domingo, 25 de maio de 2014

A claraboia e o holofote #26




Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


A social-democracia alemã (parte 5)




Kautsky



"O Partido Social-Democrata é um partido revolucionário, mas não um partido que faz revoluções"

1. Esboço de verbete 

Kautsky nasceu em 1854 em Praga. Na universidade de Viena, estudou história, economia e filosofia. Em 1875 filiou-se ao Partido Social-Democrata austríaco. Ao mudar-se para Zurique em 1880, tornou-se amigo de Eduard Bernstein. Mais tarde, foi para Londres onde colaborou com Engels de 1885 a 1890.  O fim da  lei anti-socialista o levou para a Alemanha. Nos quadros do SPD, sua preeminência intelectual foi logo reconhecida devido ao seu trabalho na redação da parte teórica do programa de Erfurt (1891).

As ásperas divisões internas do partido lançaram Kaustsky na dissidência. Em 1917, ele ingressou no Partido Social-Democrata Independente (USPD), mas voltou aos quadros do SPD em 1922, sem conseguir recuperar a influência anterior, embora continuasse prolífico como escritor. Com a ascensão de Hitler, voltou para Praga, porém o avanço nazista o forçou a exilar-se em Amsterdam, onde faleceu em 1938.

Ao assumir a direção da revista Die Neue Zeit a partir de 1883,  Karl Kautsky desempenhou um papel central na consolidação do marxismo como teoria social e econômica. O periódico defendia uma interpretação "ortodoxa" das obras de Marx e Engels, primeiro contra a ala direita revisionista do SPD, depois contra a ala esquerda revolucionária. De 1889 a 1914, ele foi o teórico mais proeminente da Segunda Internacional, contudo as críticas de Kautsky à revolução bolchevique suscitaram a reação furiosa de Lênin,  que o infamou como “renegado”, epíteto que as gerações futuras de militantes de esquerda conservaram junto ao nome daquele que foi o “papa do marxismo”. 



"Portanto algumas coisas tiveram um desfecho diferente daquele que os autores do Manifesto esperavam na época em que o escreveram"


2. Kautsky lê o Manifesto

O Leipziger Volkszeitung, periódico editado por Rosa Luxemburgo, Parvus e Franz Mehring, figuras de proa da ala esquerda do SPD, publicou em 1904 um artigo de Kautsky que fora escrito originalmente como introdução a uma tradução polonesa do Manifesto do Partido Comunista

O artigo de Kautsky - “Até que ponto o Manifesto Comunista está obsoleto” - se volta para a famosa obra de Marx e Engels para recordar aos revisionistas certas verdades políticas que eles negligenciavam e que, no entanto, constituíam o núcleo central do marxismo. A "ortodoxia" de Kautsky não consiste em declarar sagradas as palavras de Marx e Engels, mas sim em reconhecer que as transformações sociais e políticas ao longo de quase seis décadas desde a publicação do Manifesto, embora tenham deixado nele profundas marcas de envelhecimento, acabaram por depurar e confirmar suas verdades fundamentais.

Se a obra se mantinha atual por causa de seus princípios, de seu método, de sua caracterização do modo de produção capitalista e do importante papel atribuído à luta de classes, também era forçoso reconhecer que o proletariado e a burguesia haviam sofrido muitas mudanças desde 1848. 

O antigo proletariado miserável e oprimido era apenas um objeto de piedade para os reformadores sociais. Foi preciso a visão de Marx e Engels para entender o caráter revolucionário dessa classe social. Sessenta anos depois, o proletariado nos países mais avançados da Europa estava altamente organizado e adquirira instrução política. Enquanto isso, os camponeses e os pequeno-burgueses, colocados à margem do desenvolvimento capitalista, tornaram-se os defensores intransigentes da reação.  

Seria errôneo, porém, acreditar que o avanço do proletariado se devia à superação da exploração capitalista:

“O aumento enorme das forças produtivas que foi desencadeado pelo capitalismo não passou pelo proletariado sem deixar sua marca. Podemos falar de uma melhora da condição de muitos estratos do proletariado, se compararmos com as condições da pequena burguesia e do campesinato, mas ele fica muito aquém comparado ao crescimento da força social da produção, que do qual o capital se apropria e explora em sua própria vantagem. Comparado com o padrão de vida do capitalista e com a acumulação do capital a condição do proletariado se deteriora (...)”

Tão surpreendente quanto a transformação do proletariado foi a da burguesia. Marx e Engels achavam que uma revolução burguesa na Alemanha seria o prelúdio de uma revolução proletária, já que o proletariado alemão se encontrava mais organizado que o proletariado na revolução inglesa e na revolução francesa, todavia essa expectativa não se realizou.

Em 1848, a burguesia, apoiada por um proletariado bastante forte, derrotou facilmente as forças residuais do absolutismo. Como não houve uma guerra prolongada que exigisse a união de burgueses e proletários contra um inimigo comum, a burguesia vitoriosa logo passou a lutar contra o proletariado, que levantara a bandeira da democracia social. O massacre de junho de 1848 marca o momento em que a burguesia deixou de ser uma classe revolucionária. A possibilidade de que uma revolução burguesa pudesse ser prolongada e radicalizada até que o proletariado conquistasse o poder ficou cada vez mais remota. Sem uma burguesia revolucionária, nada de revolução permanente. Depois de 1848 ficou cada vez mais evidente que uma revolução só poderia vir do proletariado. Mesmo nas condições sociais atrasadas da Rússia, a iniciativa da revolução deveria partir do proletariado, mesmo que não conduzisse à sua dominação exclusiva. 

“O fortalecimento da classe trabalhadora e sua ascensão ao momento em que seja capaz de conquistar e manter o poder político não pode mais ser esperada de uma revolução burguesa que, ao se tornar permanente, vá além de seus limites e desague numa revolução proletária. Este fortalecimento e amadurecimento deve ter lugar fora da revolução e antes dela. Ele deve ter alcançado um certo nível antes que uma revolução seja possível. Deve ocorrer por métodos de paz, não de guerra – se é permitido fazer um distinção entre métodos belicosos e pacíficos de luta de classes.”

Nessa nova etapa histórica, a legislação de proteção aos trabalhadores e o papel dos sindicatos assumem toda sua importância. E não foram os revisionistas que viram isso, mas sim Marx e Engels que, muito antes, perceberam que a época das revoluções estava chegando ao fim, o que não quer dizer que o antagonismo de classes tivesse desaparecido, ao contrário do que supõem os revisionistas.  

Os socialistas que pregam a colaboração com os liberais e a participação nos ministérios se justificam dizendo que é preciso apoiar a burguesia revolucionária, conforme a lição antiga de Marx. Neste caso, eles deveriam se lembrar da Mensagem ao Comitê Central da Liga dos Comunistas, de março de 1850  (A claraboia e o holofote #18), na qual Marx ensinava que era preciso ter cautela e desconfiança em relação à burguesia potencialmente revolucionária. Se é assim, o que dizer da aliança com uma burguesia que deixou de ser revolucionária há tanto tempo? 

Os revisionistas se esquecem de que a estratégia revolucionária foi trocada por uma estratégia evolucionária justamente porque não há mais revoluções burguesas e nem a possibilidade de uma revolução permanente.

“onde quer que a cooperação da burguesia com o proletariado seja necessária hoje, com exceção da Rússia, ela é feita com propósito de conservação e não de revolução, para a preservação e garantia dos magros rudimentos de democracia existentes contra o assalto da reação.” 

De qualquer modo, a discussão a respeito da cooperação com partidos burgueses no parlamento e da participação nos ministérios diz respeito aos partidos socialistas da Europa Ocidental.  Na Rússia, a situação tinha contornos especiais. Por um lado, a situação econômica e política era semelhante à da Alemanha de 1848; por outro lado, uma vez que as lutas de classes no interior das nações se inter-relacionam no plano internacional, a burguesia russa -modificada pela burguesia ocidental - já se tornara reacionária:

“Os socialistas ativos na Rússia absolutista devem levar em consideração as condições mais primitivas de seu país, assim como as condições mais desenvolvidas dos outros países. A burguesia da Rússia ainda tem tarefas revolucionárias para realizar, mas já tem a maneira de pensar reacionária da burguesia ocidental."

Nessa Rússia em plena efervescência pré-revolucionária do proletariado, os russos deveriam procurar orientação no texto mais revolucionário de Marx, sem dar ouvidos aos revisionistas:

"O melhor e mais confiável guia que os socialistas russos podem ter é o Manifesto”



“Nós não somos homens da legalidade a qualquer preço, nem revolucionários a qualquer preço” 

3. O kautskismo 

Na seu artigo, Kautsky cita poucas passagens do Manifesto Comunista. É claro que talvez fosse ocioso retomar palavras que haviam se tornado demasiado famosas para todos os militantes socialistas, mas essa ausência de citações vai de par com a ideia de que, depois de quase sessenta anos, o Manifesto havia se tornado um documento histórico, que não poderia mais ser tomado a sério literalmente, mas ainda era válido por suas ideias gerais.

Os poucos trechos citados por Kautsky são exemplos de erros que, devidamente estudados, poderiam ser instrutivos. Longe de ser uma evangelho, o Manifesto é “um documento histórico que deve ser sujeito à crítica, mas a uma crítica que não se limite a mostrar como algumas afirmações não são mais verdadeiras; para uma crítica que, além disso, se esforce em compreendê-lo e também compreender aquelas afirmações que são obsoletas hoje, tirando um novo conhecimento delas.”

Essa leitura “militante” do Manifesto deveria fornecer orientação política para os que lutam no campo do proletariado.

“Para aquele que estuda o Manifesto dessa maneira, ele é uma bússola no oceano tempestuoso da luta de classes do proletariado.”

Para Kautsky, o que sustentava o valor do Manifesto (além do método materialista e das análises econômicas do capitalismo, que viriam a ser muito mais desenvolvidas n’O Capital) era a afirmação do caráter fundamental da luta de classes, que não cessou de ser comprovada pela história a partir de 1848:

“Nunca foi tão universalmente aceito o princípio de que toda a história civilizada até aqui foi a história da luta de classes; e nunca foi apareceu de modo tão evidente que o grande motor de nosso tempo é a luta de classes entre a burguesia e o proletariado.”

assim como  a afirmação do caráter revolucionário do proletariado:

“O proletariado, pela sua própria condição de classe, é uma classe completamente revolucionária, e hoje é a única classe revolucionária (...) Sua força só pode se desenvolver e crescer pela ação revolucionária e pela propaganda revolucionária, e ela destrói as raízes de sua força se se limita ao papel conservador de guardiã da burguesia liberal contra o ataque do clero, da aristocracia rural e dos mercenários. “ 

A política dos partidos social-democratas de toda a Europa não deveria perder de vista esses dois aspectos. Foram as lutas do proletariado contra a burguesia desde 1848 que lhe deram força para se fazer representar nos parlamentos europeus. Se agora a luta era feita por meios legais e pacíficos isso não significava de modo algum o fim dos antagonismos de classe. O que aconteceu foi o esgotamento da possibilidade de que uma revolução burguesa se tornasse permanente, já que a própria burguesia se tornou conservadora a partir de 48. Agora que apenas revoluções proletárias poderiam acontecer, elas deveriam ser preparadas e amadurecidas ao longo do período em que a classe operária obtivesse ganhos por meios pacíficos.  Era essa imbricação entre reformismo e revolução que os revisionistas não entendiam, quando recusavam a luta de classes e a revolução, propondo coalizações com os partidos liberais e a prática ministerialista de assumir pastas em governos conservadores. 

A tarefa de Kaustky como teórico da Segunda Internacional e como um dos líderes do SPD era justamente articular a relação entre a necessidade conjuntural de adotar práticas parlamentares e sindicais (visando a proteção e melhoria da condição dos trabalhadores) e a necessidade lógica do desenvolvimento capitalista, que aguça a luta de classes e conduz inevitavelmente à tomada revolucionária de poder pelo proletariado. Num artigo de 1893 na revista Die Neue Zeit, Kautsky resumiu claramente essa conciliação difícil:

“O Partido Social Democrata é um partido revolucionário, mas não um partido que faz revoluções. Sabemos que nossos objetivos somente podem ser alcançados por meio de uma revolução, contudo também sabemos temos tão pouco poder de fazer uma revolução quanto de preveni-la. Assim nem mesmo nos ocorre de querer fomentar uma revolução ou preparar as condições para uma (...) Sabemos que a luta de classes entre a burguesia e o proletariado não terminará até que o último tenha se apoderado completamente do poder político, que ele usará para introduzir a sociedade socialista. Sabemos que a luta de classes deve se tornar mais extensa e intensa; que o proletariado está crescendo tanto em tamanho quanto em força moral e econômica; que, portanto, sua vitória e a derrota do capitalismo são inevitáveis. 

Uma vez que nada sabemos a respeito das batalhas decisivas da guerra social, com certeza temos pouco a dizer se elas serão sangrentas, se a força física desempenhará um papel importante nelas, ou se elas farão uso exclusivamente dos meios econômicos, legislativos e de pressão moral.

O que se pode dizer, porém, é que com toda probabilidade é que nas lutas revolucionárias do proletariado o último tipo de meios irão predominar sobre os meios físicos, isto é, sobre a força militar, mais do que acontecia na lutas revolucionárias da burguesia.”
(Karl Kautsky, The Road to Power, pp 41-42)

A crença no determinismo histórico, a confiança na vitória final do proletariado, a incerteza sobre como e quando se daria essa vitória e, especialmente, a declaração de que estava fora do alcance do partido apressar ou promover a transformação revolucionária – todas essas características do kautskismo que podiam por algum freio ao avanço dos revisionistas no SPD tornaram-se motivo de impaciência para a ala esquerda radical, que se animava com a iminência de uma revolução na Rússia.

A possibilidade de uma revolução russa projeta uma sombra no artigo de Kautsky sobre o Manifesto Comunista. Para lidar com essa sombra, Kautsky recorre à ideia de que o atraso russo gerou condições de exceção: uma combinação de industrialização incipiente e herança feudal-absolutista semelhante à da Alemanha de 48:

“Por essa razão, o Manifesto é ainda mais válido para eles [os socialistas russos] do que para os Socialistas da Europa Ocidental, não somente no que concerne a seus fundamentos e métodos e sua apresentação do caráter geral do modo capitalista de produção, aspectos que ainda hoje formam as sólidas fundações para qualquer movimento proletário consciente de qualquer país, mas também em muitos detalhes que se tornaram obsoletos na Europa Ocidental”.

Kautsky, porém, reconhece que a situação era mais complicada que isso:

“A relação politica entre a burguesia e o proletariado, entre Liberalismo e Socialismo, é muito mais complexa e difícil na Rússia do que na Europa Ocidental. Para compreendê-la corretamente, os socialistas em atividade sob o absolutismo russo deverão levar em consideração a condição muito primitiva de seu país tanto quanto o elevado desenvolvimento das condições de outros países. A burguesia russa ainda tem tarefas revolucionárias para realizar, mas já tem a maneira de pensar reacionária da burguesia ocidental.”

Kautsky tinha o mérito de reconhecer o descompasso e o embaralhamento das etapas históricas na Rússia. Todavia, a estranheza do caso russo era principalmente um efeito da perspectiva alemã. À medida que o bem sucedido SPD fazia aliança com o crescente chauvinismo germânico, a especificidade do próprio caso alemão foi esquecida e a história da classe operária franco-alemã se tornou o modelo "ortodoxo" das etapas do desenvolvimento político do proletariado. A hegemonia dos teóricos do SPD nos meios socialistas europeus acabou por obliterar a visão de que o caso alemão era tão excepcional quanto o caso russo, o caso francês, o caso italiano, o caso inglês etc.

Portanto, era a exceção alemã que escapava a Kautsky (mas ele não estava sozinho). A comédia de erros ficou mais confusa quando, no seu afrontamento com os revisionistas, Kautsky publicou em 1909 o seu panfleto mais duro – O Caminho do Poder-, sublinhando o caráter revolucionário do partido e as condições que tornariam necessária uma revolução. O livro desagradou profundamente o Comitê Executivo do SPD, mas foi elogiado por Vladimir Ilich Lênin, que voltaria atrás (sempre pensando que foi Kautsky que voltou atrás), acusando-o de “renegado”.

A sombra russa cobriria Kautsky e o SPD muito em breve, mas antes viria a catástrofe de 1914.


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Tom Bottomore, Dicionário do Pensamento Marxista, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997 | François Châtelet, Olivier Duhamel, Evelyne Pisier (org), Dicionário de obras políticas, Civilização Brasileira, 1993 | Karl Kautsky, The Road to Power, Center fo Socialist History, Berkeley, 2007 | Karl Kautsky, To What Extent is the Communist Manifesto Obsolete? | Leszek Kolakowski, Main currents of marxism, volume II, Clarendon Press, Oxford, 1978  |  George Lichtheim, El Marxismo: un estudio histórico y crítico, Editorial Anagrama, Barcelona, 1977  |  Carl E. Schorske, German Social Democracy 1905-1917 The Development of the Great Schism, Harvard University Press, Cambridge, 2014













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