VENEZA
I
Foi em Veneza que Mussolini e Hitler se encontraram pela primeira vez, em 14 de junho de 1934.
O chanceler alemão cometera o erro de não usar uniforme. Sua gabardina amarfanhada pela viagem de avião até o aeroporto de San Nicolò de Lido dava um contorno ainda mais encolhido aos seus ombros estreitos. Diante do uniforme teso do ditador fascista, com todos os seus galardões, Hitler fazia uma pobre figura de porteiro embaraçado, o que não reforçava nem um pouco sua pretensão de anexar a Áustria, assunto principal daquela reunião de cúpula.
Contrário às ambições alemãs, Mussolini não queria mostrar ao mundo que dava muita importância para esse primeiro encontro com Hitler. Por isso, o local escolhido foi Veneza, e não Roma. É bem possível que, mesma razão, Mussolini não tenha feito nenhum gesto para gratificar o conhecido wagnerismo do chanceler alemão. Veneza é a cidade em que Wagner morrera cinquenta anos antes. No entanto, não se organizou nenhuma homenagem no palácio Vendramin-Calergi, onde o compositor faleceu. É bem possível que, no seu cruzeiro pelo Grande Canal, Hitler não tenha sequer reconhecido a fachada daquele lugar quase mítico para os alemães (John W. Barker, Wagner and Venice, University of Rochester Press, 2008 pp. 263-265).
O Grande Canal em frente a Santa Maria della Salute |
II
Quando entrou em Veneza pela primeira vez em agosto de 1858, Richard Wagner tinha 45 anos. O segundo ato de Tristão e Isolda estava concluído e o compositor mantinha um caso amoroso, tão intenso quanto complicado, com Mathilde von Wesendonck, esposa de um rico comerciante que o patrocinava.
Depois da efêmera república proclamada em 1848, Veneza e todo o Vêneto eram controlados novamente pelas autoridades austríacas, mas de maneira cada vez mais precária. Wagner, porém, não estava interessado na política local. Ficou num hotel na Riva degli Schiavoni, não muito longe de São Marcos, e escreveu para Mathilde em setembro: “Descendo o Grande Canal até a Piazzetta, impressões melancólicas e clima solene; grandiosidade, beleza e decadência lado a lado; contudo, o conforto de refletir que a modernidade não floresceu aqui e, em consequência, nada de banalidades espalhafatosas. O efeito mágico da Praça de San Marcos. Um mundo que sobreviveu, distante de tudo, admiravelmente satisfaz o desejo de solidão: nenhuma vida real que possa diretamente atingir alguém; tudo objetivo, como uma obra de arte”. (citada por John W. Barker, op. cit. , p. 7)
foto: Ludmila Ciuffi |
III
Depois da estreia de Parsifal em Bayreuth, Wagner seguiu mais uma vez para Veneza em setembro de 1882. Ele abominava o frio setentrional e já fazia muitos anos que buscava as paragens mais quentes da Itália. Em outubro, Cosima e ele receberam a notícia da súbita morte do Conde Gobineau na estação de trem de Turim. Desde 1880, quando tiveram longas conversas no palácio Vendramin-Calergi, Wagner passara a ter grande estima pelo escritor francês, que fora embaixador junto ao Imperador do Brasil e ao Xá da Pérsia, e tornara-se conhecido pelo seu Essai sur l’inegalité des races humaines. Na época, Wagner chegara a confidenciar a Cosima: “Este é meu único contemporâneo” (Jean Boissel, Gobineau: biographie, Berg International, Paris, 1993 p. 287).
A geração de Wagner morria: a geração que vivera a paixão da Primavera dos Povos de 1848. Mazzini se fora em 1872; Bakunin, que estivera ao lado de Wagner nas barricadas de Dresden, havia falecido em 1876. Garibaldi morrera em junho de 1882, e agora partia o conde Gobineau. O próprio Wagner não se demorou muito. Cosima o encontrou morto no dia 13 de fevereiro de 1883. Em Londres, um mês depois, faleceria outro grande revolucionário de 1848: Karl Marx.
foto: Ludmila Ciuffi |
IV
A notícia da morte de Wagner foi dolorosa para Nietzsche. Pouco antes de conhecer pessoalmente o compositor, ele escrevera: “O que eu gosto em Wagner é o que gosto em Schopenhauer – o ar ético, a aura fáustica, cruz, morte, sepultura etc” (carta e Rohde, de 8 de outubro de 1868 citada por Dieter Borchmeyer, Drama and the World of Richard Wagner, Princeton University Press, 2003 p. 291).
Nomeado para a cadeira de filologia em Basileia em 1869, Nietzsche passou a frequentar a casa de Wagner em Lucerna. Foram anos inesquecíveis em que o jovem professor se desdobrava como o factotum da família. Todavia, depois da publicação de Humano Demasiado Humano, o afastamento entre Nietzsche e Wagner parecia consumado. Numa carta a Peter Gast, de 31 de maio de 1878, ele observou: “uma espécie de excomunhão foi pronunciada contra o meu livro em Bayreuth” (Dieter Borchmeyer, op. cit., p. 296).
Quando Wagner faleceu, Nietzsche estava do outro lado da Itália, em Rapallo, litoral da Ligúria, sofrendo as dores do amor infeliz por Lou Salomé, enquanto escrevia Assim Falava Zaratustra. Sempre assombrado pelas coincidências, que para ele tinham a marca da fatalidade, Nietzsche registrou, na sua obra derradeira, que havia colocado o ponto final da primeira parte do Zaratustra, “precisamente na hora santa em que Richard Wagner expirava em Veneza” (Ecce Homo, “Por que escrevo livros tão bons”).
San Giorgio vista da Piazzeta di San Marco |
V
Não amo a literatura de Gabriele d’Annunzio: o seu decadentismo me aborrece tanto quanto as suas bravatas fascistas. Entretanto, não posso deixar de me comover com o final de Il fuoco, de 1900, com seu ritmo staccato de marcha, que evoca a solenidade ao mesmo tempo espectral e épica, da morte de Siegfried no Crepúsculo dos Deuses, enquanto exorciza a força do oblívio com aqueles ramos de louro de um verde latino, brônzeo e perene, colhidos no Janícolo, colina dos arúspices e dos heróis.
Stelio Èffrena domandò alla vedova di Riccardo Wagner che ai due giovani Italiani i quali avevano trasportato una sera di novembre dal battello alla riva l′eroe svenuto, e a quattro loro compagni, fosse concesso l′onore di trasportare il feretro dalla stanza mortuaria alla barca e dalla barca al carro. Tanto fu concesso.
Era il 16 di febbraio: era un′ora dopo il mezzogiorno. Stelio Èffrena, Daniele Glàuro, Francesco de Lizo, Baldassare Stampa, Fabio Molza e Antimo della Bella attendevano nell′atrio del palazzo. L′ultimo era giunto da Roma avendo ottenuto di condurre seco due artieri, addetti all′opera del Teatro d′Apollo, perché portassero al funerale i fasci dei lauri colti sul Gianicolo.
Attendevano senza parlare e senza guardarsi, ciascuno essendo vinto dal palpito del suo proprio cuore. Non s′udiva se non uno sciacquio fievole su i gradini di quella grande porta che nelle candelabre degli stipiti recava scolpite le due parole: DOMVS PACIS.
L′uomo del remo, che era stato caro all′eroe, discese a chiamarli. Egli aveva gli occhi bruciati dalle lacrime sul viso maschio e fedele.
(...)
Il cadavere era là, chiuso nella cassa di cristallo; e accanto, in piedi, era la donna dal viso di neve. La seconda cassa, di metallo forbito, brillava sul pavimento aperta.
I sei portatori si disposero innanzi alla salma, aspettando un cenno. Altissimo era il silenzio, ed essi non battevano palpebra; ma un dolore impetuoso investiva le loro anime come una raffica e le squassava fin nelle radici profonde.
Tutti erano fissi all′eletto della Vita e della morte. Un infinito sorriso illuminava la faccia dell′eroe prosteso: infinito e distante come l′iride dei ghiacciai, come il bagliore dei mari, come l′alone degli astri. Gli occhi non potevano sostenerlo; ma i cuori, con una meraviglia e con uno spavento che li faceva religiosi, credettero di ricevere la rivelazione di un segreto divino.
La donna dal viso di neve tentò un lieve gesto, rimanendo rigida nella sua attitudine come un simulacro.
(...)
La barca funebre attendeva dinanzi alla porta. Su la cassa fu distesa la coltre. I sei compagni attesero a capo scoperto che la famiglia discendesse. Discese, insieme stretta. La vedova passò velata; ma lo splendore della sua sembianza era nella memoria dei testimoni per sempre.
Il corteo fu breve. La barca mortuaria andava innanzi; seguiva la vedova con i cari ; poi seguiva il drappello giovenile. Il cielo era ingombro su la grande via d′acqua e di pietra. L′alto silenzio era degno di Colui che aveva trasformato in infinito canto per la religione degli uomini le forze dell′Universo.
Una torma di colombe, partendosi dai marmi degli Scalzi con un fremito balenante, volò sopra la bara a traverso il canale e inghirlandò la cupola verde di San Simeone.
All′approdo uno stuolo taciturno di devoti attendeva. Le larghe corone odoravano nell′aria cinerea. S′udiva l′acqua sbattere sotto le prue ricurve.
I sei compagni tolsero il feretro dalla barca e lo portarono a spalla nel carro che era pronto su la via ferrata. I devoti appressandosi deposero le loro corone su la coltre. Nessuno parlava.
Allora s′avanzarono i due artieri con i loro fasci di lauri colti sul Gianicolo.
(...)
Nobilissimi erano quei lauri latini, recisi nella selva del colle dove in tempi remoti scendevano le aquile a portare i presagi, dove in tempi recenti e pur favolosi tanto fiume di sangue versarono per la bellezza d′Italia i legionarii del Liberatore. Avevano i rami diritti robusti bruni, le foglie dure, fortemente innervate, con i margini aspri, verdi come il bronzo delle fontane, ricche d′un aroma trionfale.
Santa Maria della Salute e a Dogana del Mare ao fundo |
VI
Quem sai da Estação Santa Lucia é saudado pela cúpula de São Simeão, do outro lado do canal. Foi assim que Veneza nos recebeu quando desembarcamos lá pela primeira vez numa manhã gelada de janeiro de 2012.
Na proa do vaporetto apinhado de turistas, eu tentava filmar o que era possível. Do lado em que estava, mal dei atenção para o palácio Vendramin-Calergi. Fiquei mais ocupado em observar a Ca’ Pesaro, mais adiante, no lado oposto, ou esperar a ponte de Rialto aparecer aos poucos na curva do Grande Canal.
Era uma sexta-feira, o movimento comercial era grande. Passamos por uma feira livre e já entrevíamos a ponte da Accademia e o contorno de Santa Maria della Salute, dissolvida na névoa que um sol distante e opaco tentava inutilmente vencer.
Ludmila tiritava de frio.
Na Piazzetta di San Marco, ruído, chineses, russos, brasileiros, mexicanos, franceses, alemães e norte-americanos às dúzias; mal se via a ilha de São Jorge do outro lado das águas. Veneza é agressivamente venal: nas barracas, quinquilharias de vidro de Murano, máscaras plásticas feitas na China, camisetas, ímãs de geladeira na forma da Torre de Pisa, do Coliseu, do Davi, de Michelangelo. Chaveiros com pequenas gôngolas. O mundo moderno com toda a sua banalidade espalhafatosa. A comida era ruim e os preços, indecentes. Vimos alguns mendigos, que nos pareceram o que havia de mais autêntico na cidade.
Enfim, parecia que perdéramos o dia, mas a tarde trouxe surpresas boas. A Escola de São Roque estava vazia e pudemos ficar a sós com os painéis de Tintoretto. O sol apareceu à tarde e iluminou a sacada da Basílica de São Marcos, de onde olhávamos a praça que, aos poucos, esvaziava.
fachada da Basílica de São Marcos |
Voltamos a pé para a estação Santa Lucia, caminhando pelos becos desde o teatro La Fenice.
VII
Veneza nos foi menos ingrata depois. Não fazia tanto frio, ou o céu azul dava alguma consolação a nós, que viemos do Sul. Nosso plano era simplesmente vagar desde a Accademia até a ponta da Dogana, onde podíamos ver a fachada da igreja de Palladio, e margear o canal da Giudecca.
Os turistas estavam alhures, nos lugares de sempre, enquanto nós podíamos nos sentar junto ao canal, cujas águas tinham um verde prateado que ofuscava os mergulhões preguiçosos de asas abertas.
ponta da Dogana del Mare |
A fachada da igreja de San Giorgio, de Andrea Palladio |
Os turistas estavam alhures, nos lugares de sempre, enquanto nós podíamos nos sentar junto ao canal, cujas águas tinham um verde prateado que ofuscava os mergulhões preguiçosos de asas abertas.
O canal da Giudecca: ao fundo a Basílica do Santíssimo Redentor |
Embrenhamo-nos por Dorsoduro.
Um dos canais de Dorsoduro |
Em frente à igreja de São Sebastião, em que se restauravam os afrescos do Veronese, eu tentava adivinhar qual seria a casa de Giorgio Agamben. Muitas mães tomavam sol com os bambinos no Campo Santa Margherita. Nenhum fotógrafo amador na pequena ponte diante de Santa Maria dei Frari.
Em Rialto, uma adolescente japonesa usava o i-pad como espelho para arranjar a franja. Do outro lado do Grande Canal, driblamos as hordas estáticas para chegar a tempo de contemplar a luz da tarde refletida nos mármores de Santa Maria dei Miracoli.
No Palácio dos Doges, olhamos com entediado respeito as salas monumentais onde, outrora, ditava-se o destino dos mares Adriático e Egeu. Na Ponte dos Suspiros, ao sairmos dos calabouços, vi que a noite caía. Já libertos, vadiamos pela Riva degli Schiavoni.
Ao longe, víamos o Lido reduzido a uma poeira de luz aureolada pelo vapor que subia da laguna. Eu sorri, lembrando das luzes do Vidigal, quando se vai pelo calçadão de Ipanema rumo ao Leblon. Só luzes no azul quase negro. Sem brumas de heróis, nem louros do Janícolo, sem doges nem Casanovas.
Veneza não nos enganou dessa vez.
Ao longe, víamos o Lido reduzido a uma poeira de luz aureolada pelo vapor que subia da laguna. Eu sorri, lembrando das luzes do Vidigal, quando se vai pelo calçadão de Ipanema rumo ao Leblon. Só luzes no azul quase negro. Sem brumas de heróis, nem louros do Janícolo, sem doges nem Casanovas.
Veneza não nos enganou dessa vez.
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