terça-feira, 6 de agosto de 2013

Il moto non è diverso dalla stasi #3






VERONA



Formas belas, singulares e irregulares (1786)

Na madrugada de 3 de setembro de 1786, poucos dias depois de ter comemorado seu aniversário de 37 anos, Goethe iniciou sua longa viagem pela Itália como um verdadeiro fugitivo. “Munido apenas de uma alforje e uma mochila de pele de texugo, lancei-me sozinho numa mala-posta e cheguei a Zwota às sete e meia (...) Após um verão tão ruim, tinha esperança de desfrutar de um belo outono.” (Goethe, Viagem à Itália, tradução Sergio Tellaroli, Companhia das Letras).

Junto ao Grande Brenner, o maciço divisor de águas, sempre atento às variações das formas, Goethe notou que “os Alpes calcários, que são os que venho atravessando até agora, possuem cor cinza e formas belas, singulares e irregulares, muita embora a rocha se divida em estratos e bancos.” (idem, 8 de setembro).  Logo adiante do Passo Brenner, começavam os vales íngremes do alto Ádige escoltados pelo recorte caprichoso das Dolomitas. As portas da Itália tão sonhada estavam abertas.

Ao chegar a Verona, no dia 16, Goethe admirou o anfiteatro romano (“o primeiro monumento importante da antiguidade que vejo, e tão bem conservado!”), visitou o museu lapidário fundado pelo marquês Maffei, olhou atentamente o movimento das lojas e oficinas, comentou a vesta de tafetá preto que as mulheres usavam sobre a saia e a zendale com que elas cobriam  cabeça e ombros. Quatro homens jovens de Verona jogavam uma partida de bola contra a equipe de Vicenza. Uma multidão assistia à disputa. Ele gostou das pinturas que viu nas galerias e espantou-se com o movimento da piazza Brà no final da tarde: “Uma hora, uma hora e meia antes do cair da noite, a nobreza começa a sair de casa rumo ao Brà, à rua comprida e larga que conduz à Porta Nuova, atravessando-a em direção à cidade; e, quando a noite chega, fazem todos o caminho inverso. Uma parte vai à igreja, rezar a Ave Maria della sera; outros detêm-se no Brà – os cavalheiros achegam-se às carruagens e põem-se a conversar com as damas; e tudo isso dura algum tempo; nunca esperei pelo final, pois os pedestres permanecem nas ruas até altas horas da noite.” (Viagem à Itália, 17 de setembro).

Os pedestres certamente estranharam o forasteiro tedesco que atravessava o Brà abraçado a ramos de cipreste. “Tais ramos, eu os apanhara no jardim Giusti, que goza de uma maravilhosa localização e abriga ciprestes gigantescos, alçando-se às alturas feito sovelas (...) Uma árvore cujos galhos todos, os jovens e os velhos, de alto a baixo, almejam o céu e que, ademais, vive por volta de trezentos anos é decerto digna de veneração. A julgar pela época em que o jardim foi plantado, seus ciprestes hão já de ter alcançado uma tal idade.” (idem, 17 de setembro).

A entrada do Giardino Giusti: foto de Ludmila Ciuffi



O anão e o corcunda (1913)


Vindo de Veneza, Kafka chegou a Verona em setembro de 1913. Trazia na bagagem uma edição da Viagem à Itália, de Goethe. O noivado com Felice Bauer não andava bem; Kafka estava infeliz e passou pouco tempo na cidade. 

O período italiano de Kafka sempre suscitou, entre os intérpretes, especulações desencontradas e fantasiosas, contra as quais reagiu Reiner Stach com certa exasperação: (...) Nor we do know how he spent the following one or two days in Verona, apart from the fact that he peeked in on a public festival, watched a melodrama at the movies with tears in his eyes, and sat morosely in the Church of Sant'Anastasia, which was recommended in all the tourist guides. (Kafka: the decisive years, capítulo 25, Harcourt Books)

Tudo o que se sabe daquela curtíssima passagem por Verona está registrado nas mensagens que Kafka enviou à noiva, como o cartão postal de 20 de setembro:  "In the Church of Sant'Anastasia in Verona, where I am sitting wearily in a pew. Opposite stands a life-size marble dwarf who, with a blissful expression on his face, is supporting a holy-water basin. - I am entirely cutt off from all mail, won't get any until the day after tomorrow in Riva, which makes me feel as though I were on some other planet; but otherwise I’m here in all my misery. "(Franz Kafka, Letters to Felice, tradução de  James Stern and Elisabeth Duckworth, Schocken Books)


nave central da igreja de Santa Anastácia

De volta à Praga, ele admitiria que “the postcard from Verona was not a postcard but a collapse” (idem, 29 de outubro)

Uma semana depois, Kafka acrescentou a uma carta outro importante registro feito em Verona: "I don't keep a diary at all, I wouldn't know what for; nothing happens to me to stir my inmost self. This applies even if I weep, as I did yesterday in a cinematographic theater in Verona. I am capable of enjoying human relationships, but not experiencing them. This I can verify again and again: yesterday at a fiesta in Verona, before that with the honeymoon couples in Venice." (idem, 6 de novembro)

Não se sabe que filme fez Kafka chorar nem em que sala de cinema isso aconteceu. Hans Zischler acredita que foi no desaparecido Cinema Calzoni (Kafka vai ao cinema, Prefácio, Jorge Zahar editor). O homem de mármore que sustenta a pia de água benta de Santa Anastácia continua lá. No entanto, é preciso observar que, para os veroneses, não se trata de um anão, mas de um corcunda (cf. Mario Patuzzo, Verona: romana, medievale, scaligera, p. 289). 

Por que Kafka achou que o corcunda era um anão?


Il gobbo em janeiro de 2013


O pó cintilante no cone de luz (1980-1987)


Na década de 1960, W.G. Sebald foi viver na Inglaterra, onde deu aulas nas universidades de Manchester e de East Anglia.  Seu primeiro romance  Vertigem: Sensações (Schwindel: Gefühle) foi publicado em 1990.  

O núcleo do romance são duas viagens feitas por um narrador sem nome, dado a achaques inexplicáveis e pressentimentos agourentos, na sua tentativa de seguir a trilha de Kafka na Itália. 

Na primeira viagem, em 1980, o narrador aluga um quarto em Verona e, em seguida, vai ao Giardino Giusti. “Lá passei as primeiras horas da tarde, deitado em um banco de pedra sob um cedro. Escutei o vento roçando de lá para cá os galhos e o som delicado do jardineiro limpando com ancinho as trilhas de cascalho entre as sebes baixas de arbustos, cujo aroma suave ainda enchia o ar, mesmo no outono” (Vertigem, Companhia das Letras, p.58)


Giardino Giusti visto do tempietto de Venere

Na igreja de Santa Anastácia, aprecia o afresco de São Jorge com a Princesa, que Pisanello pintou em 1435. 


O estado atual (2013) do afresco de Pisanello em Santa Anastácia

No entanto, uma sensação crescente de opressão o leva a partir imediatamente da cidade. 

Sete anos depois, vindo de Veneza e depois de uma breve parada em Pádua, onde visitou a Capela dos Scrovegni, o narrador é imobilizado por súbita vertigem na hora de desembarcar na estação Porta Nuova em Verona. Ele desiste e vai para Desenzano e para Milão.

Enfim toma a resolução de voltar a Verona e passa alguns dias na cidade. Na Biblioteca Cívica, consulta os velhos jornais de 1913. Encontra um amigo na piazza Brà e, tarde da noite, depois de alguns Fernet duplos, tem a impressão de ouvir as carruagens que, na época de Goethe, traziam cavalheiros para conversarem com as damas na praça. 

Na parte seguinte do romance, Sebald faz uma reconstituição bastante livre (unrealistic, segundo  Reiner Stach, op. cit.) do que teria sido a jornada solitária de Kafka em Verona no ano de 1913:

"Na tarde de sua chegada a Verona, ele seguiu a pé pelo Corso da estação até a cidade, e lá vagou longamente pelas ruas estreitas até entrar, na igreja de Santa Anastácia. Após descansar por uns instantes à meia-luz no ambiente fresco, com sensações ambíguas de gratidão e repugnância, pôs-se novamente a caminho, e ao sair correu os dedos, como se faz a um filho ou irmão menor, pelo cachos marmóreos de uma figura anã que, ao pé de uma das imponentes colunas, sustentava o peso imenso de uma pia de água benta. Nada sugere que ele tenha visto o belo mural de São Jorge pintado por Pisanello acima da entrada da capela dos Pellegrini. 
(...)
À noitinha, o dr. K. começou a reparar no volume crescente de pessoas nas ruas, ao que tudo indica com o único propósito de se divertirem, todas em pares ou mesmo em grupos de três ou quatro andando de braços dados. Talvez tenham sido os cartazes, ainda afixados por todo canto da cidade, anunciando os spettacoli lirici all’Arena do mês de agosto e a palavra AIDA impressa em letras garrafais que o induziram a achar que o espetáculo de despreocupação e harmonia dado pela população de Verona tinha algo de teatral, encenado expressamente para lhe apontar sua solidão e extravagância, um pensamento que não lhe saiu mais da cabeça e do qual só foi capaz de se livrar buscando refúgio em um cinema, provavelmente o Cinema Pathé di San Sebastiano. Aos prantos, registrou o dr. K. no dia seguinte em Desenzano, ele ficou ali sentado na escuridão daquela sala de cinematógrafo, seguinda a transformação em imagens das minúsculas partículas de pó cintilantes no cone de luz do projetor. As notas tomadas em Desenzano, todavia, não contém nenhuma referência ao que o dr. K. viu nesse dia 20 de setembro em Verona."  (Vertigem, Companhia das Letras, pp. 116-117). 



Via Duomo


Via Pigna


Nota explicativa


Sebald supõe que o filme que levou Kafka às lágrimas pode ter sido “O Estudante de Praga”, lançado naquele ano de 1913.  Ainda que seja verdade, cabe entender de que maneira o filme teria comovido Kafka. A tarefa não é trivial. Os dois maiores estudiosos do cinema “expressionista” alemão concordam com o valor e a novidade do filme de Paul Wegener, mas divergem quanto à sua relação com a cultura alemã.

Lotte Eisner, para quem o cinema alemão tem um caráter visionário de matriz romântica, afirma que “com o Estudante de Praga, os alemães compreenderam imediatamente que o cinema pode se tornar o médium por excelência de sua angústia romântica, permitindo reproduzir o clima fantástico das visões vagas que se esfumam na profundidade infinita da tela, espaço real que escapa ao tempo.” (A Tela Demoníaca, Paz e Terra, p. 40). 

Para Siefried Kracauer, de formação marxista, os elementos fantásticos do cinema são sintomas do mal-estar da sociedade alemã: “O Estudante de Praga introduziu um tema que se tornaria uma obsessão do cinema alemão: uma profunda e terrível preocupação com os fundamentos do eu. (...) A determinação com a qual o Estudante de Praga trata sua estória de horror como um caso de psicologia individual é também reveladora. Toda ação externa é apenas uma miragem que reflete os acontecimentos na alma de Baldwin. Baldwin não é parte do mundo; o mundo está contido em Baldwin. Para descrevê-lo, então, nada mais apropriado do que localizar o enredo numa esfera fantástica onde a realidade social não tinha de ser considerada (...) O significado cósmico atribuído  à vida interior de Baldwin reflete a profunda aversão de toda a classe média alemã a relacionar seus dilemas mentais à sua ambígua condição social.” (De Caligari a Hitler, Jorge Zahar Editor, p. 44)


San Zen che ride  (2012-2013)


Na entrada de igreja de San Fermo passamos muito tempo observando as portas de bronze de Luciano Minguzzi, artista pelo qual temos grande admiração desde que vimos sua "porta dos mártires" na Basílica de São Pedro, em Roma. Restou-nos, assim, pouco tempo para percorrer a igreja superior e quase tive que implorar para que o funcionário, com pressa de sair para o almoço, nos permitisse descer até a escura igreja inferior, remanescente do terremoto de 1117. Fomos os últimos a sair. Aliviado e pressuroso, o funcionário fechou as portas de Minguzzi atrás de nós. 

Estávamos sem pressa e sem fome. Atravessamos a ponte Navi e fomos seguindo o Ádige na direção do Castelo San Pietro. 


Verona vista do Castelo San Pietro (2012)


Embora fosse janeiro, o sábado era de sol. Não tínhamos vontade de subir novamente até o castelo. Muito melhor seria tomar um café em algum beco quieto perto do rio. Voltamos pelo Interrato Acqua Morta.  O asfalto cegava de tanta luz. Ninguém nas ruas, exceto um homem, com forte sotaque camponês, que me perguntou onde era a agência do correio mais próxima. Eu lhe expliquei que, naquela hora, as agências já deviam estar todas fechadas. Ele se foi decepcionado e nós entramos num café sem nome na Piazzeta Santa Maria in Organo, onde uma jovem com a serenidade despreocupada típica de Verona nos serviu uma torta de amêndoas deliciosa. Eu lhe perguntei se estávamos longe do Giardino Giusti. Ela respondeu que bastava seguir a rua atrás do café. 


Giardino Giusti: ao fundo, o tempietto de Venere e a torre de Santa Anastácia


Não sei quanto tempo andamos pelos ciprestes, estalando o cascalho entre as sebes. Não havia mais ninguém. Talvez fosse por isso que o bilheteiro nos recebeu com tanta solicitude. Eu me deitei por uns instantes num banco, mas o achei bastante desconfortável. Subimos até a balaustrada do mascherone  que, do alto, vigia todo o jardim. Verona começava a se perder na névoa da tarde. 

Ao sair do jardim, visitamos ali perto um monumento recente, dedicado aos judeus deportados de Verona. 


Monumento aos Deportados de Verona perto de Santa Mariai n Organo: foto de Ludmila Ciuffi


Depois de molharmos as mãos nas águas geladas do Ádige, continuamos ao longo do  rio passando por San Giorgio in Braida.
 




San Giorgio in Braida

Paramos num pequeno bar, onde duas velhinhas jogavam cartas. Tomamos café e uma grappa excelente, cujo nome infelizmente não me lembrei de perguntar. Na ponte Risorgimento, atravessamos para San Zeno. O sol já tinha se posto e eram apenas quatro e meia da tarde. 

Mosteiro, Basílica e Campanário de San Zeno: foto de Ludmila Cuffi


claustro do mosteiro de San Zeno

San Zeno, bispo de Verona no século IV, foi o mais simpático dos santos. Nascido no norte da África, jovem, risonho, ele era o bispo "mouro" que gostava de pescar na curva do Ádige usando o báculo episcopal. 

Depois de percorrer novamente aquela igreja de que gostamos tanto - e observarmos à exaustão as placas de bronze medievais que compõem a porta -, acendemos cada um de nós uma vela pedindo a intercessão de San Zeno, para que nunca nos falte a graça e o riso. 

A estátua de "San Zen che ride": foto de Ludmila Ciuffi


Antes de voltarmos para o hotel, passamos pela Piazza Brà. Parecia que toda a Verona passeava entre as barracas de strudel de Bolzano e de vinho quente feito com Valpolicella. Ludmila comprou um pão muito gostoso que fez companhia a uma garrafa de Amarone, que eu trouxe do supermercado PAM, a caminho do hotel.  

Por volta da meia-noite, quando saímos mais uma vez, ainda havia muitos passantes nas ruas e vários fotógrafos amadores disputavam espaço em volta da estátua de Dante na piazza dei Signori.



A estátua de Dante na Piazza dei Signori: foto de Ludmila Ciuffi


No dia seguinte, um domingo nublado, o povo elegeu o Papà del Gnocco, uma espécie de rei Momo do carnaval veronês. É pena não termos visto a festa do vencedor. Tínhamos ido para Pádua.




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