terça-feira, 10 de setembro de 2013

Il moto non è diverso dalla stasi #8





SIENA




Entre dois acidentes

Os habitantes da pequena cidade toscana de Castiglione della Pescaia se orgulham da beleza de Roccamare, cujas praias banhadas pelo Tirreno atraíram celebridades como Sophia Loren, Claudia Cardinale e Monica Bellucci. Ítalo Calvino também gostava do lugar. Desde 1973, sempre passava as suas férias estivais na casa que lá mandou construir.

No seu último verão em Roccamare, Calvino sofreu um AVC enquanto trabalhava na série de conferências que faria em Harvard. Foi levado para Siena, a cerca de cem quilômetros, onde foi internado no hospital Santa Maria della Scala. Na noite de 18 para 19 de setembro de 1985, Ítalo Calvino morreu de uma hemorragia cerebral. O corpo do escritor foi sepultado no cemitério de Castiglione. 

Calvino nunca teve ligação com Siena, onde acidentalmente morreu, nem com Havana, onde acidentalmente nasceu em 1923. Entre esses dois acidentes, com aquela adequação irônica que é a marca do puro acaso, transcorreu toda a vida do homem que escreveu O Castelo dos Destinos Cruzados.

O hospital Santa Maria della Scala, um dos mais antigos da Europa, foi desativado no final da década de 80. Nos anos seguintes, cedeu lugar a um complexo de museus. Quando conheci Siena, lá se expunham os trabalhos de Milo Manara. A Madona da Catedral era comicamente afrontada pelo cartaz de uma ninfeta lasciva, saída de alguma HQ erótica do artista.

(Das razões para se amar a Itália, o gosto nacional pela blasfêmia não é a menor.)

Catedral de Santa Maria della Scala


Escadaria de acesso ao Batistério São João


Pia Batismal do Batistério de Siena: Banquete de Herodes, de Donatello  foto: Ludmila Ciuffi




O imperador e o crustáceo 

Embora Calvino não tenha escrito a sexta conferência, a série destinada às Norton lectures de Harvad foi publicada com o título de Seis Propostas para o Próximo Milênio.  

O título vago, que mais parecia o programa salvacionista de alguma organização não-governamental, levava a tentação de ler as conferências à luz da demanda por pregação parenética, que já se anunciava no final da década de 80.  Daí que a obra tenha feito sucesso entre os demi-savants, que avançavam sobre as Seis Propostas como se fossem uma variante do Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, de André Comte-Sponville.  

A verdade, porém, é que qualquer leitura desse tipo daria com os burros n’água se fosse além da mera escansão dos títulos das conferências (Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade). Ao invés de normas de conduta prêt-à-porter, Calvino descrevia os valores que orientavam a sua prática textual e sua ligação com a tradição literária. Se há uma proposta, é a de mostrar que a literatura pode e deve continuar relevante no futuro, porque ela dispõe de recursos específicos que não podem ser destruídos pela avalanche de meios áudio-visuais.
 

Calvino não perde tempo com diagnósticos da pós-modernidade, nem com definições acadêmicas dos valores que escolheu, tampouco procura rastrear a sua genealogia. Ao invés de uma dissertação que desdobra os conceitos em suas implicações, Calvino procede por associação de ideias e por colagem intertextual. Se com isso as conferências perdem profundidade e poder elucidativo, ganham incomparável alcance e força sugestiva.

O que interessa a Ítalo Calvino não é a crítica ou a história literária, mas a força que dá vida à literatura, razão pela qual, movido por um certeiro sentimento de dialética, ele defende que os valores se sustentam num equilíbrio de opostos, tenso e difícil, alcançado por alguns textos exemplares.


Essa dialética é especialmente interessante na segunda conferência, dedicada às formas literárias da rapidez.  Ítalo Calvino  conta uma história brevíssima - a lenda de um anel mágico, que tinha o poder de despertar a paixão de Carlos Magno - como exemplo de rapidez narrativa que suprime os elementos desnecessários ao desenrolar dos acontecimentos; em seguida, Calvino fala da rapidez do pensamento imaginativo que salta sobre os passos lógicos, e da rapidez das formas literárias curtas e concisas. A conferência termina com outra narração brevíssima:

Um artista chinês foi solicitado a desenhar um caranguejo. Ele respondeu que levaria cinco anos e precisaria de uma casa com doze empregados. Quando o prazo terminou, ele ainda não havia começado o desenho, então pediu mais cinco anos. Ao final de dez anos, o artista pegou o pincel e, num único gesto rápido, desenhou o caranguejo mais perfeito que já se viu. 


Festina lente, diz o adágio latino que o Ítalo Calvino adotou como lema. As Seis propostas para o próximo milênio são, elas mesmas, exemplos dessa aliança tensa entre a lentidão de Vulcano, o coxo, e a velocidade de Mercúrio, de pés alados. O rigor do pensamento e paciência da crafstmanship devem se consumar na concisão das formas breves e na presteza de uma imaginação que avança por meio de paradoxos, associando as coisas mais heteróclitas: o anel de Carlos Magno e o caranguejo chinês. 


Igreja de Santa Maria dei Servi     foto: Ludmila Ciuffi


Uma cidade visível

"De uma cidade, não aprecie as sete ou as setenta e sete maravilhas, mas sim a resposta que dá a uma pergunta sua." 
(Ítalo Calvino, Le città invisibili)

fachada do Duomo    foto: Ludmila Ciuffi


Quando o Sol é generoso – e ele sempre nos acompanhou -, Siena vibra com tons terrosos e quentes. A gente, discreta e ordeira, responde com gentileza ao sorriso do estrangeiro. Será por isso que James Boswell se apaixonou por todas as mulheres quando passou por aqui em 1765?

As ruas são antigas, mas não nostálgicas. Nostalgia do quê? Nada se perdeu, tudo está completo. As cruezas da história não deixaram cicatrizes ressentidas. A Madona da Maestà  continua a nos olhar régia e plácida. É certo que ela não nos dispensa carinhos de mãe, mas a quietude assim concedida pela graça de Duccio é bem que não tem preço.


Se subimos, lenta e custosamente, as escadas do Facciatone, do alto - mais do que do Campanário florentino de Giotto -, alcançamos a cidade toda com a rapidez de quem voa, até a imaginação se perder no horizonte esfumado pelo véu de neblina que a tarde lança sobre a beleza pudica das colinas.



A cidade vista do Facciatone

Quem perderia tempo com melancolias, tomando sol no Campo? Não há outra praça como esta. Sem bandeiras nem estátuas de heróis. Somente o espaço,  igual a uma mão aberta, que nos convida àquela liberdade orgulhosa de quem goza dos benefícios do bom governo. Não é à toa que os cavalos correm por aqui em agosto, quando o sol bate em brasa. 

Il Campo    foto: Ludmila Ciuffi


Siena nada nos nega. 

É certo que as quitandas vendem uvas italianas importadas do Peru, mas o vinho, brunello ou rosso, chega de Montalcino e o pan forte é uma alegria que nos vem da própria cidade. 

Tinha razão Richard Wagner quando pensou que o Duomo de Siena seria o cenário perfeito para o palácio do Graal no Parsifal

O púlpito de Nicola Pisano, a cúpula e a nave central do Duomo

Pavimento do Duomo   História de Judite  (século XV)  foto: Ludmila Ciuffi

A casa de Santa Catarina estava fechada, mas o caminho da basílica de São Domingos era rico e a natureza fazia milagres por si mesma.  


 O Duomo visto do caminho de São Domingos   foto: Ludmila Ciuffi



Siena nada nos nega. 

A verdade é que falta nossa casa, mas Siena é tão gentil que partimos, saciados e contentes com a resposta da cidade à nossa pergunta.


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Poço do Palácio Chigi-Saracini   foto: Ludmila Ciuffi


Attilio  Brilli, Il Viaggio in Italia: storia di una grande tradizione culturale, Il Mulino | Ítalo Calvino, Lezioni americane: sei proposte per il prossimo millennio, Mondadori | Ítalo Calvino, Le città invisibili, Mondadori 




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