contive um sorriso maldoso ao encontrar, na bilheteria da exposição “Picasso” no Palazzo Reale, a mesma jovenzinha antipática que, um ano antes, fizera cara feia quando eu pedi o devido desconto no ingresso de meus filhos, ambos menores de 18 anos. Que alegria vingativa eu tive ao vê-la trabalhando num domingo à noite, em plena Befana, quando o movimento festivo nas ruas estava no auge. E que alegria vê-la ainda lá, quase às onze da noite, quando Ludmila e eu saímos para comer castanhas assadas, caminhando sem nenhuma pressa em direção à livraria Hoepli, já fechada, cujo letreiro enorme podia ser visto da esquina, ou até Brera, passando em frente à igreja de São Fidélis, perto da casa de Manzoni.
Uma rua de Brera |
O meu prazer de voltar a Milão enfrenta seriamente o desgosto pela banalidade que tenta se disfarçar em elegância ou grandeza. É o que vejo na galeria Vittorio Emanuele, espantosa combinação de triunfalismo arquitetônico, impostação burguesa e vulgaridade turística. Meu filho Ivan percebeu bem que essa aparente incongruência se materializava na existência de um McDonalds no centro da galeria, onde os basbaques admiram a imponência ridícula dos carabinieri e alguns mentecaptos fazem giros sobre os colhões do touro da casa de Savoia, desenhado no pavimento.
A entrada da galeria Vittorio Emanuele vista da praça do Duomo |
Há cem anos, percorrendo os túmulos faraônicos do Cemitério Monumental de Milão, Walter Benjamin teve o mesmo sentimento artístico ofendido, entre a perplexidade e a irrisão. Aqueles túmulos seriam uma vingança dos ricos contra o nivelamento imposto pela morte: eram monumentos ao deus do dinheiro (Benjamin, Il mio viaggio in Italia).
Nem tudo é mau gosto oitocentista no Cemitério Monumental |
Por tudo isso, tenho escassa estima pelo “Quadrilátero de Ouro”, onde os novos-ricos russos fazem estrepitosamente suas compras nos finais de semana. É com uma curiosidade desconfortável que olho as vitrines da rua Montenapoleone enquanto seguimos em direção à via Manzoni. Ao lado do hotel onde morreu Giuseppe Verdi, pegamos o metrô, sentido Comasina. A voz do condutor vai escandindo as estações: Turati, Reppublica, Milano Centrale e Sondrio, onde descemos.
Felizmente, Milão não é apenas um acinte da burguesia. Minha filha Beatriz gosta da pista de neve que a prefeitura fez entre o castelo Sforzesco e o Parque Sempione. Ludmila e eu amamos a cidade antiga que, neste ano, comemora os 1700 anos do édito de Constantino. E é com fervor que percorremos as velhas basílicas do século IV e V: a de Santo Ambrósio, a de São Lourenço, a de Santo Eustórgio, com suas criptas paleocristãs, seus santos fundadores, seus tesouros de arte, suas cicatrizes dos bombardeios de 1943. Todas elas tão dignas, tão quietas, tão distantes das mundaníssimas igrejas de Roma.
Pórtico da Basílica de Santo Ambrósio |
A colunata romana do pátio da basílica de São Lourenço |
O parque atrás da basílica de São Lourenço |
Basílica de Santo Eustórgio: foto de Ludmila Ciuffi |
A cúpula da capela Portinari na Basílica de Santo Eustórgio |
Há também o prazer de folhear as belas edições da Skira, na Via Torino, ou o privilégio de comer bem na trattoria do Salvatore, conversando com dona Rita, que se senta conosco numa noite de pouco movimento para reclamar da crise italiana e saber das coisas do Brasil. Ludmila e eu esvaziamos uma abençoada garrafa de Nero d’Avola, que nos conduziu leves para o leito na noite de despedida.
a rua lateral do Duomo: foto de Ludmila Ciuffi |
No dia seguinte, partimos para Verona.
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