FLORENÇA
Em agosto de 1512, os aliados da família Medici, apoiados pelas tropas do Papa Júlio II, obrigaram o gonfaloneiro Soderini a renunciar. Niccollò Machiavelli, chanceler da Segunda Chancelaria e secretário do Conselho dos Dez, manteve a esperança de que pudesse permanecer no novo governo. Vã esperança. No dia 7 de novembro, ele foi cassado e removido dos seus cargos.
Da maneira mais lacônica, o ex-chanceler chamava esse período de “post res perditas”. Retirou-se para a sua quinta em Sant’Andrea in Percussina, não muito longe de Florença, levando uma vida cuja rotina descreveu em um trecho célebre:
"De manhã me levanto com a aurora, e me vou por uma das áreas que mandei desmatar em meu bosque, onde permaneço por duas horas a revisar o trabalho do dia anterior e a conversar com os lenhadores que sempre tem alguma encrenca pelas mãos, ou entre eles e os vizinhos... Saindo da mata, vou a uma fonte, e dali a um aviário meu. Carrego um livro, Dante ou Petrarca, ou um desses poetas menores, como Tibulo, Ovídio, e similares; leio daquelas suas paixões, de seus amores e lembro-me dos meus; delicio-me por algum tempo com essa ideia. Dirijo-me depois à taverna, junto à estrada: falo com os que passam, pergunto pelas novidades em seus povoados, ouço diversas coisas e observo os diversos gostos e as diversas fantasias das pessoas. Enquanto isso, chega a hora do almoço e com minha gente como os alimentos que este sitio pobre, este magro patrimônio oferece. Depois de comer, volto à taverna onde habitualmente encontro o taverneiro, o açougueiro, um moleiro e dois padeiros. Com eles me entretenho o restante do dia jogando cricca, e triquetraque, e depois vem mil discussões e infinitos desaforos com palavras injuriosas; e na maior parte do tempo briga-se por um vintém, e nossa gritaria se ouve nada menos que até em San Casciano. Assim, em meio a esses piolhos, extraio o meu cérebro do mofo, e alivio a malvadez desta minha sorte, contente que ela me tenha rebaixado desta maneira porque um dia poderá se envergonhar de ter feito isto.
Quando a noite vem, volto para casa e entro no meu escritório e, na entrada, tiro a roupa cotidiana cheia de lama e sujeira e ponho roupas simples e adequadas; e, vestido convenientemente, entro em antigas cortes de antigos homens, onde, recebido amavelmente, me nutro do alimento que é solum meu e para o qual nasci; onde não me envergonho de falar com eles, de perguntar a respeito das razões de suas ações, e eles, por bondade, me respondem; não sinto, por quatro horas, tédio algum, esqueço toda preocupação, não temo a pobreza, não fico acabrunhado com a morte: transporto-me inteiramente para eles. E como diz Dante que não se faz ciência sem reter o que se entendeu, anotei o que pela conversação deles retive ser essencial e compus De Principatibus..."
O chanceler perdera, para nunca mais recuperá-los, seus cargos e honrarias, porém o ócio das horas vespertinas de cricca e de troca de impropérios, em Sant’Andrea in Percussina, deu a Machiavelli, uma vez retirado dos negócios de Estado, a ocasião para pensar neles à luz da sua grande experiência e da sabedoria dos antigos, exercitando sua pena profícua não mais em cartas sigilosas e relatórios para o Conselho, mas nas obras de fôlego que ainda hoje fazem a honra de seu nome e nas quais outros exilados encontraram alívio e substância para seus próprios pensamentos naquele regime noturno de conversação que é uma das mais elevadas alegrias do espírito.
Andrei Tarkovski, guiado pelo roteirista Tonino Guerra, passou boa parte do ano de 1979 procurando locações na Itália para o seu próximo filme, que ganharia o título de Nostalghia, mas ainda era conhecido pelo nome provisório de O fim do mundo.
Em maio de 1980, o roteiro já estava pronto, mas Tarkovski ainda enfrentaria dois anos de provações no labirinto de burocracia e de má vontade construído pelas autoridades soviéticas da era Brezhnev, cada vez mais embaraçadas com o misticismo do diretor russo, amplamente admirado na Europa Ocidental.
No dia 7 de março de 1982, finalmente Tarkovski saiu do seu apartamento na rua Mosfilms nº 1, 13º andar e dirigiu-se ao aeroporto de Moscou para pegar o avião para Roma. No entanto, os problemas não estavam resolvidos. A notícia da morte de Anatoli Solonitsyn, o ator favorito do diretor, com o qual fizera Andrei Rublev (1966) e Stalker (1979), obrigou Tarkovski a encontrar rapidamente alguém que pudesse interpretar o protagonista. A convite do diretor, Oleg Jankosvki aceitou o papel. As filmagens de Nostalghia começaram no outono de 1982.
Nostalghia é um filme sobre o exílio como distância física e como uma cisão interior que consome o exilado. A estrutura dramática é simples: Andrei, Eugenia e Domenico vivem, cada um à sua maneira, uma forma de exílio. Andrei (Oleg Jankosvki) está longe de seu país; Eugenia (Domiziana Giordano) procura uma felicidade que lhe escapa; Domenico (Erland Josephson) está apartado da sociedade por sua loucura.
Na Itália, Andrei procurava documentos para escrever a biografia de um servo russo que, no século XVIII, havia sido enviado a Bolonha para estudar música, mas, impelido pela nostalgia, voltara para a servidão na terra natal. Assim como o músico russo, Andrei também padece de uma dolorosa nostalgia, que paralisa sua pesquisa e leva-o a devaneios em que vê a esposa e os filhos. Apesar disso, não lhes telefona nem apressa o momento da volta. De algum modo, ele está preso à Itália, embora lhe pareça impossível que italianos e russos compreendam uns aos outros. A sua intérprete italiana Eugenia é prova dessa incompreensão. Eugenia está apaixonada por Andrei, mas não o entende e se exaspera. Da sua parte, Andrei acredita ingenuamente que a distância e a incompreensão são causadas pelas barreiras nacionais.
No hotel em que estão, em Bagno Vignoni, Andrei e Eugenia conhecem Domenico, um professor de matemática que ganhou fama de louco por ter aprisionado a família por sete anos a fim de salvá-la do fim do mundo. Andrei visita Domenico, que lhe explica que ele havia sido egoísta ao tentar salvar apenas sua família; era preciso salvar todo mundo, conduzindo os seres humanos à unidade primordial. Seu argumento é simples: uma gota de azeite mais uma gota de azeite fazem uma gota maior, não duas gotas (1 + 1 = 1). Se há separação entre os homens, ela não vem apenas das barreiras impostas pelos Estados. Os seres humanos estão apartados de si mesmos e exilados da natureza.
Quando se despedem, Domenico pede a Andrei que atravesse a piscina termal de Bagno Vignoni com uma vela acesa, como rito expiatório. Andrei volta para o hotel, sentindo que havia encontrado em Domenico alguém com quem podia se entender. Ao saber disso, Eugenia fica ultrajada. Como mulher moderna e independente que é, nada importa mais do que alcançar a felicidade através da competência profissional e do quantum de amor que ela puder obter com seus atrativos físicos. A renúncia e o sacrifício de si não tem sentido algum para Eugênia. Aos seus olhos, Andrei é um tipo de santo, um asceta que lhe causa fascinação e repulsa. Ela decide ir embora, certa de que vai encontrar um homem melhor.
Dias depois, Andrei liga para Eugenia para despedir-se: finalmente iria voltar para casa. Ela lhe conta que vivia agora com um homem rico e de estirpe. Avisa ainda que Domenico estava também em Roma e, há três dias, discursava em praça pública. Ao saber disso, Andrei resolve adiar sua viagem para atender ao pedido de Domenico: atravessar a piscina termal de Santa Catarina com uma vela acesa.
No Campidoglio, sobre a estátua de Marco Aurélio, Domenico ateia fogo em si mesmo ao fim do seu longo discurso. Em Bagno Vignoni, com muita dificuldade, Andrei consegue fazer a travessia para depositar a vela acesa do outro lado da piscina, porém seu coração não resiste e ele morre.
A imagem final, em sépia, mostra Andrei placidamente reclinado diante da sua casa russa, cercada pelas ruínas de uma grande igreja italiana. A terra natal e a terra de exílio se reconciliaram, ao menos no plano onírico.
O filme é dedicado à falecida mãe de Tarkovski.
Em 1983, o filme foi exibido em Cannes. Tudo indica que as autoridades soviéticas queriam impedir que o diretor ganhasse a Palma de Ouro. Para isso, o cineasta soviético Sergei Bondarchuk foi incluído como membro do júri para sabotar as chances de Tarkovski. O vencedor da Palma de Ouro foi A Balada de Narayama, de Shohei Imamura. Naquele ano, concorriam Carmen, de Carlos Saura, O Ano em que vivemos em Perigo, de Peter Weir, O Rei da Comédia, de Scorsese, Monty Python e o Sentido da Vida, de Terry Gilliam entre outros.
Para corrigir a intervenção escandalosa do governo soviético na escolha do prêmio máximo, foi especialmente instituído para a ocasião o Grande Prêmio do Cinema de Criação, atribuído ex aequo para Robert Bresson e para Andrei Tarkovski.
(Orson Welles, que ignorou Bresson durante a cerimônia, mostrou entusiasmo ao entregar o prêmio ao diretor russo em 17 de maio de 1983.)
No dia 10 de julho do ano seguinte, profundamente ofendido com a intromissão soviética, Tarkovski declarou que não voltaria para a URSS. Ele e sua esposa Larissa ficariam na Itália, embora o filho caçula ainda estivesse em Moscou.
A prefeitura de Florença ofereceu ao diretor russo um velho palácio na via San Niccollò, 91. Tarkosvski passou pouco tempo ali, pois logo partiu para a Suécia, onde filmou O Sacrifício. Durante os trabalhos de edição do filme, sentiu fortes dores no peito; os exames revelaram um câncer pulmonar. Por insistência da esposa, foi tratar-se com um famoso oncologista francês. O tratamento não teve êxito. Andrei Tarkovski foi enterrado em Paris em dezembro de 1986.
No momento em que finalmente pisei em Florença pela primeira vez, Maquiavel havia sido cassado há quinhentos anos e já não jogava cricca com o moleiro, o padeiro e o açougueiro do vilarejo. Ao menos quando passamos perto de San Casciano, não ouvimos gritos nem injúrias. Outros florentinos com quem mantive conversas noturnas estavam recolhidos a seus aposentos no panteão da basílica de Santa Croce. Parecia que eu tinha chegado tarde demais à festa. Ao menos eram os oitenta anos do nascimento de Tarkovski, que morrera em Paris, quando Ludmila e eu começávamos a namorar. Convenientemente também era o ano da Rússia na Itália, e o Batistério de Florença expunha um ícone de Andrei Rublev.
Embora, nos meses precedentes, eu pensasse muito a respeito daquele atordoamento de embriaguez suscitado por tantos pináculos da arte ocidental espremidos numas poucas centenas de metros quadrados - comoção que alguns alienistas zombeteiros batizaram de síndrome de Stendhal -, tudo o que tive ao desembarcar em Florença na estação Campo de Marte foi o dissabor de saber que Ludmila e Ivan não haviam conseguido descer a tempo e estavam a caminho de Roma, enquanto Beatriz e eu, com as malas que pudemos resgatar, olhávamos atônitos o Freccia que sumia no horizonte. Desolados, tentávamos nos consolar enquanto seguíamos para o hotel arrastando a bagagem pela calamidade das calçadas, entre a água das sarjetas e as fezes caninas. Isso também é Florença.
Quando Ludmila e Ivan finalmente entraram no saguão do hotel, duas horas e meia depois, vindos da aventura romana e da travessia da cidade desde a estação de Santa Maria Novella, tivemos que comer uns sanduíches ruins e caríssimos perto de Santa Croce. A cidade não se tornou melhor nos dias seguintes. Restou-me o consolo de margear o Arno no fim de tarde, voltando para o hotel, sonhando que as colinas toscanas aninhavam alguma cidade de Minas Gerais, para onde pudéssemos fugir.
A sereia florentina, que fala pelos guias turísticos, dá vislumbres de obra-primas insuperáveis e, para os mais impressionáveis, acena com uma versão romântica da transcendência: a promessa de participação extática no gênio. Todavia, a grandeza e a banalidade nunca estão muito longe uma da outra. Sempre me espanta que a condição comezinha em que arrastamos nossas vidas, o verdadeiro barro de que somos feitos, possa produzir, de tempos em tempos, obras de uma potência que não parece ser da nossa espécie, como o Perseu, de Cellini, para não falar do Davi, diante do qual a humanidade se reduz a uma situação constrangedora de pequenez e fraqueza; por força desse contraste, é cômico ver os turistas disputarem, como pombos, as migalhas de arte que se desprendem das esculturas da Loggia dei Lanzi.
A fim de entender Florença, sem sofrê-la, o melhor é subir com calma o caminho da Piazzale Michelangelo, colhendo folhas de louro, duras, enervadas e aromáticas, que bem servirão, não para coroas de herói, mas para o nosso feijãozinho brasileiro. Ou passear no cemitério atrás de São Miniato, depois de conversar com um certo monge de Ferrara, de fala mansa, que fica na lojinha do mosteiro à tarde. Os biscoitos são bons e podem ser comidos devagar enquanto se desce o caminho que passa pela muralha, em direção à rua de San Niccollò, onde, no número 91, Andrei Tarkovski viveu seu curto exílio florentino.
Certamente os mortos de Florença não ressuscitarão, mas nas ruas de Oltrarno, depois de tomarmos um cappuccino, na manhã fria, junto ao trabalhador que pede uma grappa para esquentar o peito, é bem possível que o Davi, descido do pedestal, se junte a nós, que desistimos de ser os turistas do ideal. E se o Davi se puser de cócoras, podemos até lhe mostrar as folhas de louro que colhemos para o nosso feijãozinho brasileiro, agora que, depois de tanto tempo longe de casa, bate forte nossa nostalgia.
Roberto Ridolfi, Biografia de Nicolau Maquiavel, editora Musa, 2003 | John Gianvito (ed), Andrei Tarkovsky: Interviews, University Press of Mississippi, 2006 | Sean Martin, Andrei Tarkovsky, Oldcastle Books, 2011| Shusei Nishi, Tarkovsky and his Time: Hidden truth of life Alt-arts LLC, 2011 | Aleksandr Sokurov, Melancolia de Moscou, 1987 | Andrei Tarkovski, Nostalghia, 1983 | Andrei Tarkovsky interviewed by Maurizio Porro 1983 | Andrei Tarkovsky interviewed by Natalia Aspesi 1983 | Tarkovsky talks to Gideon Bachman, on Nostalghia 1983
Um florentino exilado
Em agosto de 1512, os aliados da família Medici, apoiados pelas tropas do Papa Júlio II, obrigaram o gonfaloneiro Soderini a renunciar. Niccollò Machiavelli, chanceler da Segunda Chancelaria e secretário do Conselho dos Dez, manteve a esperança de que pudesse permanecer no novo governo. Vã esperança. No dia 7 de novembro, ele foi cassado e removido dos seus cargos.
Da maneira mais lacônica, o ex-chanceler chamava esse período de “post res perditas”. Retirou-se para a sua quinta em Sant’Andrea in Percussina, não muito longe de Florença, levando uma vida cuja rotina descreveu em um trecho célebre:
"De manhã me levanto com a aurora, e me vou por uma das áreas que mandei desmatar em meu bosque, onde permaneço por duas horas a revisar o trabalho do dia anterior e a conversar com os lenhadores que sempre tem alguma encrenca pelas mãos, ou entre eles e os vizinhos... Saindo da mata, vou a uma fonte, e dali a um aviário meu. Carrego um livro, Dante ou Petrarca, ou um desses poetas menores, como Tibulo, Ovídio, e similares; leio daquelas suas paixões, de seus amores e lembro-me dos meus; delicio-me por algum tempo com essa ideia. Dirijo-me depois à taverna, junto à estrada: falo com os que passam, pergunto pelas novidades em seus povoados, ouço diversas coisas e observo os diversos gostos e as diversas fantasias das pessoas. Enquanto isso, chega a hora do almoço e com minha gente como os alimentos que este sitio pobre, este magro patrimônio oferece. Depois de comer, volto à taverna onde habitualmente encontro o taverneiro, o açougueiro, um moleiro e dois padeiros. Com eles me entretenho o restante do dia jogando cricca, e triquetraque, e depois vem mil discussões e infinitos desaforos com palavras injuriosas; e na maior parte do tempo briga-se por um vintém, e nossa gritaria se ouve nada menos que até em San Casciano. Assim, em meio a esses piolhos, extraio o meu cérebro do mofo, e alivio a malvadez desta minha sorte, contente que ela me tenha rebaixado desta maneira porque um dia poderá se envergonhar de ter feito isto.
Quando a noite vem, volto para casa e entro no meu escritório e, na entrada, tiro a roupa cotidiana cheia de lama e sujeira e ponho roupas simples e adequadas; e, vestido convenientemente, entro em antigas cortes de antigos homens, onde, recebido amavelmente, me nutro do alimento que é solum meu e para o qual nasci; onde não me envergonho de falar com eles, de perguntar a respeito das razões de suas ações, e eles, por bondade, me respondem; não sinto, por quatro horas, tédio algum, esqueço toda preocupação, não temo a pobreza, não fico acabrunhado com a morte: transporto-me inteiramente para eles. E como diz Dante que não se faz ciência sem reter o que se entendeu, anotei o que pela conversação deles retive ser essencial e compus De Principatibus..."
O chanceler perdera, para nunca mais recuperá-los, seus cargos e honrarias, porém o ócio das horas vespertinas de cricca e de troca de impropérios, em Sant’Andrea in Percussina, deu a Machiavelli, uma vez retirado dos negócios de Estado, a ocasião para pensar neles à luz da sua grande experiência e da sabedoria dos antigos, exercitando sua pena profícua não mais em cartas sigilosas e relatórios para o Conselho, mas nas obras de fôlego que ainda hoje fazem a honra de seu nome e nas quais outros exilados encontraram alívio e substância para seus próprios pensamentos naquele regime noturno de conversação que é uma das mais elevadas alegrias do espírito.
Catedral de Santa Maria dei Fiore |
Ponte Vecchio e os Uffizi |
Um exilado em Florença
Andrei Tarkovski, guiado pelo roteirista Tonino Guerra, passou boa parte do ano de 1979 procurando locações na Itália para o seu próximo filme, que ganharia o título de Nostalghia, mas ainda era conhecido pelo nome provisório de O fim do mundo.
Em maio de 1980, o roteiro já estava pronto, mas Tarkovski ainda enfrentaria dois anos de provações no labirinto de burocracia e de má vontade construído pelas autoridades soviéticas da era Brezhnev, cada vez mais embaraçadas com o misticismo do diretor russo, amplamente admirado na Europa Ocidental.
No dia 7 de março de 1982, finalmente Tarkovski saiu do seu apartamento na rua Mosfilms nº 1, 13º andar e dirigiu-se ao aeroporto de Moscou para pegar o avião para Roma. No entanto, os problemas não estavam resolvidos. A notícia da morte de Anatoli Solonitsyn, o ator favorito do diretor, com o qual fizera Andrei Rublev (1966) e Stalker (1979), obrigou Tarkovski a encontrar rapidamente alguém que pudesse interpretar o protagonista. A convite do diretor, Oleg Jankosvki aceitou o papel. As filmagens de Nostalghia começaram no outono de 1982.
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Nostalghia é um filme sobre o exílio como distância física e como uma cisão interior que consome o exilado. A estrutura dramática é simples: Andrei, Eugenia e Domenico vivem, cada um à sua maneira, uma forma de exílio. Andrei (Oleg Jankosvki) está longe de seu país; Eugenia (Domiziana Giordano) procura uma felicidade que lhe escapa; Domenico (Erland Josephson) está apartado da sociedade por sua loucura.
Na Itália, Andrei procurava documentos para escrever a biografia de um servo russo que, no século XVIII, havia sido enviado a Bolonha para estudar música, mas, impelido pela nostalgia, voltara para a servidão na terra natal. Assim como o músico russo, Andrei também padece de uma dolorosa nostalgia, que paralisa sua pesquisa e leva-o a devaneios em que vê a esposa e os filhos. Apesar disso, não lhes telefona nem apressa o momento da volta. De algum modo, ele está preso à Itália, embora lhe pareça impossível que italianos e russos compreendam uns aos outros. A sua intérprete italiana Eugenia é prova dessa incompreensão. Eugenia está apaixonada por Andrei, mas não o entende e se exaspera. Da sua parte, Andrei acredita ingenuamente que a distância e a incompreensão são causadas pelas barreiras nacionais.
No hotel em que estão, em Bagno Vignoni, Andrei e Eugenia conhecem Domenico, um professor de matemática que ganhou fama de louco por ter aprisionado a família por sete anos a fim de salvá-la do fim do mundo. Andrei visita Domenico, que lhe explica que ele havia sido egoísta ao tentar salvar apenas sua família; era preciso salvar todo mundo, conduzindo os seres humanos à unidade primordial. Seu argumento é simples: uma gota de azeite mais uma gota de azeite fazem uma gota maior, não duas gotas (1 + 1 = 1). Se há separação entre os homens, ela não vem apenas das barreiras impostas pelos Estados. Os seres humanos estão apartados de si mesmos e exilados da natureza.
Quando se despedem, Domenico pede a Andrei que atravesse a piscina termal de Bagno Vignoni com uma vela acesa, como rito expiatório. Andrei volta para o hotel, sentindo que havia encontrado em Domenico alguém com quem podia se entender. Ao saber disso, Eugenia fica ultrajada. Como mulher moderna e independente que é, nada importa mais do que alcançar a felicidade através da competência profissional e do quantum de amor que ela puder obter com seus atrativos físicos. A renúncia e o sacrifício de si não tem sentido algum para Eugênia. Aos seus olhos, Andrei é um tipo de santo, um asceta que lhe causa fascinação e repulsa. Ela decide ir embora, certa de que vai encontrar um homem melhor.
Dias depois, Andrei liga para Eugenia para despedir-se: finalmente iria voltar para casa. Ela lhe conta que vivia agora com um homem rico e de estirpe. Avisa ainda que Domenico estava também em Roma e, há três dias, discursava em praça pública. Ao saber disso, Andrei resolve adiar sua viagem para atender ao pedido de Domenico: atravessar a piscina termal de Santa Catarina com uma vela acesa.
No Campidoglio, sobre a estátua de Marco Aurélio, Domenico ateia fogo em si mesmo ao fim do seu longo discurso. Em Bagno Vignoni, com muita dificuldade, Andrei consegue fazer a travessia para depositar a vela acesa do outro lado da piscina, porém seu coração não resiste e ele morre.
A imagem final, em sépia, mostra Andrei placidamente reclinado diante da sua casa russa, cercada pelas ruínas de uma grande igreja italiana. A terra natal e a terra de exílio se reconciliaram, ao menos no plano onírico.
O filme é dedicado à falecida mãe de Tarkovski.
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Em 1983, o filme foi exibido em Cannes. Tudo indica que as autoridades soviéticas queriam impedir que o diretor ganhasse a Palma de Ouro. Para isso, o cineasta soviético Sergei Bondarchuk foi incluído como membro do júri para sabotar as chances de Tarkovski. O vencedor da Palma de Ouro foi A Balada de Narayama, de Shohei Imamura. Naquele ano, concorriam Carmen, de Carlos Saura, O Ano em que vivemos em Perigo, de Peter Weir, O Rei da Comédia, de Scorsese, Monty Python e o Sentido da Vida, de Terry Gilliam entre outros.
Para corrigir a intervenção escandalosa do governo soviético na escolha do prêmio máximo, foi especialmente instituído para a ocasião o Grande Prêmio do Cinema de Criação, atribuído ex aequo para Robert Bresson e para Andrei Tarkovski.
(Orson Welles, que ignorou Bresson durante a cerimônia, mostrou entusiasmo ao entregar o prêmio ao diretor russo em 17 de maio de 1983.)
No dia 10 de julho do ano seguinte, profundamente ofendido com a intromissão soviética, Tarkovski declarou que não voltaria para a URSS. Ele e sua esposa Larissa ficariam na Itália, embora o filho caçula ainda estivesse em Moscou.
A prefeitura de Florença ofereceu ao diretor russo um velho palácio na via San Niccollò, 91. Tarkosvski passou pouco tempo ali, pois logo partiu para a Suécia, onde filmou O Sacrifício. Durante os trabalhos de edição do filme, sentiu fortes dores no peito; os exames revelaram um câncer pulmonar. Por insistência da esposa, foi tratar-se com um famoso oncologista francês. O tratamento não teve êxito. Andrei Tarkovski foi enterrado em Paris em dezembro de 1986.
Via San Niccollò, 91, Florença |
Via San Niccollò, Florença |
Via di Belvedere, Florença |
Os louros da Piazzale Michelangelo
No momento em que finalmente pisei em Florença pela primeira vez, Maquiavel havia sido cassado há quinhentos anos e já não jogava cricca com o moleiro, o padeiro e o açougueiro do vilarejo. Ao menos quando passamos perto de San Casciano, não ouvimos gritos nem injúrias. Outros florentinos com quem mantive conversas noturnas estavam recolhidos a seus aposentos no panteão da basílica de Santa Croce. Parecia que eu tinha chegado tarde demais à festa. Ao menos eram os oitenta anos do nascimento de Tarkovski, que morrera em Paris, quando Ludmila e eu começávamos a namorar. Convenientemente também era o ano da Rússia na Itália, e o Batistério de Florença expunha um ícone de Andrei Rublev.
Embora, nos meses precedentes, eu pensasse muito a respeito daquele atordoamento de embriaguez suscitado por tantos pináculos da arte ocidental espremidos numas poucas centenas de metros quadrados - comoção que alguns alienistas zombeteiros batizaram de síndrome de Stendhal -, tudo o que tive ao desembarcar em Florença na estação Campo de Marte foi o dissabor de saber que Ludmila e Ivan não haviam conseguido descer a tempo e estavam a caminho de Roma, enquanto Beatriz e eu, com as malas que pudemos resgatar, olhávamos atônitos o Freccia que sumia no horizonte. Desolados, tentávamos nos consolar enquanto seguíamos para o hotel arrastando a bagagem pela calamidade das calçadas, entre a água das sarjetas e as fezes caninas. Isso também é Florença.
Quando Ludmila e Ivan finalmente entraram no saguão do hotel, duas horas e meia depois, vindos da aventura romana e da travessia da cidade desde a estação de Santa Maria Novella, tivemos que comer uns sanduíches ruins e caríssimos perto de Santa Croce. A cidade não se tornou melhor nos dias seguintes. Restou-me o consolo de margear o Arno no fim de tarde, voltando para o hotel, sonhando que as colinas toscanas aninhavam alguma cidade de Minas Gerais, para onde pudéssemos fugir.
A sereia florentina, que fala pelos guias turísticos, dá vislumbres de obra-primas insuperáveis e, para os mais impressionáveis, acena com uma versão romântica da transcendência: a promessa de participação extática no gênio. Todavia, a grandeza e a banalidade nunca estão muito longe uma da outra. Sempre me espanta que a condição comezinha em que arrastamos nossas vidas, o verdadeiro barro de que somos feitos, possa produzir, de tempos em tempos, obras de uma potência que não parece ser da nossa espécie, como o Perseu, de Cellini, para não falar do Davi, diante do qual a humanidade se reduz a uma situação constrangedora de pequenez e fraqueza; por força desse contraste, é cômico ver os turistas disputarem, como pombos, as migalhas de arte que se desprendem das esculturas da Loggia dei Lanzi.
A fim de entender Florença, sem sofrê-la, o melhor é subir com calma o caminho da Piazzale Michelangelo, colhendo folhas de louro, duras, enervadas e aromáticas, que bem servirão, não para coroas de herói, mas para o nosso feijãozinho brasileiro. Ou passear no cemitério atrás de São Miniato, depois de conversar com um certo monge de Ferrara, de fala mansa, que fica na lojinha do mosteiro à tarde. Os biscoitos são bons e podem ser comidos devagar enquanto se desce o caminho que passa pela muralha, em direção à rua de San Niccollò, onde, no número 91, Andrei Tarkovski viveu seu curto exílio florentino.
Certamente os mortos de Florença não ressuscitarão, mas nas ruas de Oltrarno, depois de tomarmos um cappuccino, na manhã fria, junto ao trabalhador que pede uma grappa para esquentar o peito, é bem possível que o Davi, descido do pedestal, se junte a nós, que desistimos de ser os turistas do ideal. E se o Davi se puser de cócoras, podemos até lhe mostrar as folhas de louro que colhemos para o nosso feijãozinho brasileiro, agora que, depois de tanto tempo longe de casa, bate forte nossa nostalgia.
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Cripta de Santa Maria Novella |
Loggia dei Lanzi foto: Ludmila Ciuffi |
Perseu, de Cellini, Loggia dei Lanzi foto: Ludmila Ciuffi |
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