terça-feira, 13 de agosto de 2013

Il moto non è diverso dalla stasi #4








PÁDUA



VBI TROIA FVIT

Começa em Troia.

Antenor, velho conselheiro de Príamo, era amigo dos Aqueus. Antes da guerra, recebera Menelau e Ulisses que, como embaixadores, tentaram resolver pacificamente a devolução de Helena (Ilíada, III, 204-206). Os esforços foram em vão. 

A guerra atroz, que tantos heróis teucros e helenos enviou ao Hades, durou dez anos. Ilion de fortes muralhas foi saqueada pelos Aqueus que, no entanto, pouparam a casa e a estirpe do velho amigo troiano.

Antenor e seus filhos fugiram da cidade em chamas. Pela costa da Trácia atravessaram o mar escuro como o vinho e subiram uma das nove bocas do rio Brenta até uma ilha fluvial. 

Sentou Patávio aqui, deu casa a Teucros, 
nome à gente, e os brasões fixou de Troia 
(Virgílio, Eneida, I  247-249 tradução de Manuel Odorico Mendes)

Antenor, fundador de Pádua, pai do povo vêneto, é meu ancestral. Que importa que seja um mito?


PATAVIVM

Os cidadãos de Patavium obtiveram cidadania romana em 49 a.C.

Tito Lívio, um dos mais célebres filhos de Pádua, tinha apenas um ano de idade. Para Roma, ele seguiu já adulto, sob o reinado de Augusto, cuja amizade conquistou. Escreveu sua grande história de Roma Ab Urbe Condita e morreu em Patavium no ano 17 da era Cristã. Sua prosa imitava a de Cícero, mas jamais perdeu uma certa dicção provinciana que o escritor Asínio Pólio, amigo de Catulo, partidário de Júlio César e legado de Marco Antonio, chamava de “patavinitas” (Paul Harvey, Dicionário Oxford de Literatura Clássica, Jorge Zahar editor)

Não era má cidade aquela Pádua romana. Tinha o seu porto fluvial, seus canais, uma arena, belas casas patrícias e um amplo teatro onde sofreram martírio os primeiros cristãos do lugar, entre os quais Santa Justina. 

A cidade de Antenor não pode escapar, porém, dos bárbaros que vieram no Norte.  Os hunos a saquearam em 452, os longobardos em 602, por fim, os húngaros no início do século X.

A Basílica de Santa Justina vista do Prato della Valle (2013)



PADOVA

A Patavium romana não era mais.  A Padova que se ergueu sobre o alinhamento das ruas romanas (o cardum e o decumanus) tinha como umbigo uma igreja que veio a se tornar o Duomo. O rio Brenta, que trouxera Antenor, desviou violentamente seu curso depois da grande cheia de 589. O antigo teatro arrasado era agora o Prato della Valle, a esplanada onde se reuniam os cidadãos. 

Prato della Valle em 2013

Não havia mais cônsules de latim impecável, nem régulos de fala estrangeira. Nas ruas se ouvia uma língua latina muito rude que servia bem para o dia-a-dia. O bispo governava a cidade. O comércio prosperou através dos canais que conduziam ao mar Adriático. Vieram as ordens monásticas: os eremitanos primeiro; um pouco mais tarde, no começo do século XIII, os franciscanos liderados por Antonio de Lisboa, célebre pregador, capaz de fazer-se ouvir até pelos peixes daqueles canais. Onde morreu Antonio se ergueu uma grande basílica que guarda suas relíquias. Em Pádua, ele se tornou, por antonomásia, o Santo.

Santo Antonio, santo dos pobres, faleceu numa cidade que se orgulhava da sua riqueza crescente. A comuna, liderada por homens de negócios poderosos, permitiu que um grupo de professores e estudantes dissidentes da Universidade de Bologna constituíssem o Ateneu paduano, núcleo da célebre universidade. Mais tarde, por volta de 1300, foi erguida uma sede magnífica para a corte de justiça: o Palazzo della Ragione.

Palazzo della Ragione: Lapis Vituperii onde se sentavam os caloteiros escarnecidos


Palazzo della Ragione: foto de Ludmila Ciuffi



A FAMILIA SCROVEGNI


Antonio, santo dos pobres, morreu numa cidade de usurários. Um deles era Reginaldo Scrovegni, que Dante mandou para o Inferno na Divina Comédia (Canto XVII, 64-75). Enrico, filho de Reginaldo, também usurário por vício familiar, comprou o terreno junto à antiga arena romana, perto do monastério dos eremitanos, para construir seu palácio e uma igrejinha dedicada à Nossa Senhora da Anunciação. Para decorá-la, chamou o célebre Giotto, que já trabalhara para o Papa, para o rei de Nápoles, para os Malatesta de Rimini, para a poderosíssima ordem franciscana que lhe encomendara os afrescos da basílica inferior de Assis e das capelas na basílica do Santo de Pádua.

As maledicências e os ressentimentos que sempre falam pela boca das tradições locais dizem que Enrico encomendou obra tão rica a fim de obter indulgência para os suplícios que seu pai sofria no sétimo círculo do Inferno. Hoje não se acredita mais nisso. Enrico era ambicioso e pretendia ter influência nos assuntos da cidade por meio de sua amizade com o bispo (Giuseppe Basile, Giotto: Gli Affreschi della Cappela degli Scrovegni a Padova, Skira, 2002, p. 21).

A capela dos Scrovegni foi consagrada em 25 de março de 1305, dia da Anunciação. 

Giuseppe Basile (1942-2013), diretor do Istituto Superiore per la Conservazione ed il Restauro (ISCR), que liderou a equipe de restauração da Cappela Scrovegni, explica que “per consentire ai fedeli di meditare sui misteri della Salvazione Giotto impone un percorso mentale che è anche, potenzialmente, movimento físico, disponendo gli episodi in una sequenza narrativa tale che il riguardante è sollecitato a ‘muoversi’ per ben tre volte prima di arrestar lo sguardo dinanzi all’altare. Da qui, per decidere del proprio comportamento, dopo il ‘memento mori’ delle due cappele funerarie dipinte ai lati dell’altare, non gli resta che considerare i percorri irrimediabilmente alternativi configurati nelle due pareti lunghe dalla sequenze  dei Sette Vizi e delle Sette Virtù: i primi, sulla parete settentrionale, conducono – con um crescendo che culmina nella Disperazione penzolante impicatta – dritto all’Inferno; le altre, culminante nella Speranza levata in volo, conducono nella zona destinata agli Eletti.” (idem, p. 22).

Do livro Giotto: Gli affreschi della Cappella degli Scrovegni a Padova, Skira



NO RENASCIMENTO

Pádua tinha situação estratégica e riqueza, por isso era cobiçada pela Sereníssima República de Veneza e pela família Della Scala, que governava Verona.

A comuna de Pádua, para se defender, ofereceu o poder ao capitão Jacopo da Carrara, que se tornou Signore e inaugurou uma efêmera dinastia que renovou o prestígio da cidade. Um Carrara, Francesco, se tornou amigo de Petrarca e deu-lhe terras nos montes Eugâneos, onde o poeta morreu e foi sepultado em 1374 (John Hale, Dicionário do Renascimento Italiano, Jorge Zahar editor). 

Em 1405, embora absorvida por Veneza, Pádua manteve sua reputação e suas instituições. Erasmo de Narni, mais conhecido como Gattamelata, famoso condottiere a serviço da Sereníssima, governou a cidade e lá morreu em 1443. Donatello, que havia trocado Florença por Pádua nessa época, produziu tempos depois o primeiro monumento equestre desde a antiguidade: a estátua brônzea de Gattamelata que ainda hoje se encontra exposta aos elementos em frente da basílica do Santo de Pádua, para a qual o mesmo Donatello fez um altar portentoso.

A estátua equestre de Gattamelata na frente da Basílica de Santo Antonio: foto Ludmila Ciuffi

As qualidades escultóricas de Donatello eram admiradas pelo jovem Andrea Mantegna, que fora contratado naquela década de 1450 para pintar os afrescos da capela Ovetari na velha igreja dos Eremitanos.

O afresco de Mantegna extremamente danificado pelo bombardeio de 1944



DEPOIS

Pádua continuou na órbita de Veneza, apesar de uma revolta no começo do século XVI. Entre 1592 e 1610, Galileu lecionou matemática, astronomia e mecânica na universidade, antes de voltar à Toscana para prosseguir as descobertas astronômicas proporcionadas pelo aperfeiçoamento do telescópio. 

Foi do observatório da universidade de Pádua que Goethe viu “para o norte, as montanhas tirolesas, cobertas de neve e semi-envoltas em nuvens, às quais, a noroeste, vem juntar-se as de Vicenza; e, para o oeste, as montanhas de Este, mais próximas, cujas conformações e depressões se podem ver com nitidez. A sudeste, um mar verde de plantas, sem nenhuma elevação no terreno, árvores, arbustos e plantações lado a lado, inúmeras casas brancas, vilas e igrejas contemplando-nos em meio ao verdor. No horizonte, divisei com nitidez a torre de São Marcos em Veneza e outras torres menores.” (Viagem à Itália, 26 de setembro de 1786, Companhia das Letras) 

A velha Pádua mudava. 

O palácio dos Scrovegni foi demolido em 1824. Pouco tempo depois, erguia-se perto do Palazzo Bò, que abriga a universidade, o café Pedrocchi, construído no excêntrico estilo neoclássico-egípcio de 1830. Foi lá que os estudantes de 1848 enfrentaram os tiros disparados pelas tropas austríacas. 


Um a um os canais foram aterrados. As velhas ruas medievais percorridas por santos e pintores foram endireitadas a golpes de picareta. O bombardeio aliado em 1944 pulverizou os afrescos de Mantegna na capela Ovetari.  

A Capela dos Scrovegni, que escapou por um triz das bombas da Segunda Guerra Mundial, sofreu com o terremoto que abalou o Friuli em 1976. 


NÓS

Da primeira vez, achei Pádua a cidade mais sem graça da Itália. O sábado tinha a luz doce e macia que tanto me comove no céu do Vêneto, mas o terminal de trams na frente da estação ferroviária me afastava de qualquer desejo de flânerie. Se dependesse de mim, nós visitaríamos a Capela dos Scrovegni e, em seguida, passaríamos um dia agradável passeando por Verona. Acredito que meus filhos eram indiferentes à decisão que tomaríamos, mas Ludmila fazia questão de percorrer a cidade.  

Era preciso esperar a abertura do Museu Eremitani, onde pegaríamos os ingressos da visita que tínhamos agendado há várias semanas. Aguardamos na praça que outrora foi a arena romana, caminhando junto do busto de Arrigo Boito, libretista de Verdi, um dos mais ilustres paduanos do século XIX. 

A Capela dos Scrovegni na antiga arena romana de Pádua (2012): foto de Ludmila Ciuffi


Depois das delicadas obras de restauração, tornou-se obrigatório para os visitantes ficar alguns minutos numa sala de climatização, assistindo a um vídeo didático sobre a capela. A visita, que dura apenas 15 minutos, é rigorosamente controlada. As fotos e filmagens são proibidas. Quando chegou nossa vez, tivemos sorte: éramos apenas nós quatro e um casal alemão. Com a comovida descrença que sempre acompanha momentos que foram sonhados tantas vezes, contemplamos  silenciosos as paredes repletas de formas, cores e luz. 


Do livro Giotto: Gli affreschi della Cappella degli Scrovegni a Padova, Skira

O que mais fazer em Pádua num sábado de manhã, depois de ver Giotto? 

Ainda incrédulos e um tanto cambaleantes, vagamos por uma hora e meia pelo Museu Eremitani, que recebera obras de Rembrandt vindas do Hermitage (2012 era o ano da Federação Russa na Itália).

Seguimos pela via Dante (o antigo cardum romano), olhamos a feira da Piazza delle Erbe em frente ao Palazzo della Ragione. Almoçamos ali perto uma pasta à carbonara da qual Ludmila não se esqueceu. O vinho estava medíocre e as taças suspeitamente embaçadas tiveram que ser trocadas, mas a tarde estava belíssima. Passamos pelo café Pedrocchi e pela Universidade a caminho da Basílica do Santo. Às vezes seguíamos pelo meio das ruas pouco movimentadas, às vezes pelos pórticos intermináveis da cidade velha.

Café Pedrocchi em 2012: foto de Ludmila Ciuffi

lateral da Basílica de Santo Antonio em 2012: foto de Ludmila Ciuffi


Na basílica cheia de fiéis, fizemos fila junto às relíquias e ao túmulo do santo. Já um tanto agastado com Pádua, declarei a visita encerrada e corremos para pegar o trem de volta a Verona.

Ludmila, que tantas vezes teve o condão de mudar minhas opiniões, conseguiu lentamente que Pádua me cativasse. 

No ano seguinte voltamos, dessa vez sem os filhos. Bia se perdia nas ruas de Vancouver; sozinho em casa, Ivan percorreu uma maratona de filmes, cartoons e games. De volta a Pádua, decidimos não entrar na capela dos Scrovegni. Percorremos lentamente a cidade, começando pelo mosteiro dos franciscanos junto à basílica do Santo; admiramos depois o saguão imenso do Palazzo della Ragione.

Almoçamos na mesma trattoria do ano anterior. Desta vez a dona se desvelou em muitas solicitudes, certamente por efeito da crise econômica. Fomos caminhar pela via São Francisco, o antigo decumanus da Patavium romana. Foi lá que passamos, negligentes e um tanto cansados, pela tumba de Antenor.

Meu ancestral que veio de Troia.


Do livro Giotto: Gli affreschi della Cappella degli Scrovegni a Padova, Skira






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