sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A claraboia e o holofote #28 (II)








Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Lenin 


2. Um conceito-de-guerra


"I watched a snail crawl along the edge of a straight razor. 
That's my dream; that's my nightmare. 
Crawling, slithering, along the edge of a straight razor... and surviving."


Coronel Kurz, Apocalypse Now


Terminologias políticas são confusas. O nome de um partido depende não só de seu programa, mas também da imagem pública que projeta e da verve de seus adversários.  De resto, a própria longevidade de certas denominações oculta suas incoerências e suas descontinuidades. É o que acontece com termos como socialdemocracia ou comunismo, autênticos conceitos-de-guerra: aquelas palavras incômodas, lábeis, equívocas, sempre prontas a serem lançadas como pecha ou alçadas como estandartes.

Isso já o sabiam Marx e Engels em 1847 quando diziam que o comunismo era o espectro que rondava a Europa. A intenção desmistificatória do Manifesto não foi bem sucedida. O comunismo continuou a ter cheiro de enxofre. Como conceito-de-guerra, o comunismo ficou indelevelmente associado à conspiração e ao golpismo de esquerda. Uma fusão de blanquismo (um antigo conceito-de-guerra hoje esquecido) com os fabulosos complôs jesuíticos ou judaicos que ganharam corpo em apócrifos como Protocolos dos Sábios do Sião

O próprio Marx teve poucas ocasiões de usar a palavra "comunismo" depois da dissolução da Liga dos Comunistas. Poucos quiseram assumir para si tal título. Nos meios socialdemocratas antes de 1917, comunismo era apenas o nome para o remoto estágio final da sociedade após do colapso do capitalismo. Ninguém era ou podia ser comunista em sã consciência.  No entanto, qual é o partido que nunca acusou seus adversários de serem comunistas?  O próprio Lenin, uma vez no poder, esteve às voltas com a oposição dos comunistas “de esquerda”, que, a seu ver, sofriam de doenças infantis.

Tendo em vista o seu uso como conceito-de-guerra e a decorrente indefinição  de sua prática, não deixava de ser surpreendente redigir um manifesto comunista em 1848, o que o próprio Engels reconhecia:  

"Quando surgiu não poderíamos chamá-lo um manifesto socialista. Em 1847, consideravam-se socialistas dois tipos diversos de pessoas. De um lado, havia os adeptos dos vários sistemas utópicos, principalmente os owenistas, na Inglaterra, e os fourieristas, na França, ambos já reduzidos a seitas agonizantes. De outro, os vários gêneros de curandeiros sociais, que queriam eliminar, por meio de suas diversas panaceias e com toda espécie de cataplasmas, as misérias sociais, sem tocar no capital e no lucro. Nos dois casos, eram pessoas que não pertenciam ao movimento dos trabalhadores, preferindo apoiar-se nas classes "cultas". Em contrapartida, o setor da classe trabalhadora que exigia uma transformação radical da sociedade, convencido de que a revoluções meramente políticas eram insuficientes, denominava-se então comunista. Tratava-se ainda de um comunismo mal esboçado, instintivo e, por vezes, grosseiro. Mas era bastante poderoso para dar origem a dois sistemas de comunismo utópico - na França o "icariano" de Cabet e na Alemanha o de Weitling. Em 1847, o socialismo significava um movimento burguês, e o comunismo, um movimento da classe trabalhadora. Ao menos no continente, o socialismo era muito bem considerado, enquanto o comunismo era o oposto. E como, desde então, éramos decididamente da opinião de que "a emancipação dos trabalhadores deve ser obra da própria classe trabalhadora", não podíamos hesitar entre os dois nomes a escolher. Posteriormente nunca pensamos em modificá-lo."
(Prefácio à edição inglesa do Manifesto, 1888)

É compreensível que Engels tentasse justificar, alegando a força das circunstâncias da década de 1840, a adoção de um nome que pareceria inevitavelmente envelhecido ou demasiado comprometido aos olhos das novas gerações de militantes, que preferiam denominar-se socialdemocratas, socialistas, anarquistas ou sindicalistas, embora continuassem a ler as sucessivas edições do Manifesto Comunista.

Portanto, que o Partido Operário Social Democrata da Rússia tenha modificado seu nome em 1918, tornando-se o Partido Comunista da Rússia (bolchevique) marca uma ruptura que transforma o marxismo. Contudo, a ruptura se ocultava como tal sob a retórica persistente de fundação, refundação ou restauração do verdadeiro partido comunista de 1848.

O tópos da restauração foi repetido de maneira exaustiva pelos protagonistas, admiradores e figurantes da vitoriosa Revolução de Outubro. Parecia que um projeto histórico longamente cultivado tinha chegado à sua culminância e realização, fechando o ciclo histórico do capitalismo e do Estado burguês. É essa crença que lemos na prosa entusiástica de Victor Serge, na argumentação seca de Lukács ou na concisão protocolar e didática do camarada Zinoviev. Mas é essa mesma crença que lemos em um historiador neocon como Richard Pipes, que, na ânsia de dar substância ao espectro do comunismo, validava - com sinal inverso - as alegações dos comunistas russos:


"The ideal is one of full social equality that in its extreme form (as in some of Plato's writings) calls for the dissolution of the individual in the community. Inasmuch as social and economic inequalities derive primarily from inequalities of possession, its attainment requires that there be no "mine" and "thine" - in other words, no private property. This ideal has an ancient heritage, reappearing time and again in the history of Western thought from the seventh century B.C. to the present.
The program dates back to the middle of the nineteenth century and is most closely associated with the names of Karl Marx and Friedrich Engels. In their Communist Manifesto of 1848 Marx and Engels wrote that "the theory of Communists may be summed up in a single sentence: abolition of private property." Engels claimed that his friend had formulated a scientific theory that demonstrated the inevitable collapse of societies based con class distinctions.
Although throughout history there had been sporadic attempts to realize the communist ideal, the first determined effort to this effect by using the full power of the state occured in Russia between  1917 and 1991. The founder of this regime, Vladimir Lenin, saw a propertyless and egalitarian society emerging from the "dictatorship of the proletariat" that would eliminate private property and pave the way for Communism. 
We shall trace the history of Communism in this sequence both because its makes sense logically and because it is in this manner that it has evolved historically: first the idea, then the plan of realization, and finally the implementation. But we will concentrate on the implementation because the ideal and the program, taken by themselves, are relatively innocuous, whereas every attempt to put them into practice, especially if backed by the full power of the state, had had enormous consequences."

(Richard Pipes, Communism a History, Prefácio pp X-XI)


Nem o mais zeloso cronista do Partido teria formulado melhor a coincidência da progressão lógica e do processo histórico: o ideal milenar de alguns dos maiores pensadores da humanidade, como Platão,  formulado como plano na segunda parte do Manifesto Comunista e realizado por Lenin, lume e inspiração para todos aqueles que, ao longo do século XX repetiriam o cometimento de tomar o Estado. (Porque, mais terrível do que defender o ideal comunista ou enunciá-lo em termos teóricos, é usar o poder do Estado para abolir a propriedade privada... o que confirma que o Estado deveria ser seu guardião e possivelmente o comitê executivo da classe dos proprietários, segundo certa passagem célebre do Manifesto). 

Quando até a historiografia de direita dá razão às fábulas alimentadas pelo Politburo, é preciso de cautela no trato das ilusões pertinazes, contra as quais vale reafirmar algumas evidências aparentemente acacianas, como a de que nem mesmo Lenin nasceu comunista e, por isso, o Partido Comunista da Rússia nada tinha de fatal ou inelutável, embora também estivesse longe de ser um acaso ou mero acidente de percurso. Quando entendemos que o Partido Comunista é justamente a tentativa de resolver - no plano político - a oposição entre necessidade histórica e ação voluntária, entramos no cerne dos escritos de Lenin e passamos, nós mesmos, a nos arrastar sobre o fio dialético da navalha. 


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Ulam, Os Bolcheviques, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1976 | Dmitri Volkogonov, Lenin - a new biography, The Free Press, New York, 2014 | Alan Woods, Bolshevism: the Road to Revolution, 1999 |  Grigory Zinoviev, History of the Bolshevik Party, 1924  | Slavoj Žižek (org), Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917, Boitempo Editorial, São Paulo, 2005





 
Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein



Ernst Bloch



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domingo, 16 de novembro de 2014

A claraboia e o holofote #28 (I)







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Lenin 



1. A autoimagem do partido bolchevique vitorioso


Victor Serge: a visão de um revolucionário

"As massas têm milhões de rostos; não são nada homogêneas; são dominadas por interesses de classe, diversos e contraditórios; só alcançam a consciência verdadeira – sem a qual nenhuma ação fecunda é possível – mediante a organização. As massas sublevadas da Rússia de 1917 alcançam a clara consciência da ação necessária, dos meios, dos objetivos a serem atingidos mediante o órgão do Partido Bolchevique. Isto não é uma teoria, é a expressão de um fato. As relações entre o partido, a classe operária e as massas trabalhadoras aparecem aqui com notável nitidez. O que querem, confusamente, os marinheiros do Kronstadt, os soldados de Kazan, os operários de Petrogrado, de Ivanovo-Voznesensk, de Moscou, de toda parte, os camponeses que saqueiam as residências senhoriais, o que querem todos eles, sem a possibilidade de expressar, claramente, suas aspirações, de as confrontar com as possibilidades econômicas e políticas, de estabelecer os objetivos mais racionais, de escolher os meios mais adequados para atingi-los, de se entender de ponta a ponta do país, de informar-se uns dos outros, de disciplinar-se, de constituir, em uma palavra, uma força exclusivamente inteligente, instruída, voluntária, prodigiosa, o que todos eles querem, o partido o exprime em termos claros e o faz. O partido lhes revela aquilo que pensam. O partido é o vínculo que os une a todos, de ponta a ponta do país. O partido é sua consciência, sua inteligência, sua organização.
(...)
Por isso é que o percurso das massas até a revolução se expressa por um importante fato político: os bolcheviques, pequena minoria revolucionária em março, tornam-se, entre setembro e outubro, o partido da maioria. Fazer distinção entre as massas e o partido torna-se impossível. É uma única corrente. (...) Os bolcheviques, graças à sua justa compreensão teórica da dinâmica dos acontecimentos, identificam-se, ao mesmo tempo, com as massas trabalhadoras e com a necessidade histórica. “Os comunistas não têm interesses diferentes dos de todo o proletariado”, está escrito no Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels. O quanto essa frase, escrita em 1847, nos parece, atualmente, correta!
(...)
Os verdadeiros chefes proletários são, ao mesmo tempo, guias, pilotos, capitães e diretores de empresas: trata-se de uma formidável empresa de demolição e de construção social. A eles cabe descobrir, pela análise científica dos processos históricos, o significado dos acontecimentos, suas tendências, as possibilidades que oferecem, bem como conceber o que o proletariado pode e deve fazer, não pela própria vontade ou inspiração momentânea, mas por necessidade histórica. Em suma, conhecer o real, perceber o possível, conceber a ação que será o elo entre o real e o possível. Ao fazer isso, colocam-se, invariavelmente, do único ponto de vista dos interesses superiores do proletariado; de tal modo que seu pensamento é o do proletariado, armado de uma disciplina científica. A consciência de classe do proletariado atinge, assim, sua mais alta expressão entre os chefes da vanguarda organizada da classe operária. (...) Mas seu mérito – o gênio de um Lenin – advém do fato de que o desenvolvimento da consciência de classe nada tem de fatal; o sentimento de todos pode muito bem permanecer latente sem se expressar, num determinado momento; as possibilidades contidas numa situação podem não ser percebidas; a ação necessária à salvação ou à vitória do proletariado pode não estar concebida. A história recente do proletariado da Europa ocidental oferece muitos exemplos de acontecimentos abortados em consequência da fragilidade da consciência de classe. Completemos a definição do chefe proletário, homem dos tempos novos, em contraste com os chefes das classes dirigentes de outrora e das classes poderosas de hoje. Esses últimos são instrumentos cegos da necessidade histórica: o revolucionário é seu instrumento consciente.
A Revolução de Outubro nos oferece o exemplo de um partido proletário, por assim dizer, ideal. Relativamente pouco numeroso na verdade, seus militantes vivem com as massas, no seio das massas; longos anos de provações – uma revolução, a ilegalidade, o exílio, a prisão, incessantes lutas de ideias – formaram seus quadros admiráveis e chefes autênticos, cuja ação comum concretizou a unidade de pensamento. A iniciativa de todos e o realce de personalidades fortes se harmonizam no partido com uma centralização inteligente, uma disciplina voluntária, o respeito às direções reconhecidas. Esse partido, dotado de excelente aparelho de organização, não apresenta a menor deformação burocrática. Nele não se observa nenhum fetichismo, não possui tradições malsãs ou sequer equívocas; sua tradição principal é a da guerra ao oportunismo; ele é revolucionário até a medula dos ossos. Assim, não deixa de ser notável que hesitações profundas e tenazes ocorram em seu interior às vésperas da ação e que vários de seus militantes, os mais influentes, se pronunciem veementemente contra a tomada do poder."

O Ano I da Revolução Russa (1930) pp.76-77; 82-83


György Lukács: a visão de um filósofo

"A missão histórica do proletariado é desvencilhar-se de toda comunhão ideológica com as outras classes e encontrar uma clara consciência de classe com base na especificidade de sua situação e na autonomia de seus interesses. Somente desse modo ele se tornará capaz de conduzir todos os oprimidos e explorados da sociedade burguesa na luta conjunta contra seus dominadores econômicos e políticos. A base objetiva desse papel dirigente do proletariado é sua posição no processo de produção capitalista. No entanto, seria uma aplicação mecânica do marxismo e, assim, uma ilusão totalmente anistórica imaginar que a consciência de classe correta, que capacita o proletariado a exercer a liderança, possa surgir nessa classe de maneira gradual, sem atritos e regressões, como se o proletariado pudesse alcançar sua vocação classista-revolucionária por meio de uma progressão ideológica natural. A impossibilidade da transição econômica gradual do capitalismo para o socialismo foi claramente comprovada nos debates sobre Bernstein. Mas, apesar disso, a contrapartida ideológica dessa doutrina manteve-se incólume no pensamento de muitos revolucionários sinceros na Europa e nem sequer foi reconhecida como problema e perigo. (...)
Lenin foi o primeiro e, por muito tempo, o único líder e teórico importante a considerar esse problema em seu aspecto teoricamente central e, por isso, decisivo na prática: o aspecto da organização. (...)
A ideia de organização de Lenin pressupõe o fato da revolução, a atualidade da revolução (...) O partido, como organização centralizada dos elementos mais conscientes do proletariado – e apenas deste último -, é concebido como instrumento da luta de classes numa época revolucionária. “Não se pode”, segundo Lenin, “separar mecanicamente o aspecto político do organizacional”, e aquele que afirma ou nega a organização partidária bolchevique, sem se perguntar se vivemos ou não a época das revoluções proletárias, mostra não ter compreendido nada da essência dessa questão.
Em sentido radicalmente contrário, no entanto, pode-se levantar a seguinte objeção: precisamente a atualidade da revolução torna supérflua uma organização desse tipo. Pode ter sido útil, na época da inatividade do movimento revolucionário, reunir e organizar os revolucionários profissionais. Contudo, nos anos da revolução propriamente dita, quando as massas se encontram profundamente agitadas e logo amadurecem, acumulando em semanas e mesmo em dias mais experiências revolucionárias do que em décadas inteiras, quando até mesmo aquela parte da classe que normalmente não toma parte no movimento – mesmo com suas vantagens mais imediatas – passa a atuar de modo revolucionário, tal organização revela-se inútil e sem sentido. Ela desperdiça energias úteis e, quando se torna influente, paralisa a produtividade espontânea e revolucionária das massas.
É evidente que essa objeção conduz mais uma vez ao problema da progressão ideológica natural. O Manifesto Comunista caracteriza de modo muito claro a relação entre o partido revolucionário do proletariado e a totalidade da classe:

"Os comunistas se distinguem dos outros partidos operários somente em dois pontos: 1) nas diversas lutas nacionais dos proletários, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns do proletariado, independentemente da nacionalidade; 2) nas diferentes fases de desenvolvimento por que passa a luta entre os proletários e burgueses, representam, sempre e em toda parte, os interesses do movimento em seu conjunto.

Na prática, os comunistas constituem a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais; teoricamente têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, do curso e dos fins gerais do movimento proletário."

Eles são, em outras palavras, a face visível da consciência de classe do proletariado. E a questão de sua organização é decidida pelo modo como o proletariado alcança de fato sua própria consciência de classe e a torna plenamente sua. Que isso não ocorre por si só, pelo desenvolvimento mecânico das forças econômicas da produção capitalista, e tampouco pelo simples crescimento orgânico da espontaneidade das massas, deve ser admitido por todo aquele que não nega incondicionalmente a função revolucionária do partido. A diferença entre a concepção leniniana de partido e as outras reside sobretudo no fato de que ele, por um lado, apreende de modo mais profundo e consequente a diferenciação econômica no interior do proletariado (o surgimento da aristocracia operária etc.) e, por outro lado, vislumbra a cooperação do proletariado com outras classes na nova perspectiva histórica que se apresenta. Segue-se disso uma importância maior do proletariado na preparação e na condução da revolução e, a partir daí, a função dirigente do partido em relação à classe operária."

Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento (1924), p. 45-48


Grigori Zinoviev: a visão de um apparatchik

"É impossível o predomínio do proletariado sem a supremacia do partido comunista. A ditadura da classe operária acha sua expressão na ditadura do partido, que ela criou e que se coloca à sua frente. A história do partido comunista russo é a história da classe operária russa."

Geschichte der Kommunistischen Partei Russlands (1923) citado por Lichtheim, El Marxismo, um estudio histórico y crítico, p. 399




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