Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista
Lenin
2. Um conceito-de-guerra
"I watched a snail crawl along the edge of a straight razor.
That's my dream; that's my nightmare.
Crawling, slithering, along the edge of a straight razor... and surviving."
That's my dream; that's my nightmare.
Crawling, slithering, along the edge of a straight razor... and surviving."
Coronel Kurz, Apocalypse Now
Terminologias políticas são confusas. O nome de um partido depende
não só de seu programa, mas também da imagem pública que projeta e da verve de
seus adversários. De resto, a própria longevidade de certas denominações
oculta suas incoerências e suas descontinuidades. É o que acontece com termos
como socialdemocracia ou comunismo, autênticos conceitos-de-guerra: aquelas
palavras incômodas, lábeis, equívocas, sempre prontas a serem lançadas como
pecha ou alçadas como estandartes.
Isso já o sabiam Marx e Engels em 1847 quando diziam que o
comunismo era o espectro que rondava a Europa. A intenção desmistificatória
do Manifesto não foi bem sucedida. O comunismo continuou a ter
cheiro de enxofre. Como conceito-de-guerra, o comunismo ficou
indelevelmente associado à conspiração e ao golpismo de esquerda. Uma fusão de
blanquismo (um antigo conceito-de-guerra hoje esquecido) com os fabulosos
complôs jesuíticos ou judaicos que ganharam corpo em apócrifos como Protocolos dos Sábios do Sião.
O próprio Marx teve poucas ocasiões de usar a palavra "comunismo" depois da dissolução da Liga dos Comunistas. Poucos quiseram assumir para si tal título. Nos meios socialdemocratas antes de 1917, comunismo era apenas o nome para o remoto estágio final da sociedade após do colapso do capitalismo. Ninguém era ou podia ser comunista em sã consciência. No entanto, qual é o partido que nunca acusou seus adversários de serem comunistas? O próprio Lenin, uma vez no poder, esteve às voltas com a oposição dos comunistas “de esquerda”, que, a seu ver, sofriam de doenças infantis.
Tendo em vista o seu uso como conceito-de-guerra e a decorrente indefinição de sua prática, não deixava de ser surpreendente redigir um manifesto comunista em 1848, o que o próprio Engels reconhecia:
"Quando surgiu não poderíamos chamá-lo um manifesto socialista. Em 1847, consideravam-se socialistas dois tipos diversos de pessoas. De um lado, havia os adeptos dos vários sistemas utópicos, principalmente os owenistas, na Inglaterra, e os fourieristas, na França, ambos já reduzidos a seitas agonizantes. De outro, os vários gêneros de curandeiros sociais, que queriam eliminar, por meio de suas diversas panaceias e com toda espécie de cataplasmas, as misérias sociais, sem tocar no capital e no lucro. Nos dois casos, eram pessoas que não pertenciam ao movimento dos trabalhadores, preferindo apoiar-se nas classes "cultas". Em contrapartida, o setor da classe trabalhadora que exigia uma transformação radical da sociedade, convencido de que a revoluções meramente políticas eram insuficientes, denominava-se então comunista. Tratava-se ainda de um comunismo mal esboçado, instintivo e, por vezes, grosseiro. Mas era bastante poderoso para dar origem a dois sistemas de comunismo utópico - na França o "icariano" de Cabet e na Alemanha o de Weitling. Em 1847, o socialismo significava um movimento burguês, e o comunismo, um movimento da classe trabalhadora. Ao menos no continente, o socialismo era muito bem considerado, enquanto o comunismo era o oposto. E como, desde então, éramos decididamente da opinião de que "a emancipação dos trabalhadores deve ser obra da própria classe trabalhadora", não podíamos hesitar entre os dois nomes a escolher. Posteriormente nunca pensamos em modificá-lo."
(Prefácio à edição inglesa do Manifesto, 1888)
É compreensível que Engels tentasse justificar, alegando a força das
circunstâncias da década de 1840, a adoção de um nome que pareceria
inevitavelmente envelhecido ou demasiado comprometido aos olhos das novas gerações
de militantes, que preferiam denominar-se socialdemocratas, socialistas,
anarquistas ou sindicalistas, embora continuassem a ler as sucessivas edições do Manifesto Comunista.
Portanto, que o Partido Operário Social Democrata da Rússia tenha modificado seu nome em 1918, tornando-se o Partido Comunista da Rússia (bolchevique) marca uma ruptura que transforma o marxismo. Contudo, a ruptura se ocultava como tal sob a retórica persistente de fundação, refundação ou restauração do verdadeiro partido comunista de 1848.
O tópos da restauração
foi repetido de maneira exaustiva pelos protagonistas, admiradores e
figurantes da vitoriosa Revolução de Outubro. Parecia que um
projeto histórico longamente cultivado tinha chegado à sua culminância e
realização, fechando o ciclo histórico do capitalismo e do Estado burguês. É
essa crença que lemos na prosa entusiástica de Victor Serge, na argumentação
seca de Lukács ou na concisão protocolar e didática do camarada Zinoviev. Mas é
essa mesma crença que lemos em um historiador neocon como
Richard Pipes, que, na ânsia de dar substância ao espectro do comunismo,
validava - com sinal inverso - as alegações dos comunistas russos:
"The ideal is one of full social equality that in its extreme
form (as in some of Plato's writings) calls for the dissolution of the
individual in the community. Inasmuch as social and economic inequalities
derive primarily from inequalities of possession, its attainment requires that
there be no "mine" and "thine" - in other words, no private
property. This ideal has an ancient heritage, reappearing time and again in the
history of Western thought from the seventh century B.C. to the present.
The program dates back to the middle of the nineteenth century and
is most closely associated with the names of Karl Marx and Friedrich Engels. In
their Communist Manifesto of 1848 Marx and Engels wrote that "the theory
of Communists may be summed up in a single sentence: abolition of private
property." Engels claimed that his friend had formulated a scientific theory
that demonstrated the inevitable collapse of societies based con class
distinctions.
Although throughout history there had been sporadic attempts to
realize the communist ideal, the first determined effort to this effect by
using the full power of the state occured in Russia between 1917 and
1991. The founder of this regime, Vladimir Lenin, saw a propertyless and
egalitarian society emerging from the "dictatorship of the
proletariat" that would eliminate private property and pave the way for
Communism.
We shall trace the history of Communism in this sequence both
because its makes sense logically and because it is in this manner that it has
evolved historically: first the idea, then the plan of realization, and finally
the implementation. But we will concentrate on the implementation because the
ideal and the program, taken by themselves, are relatively innocuous, whereas
every attempt to put them into practice, especially if backed by the full power
of the state, had had enormous consequences."
(Richard Pipes, Communism a History, Prefácio pp X-XI)
Nem o mais zeloso cronista do Partido teria formulado melhor a coincidência da progressão lógica e do processo histórico: o ideal milenar de
alguns dos maiores pensadores da humanidade, como Platão, formulado como
plano na segunda parte do Manifesto Comunista e realizado por
Lenin, lume e inspiração para todos aqueles que, ao longo do século XX
repetiriam o cometimento de tomar o Estado. (Porque, mais terrível do que
defender o ideal comunista ou enunciá-lo em termos teóricos, é usar o poder do
Estado para abolir a propriedade privada... o que confirma que o
Estado deveria ser seu guardião e possivelmente o comitê executivo da classe dos proprietários, segundo certa passagem
célebre do Manifesto).
Quando até a historiografia de
direita dá razão às fábulas alimentadas pelo Politburo, é preciso de cautela no trato das ilusões pertinazes, contra as quais vale reafirmar algumas evidências aparentemente acacianas, como a de que nem mesmo Lenin nasceu comunista e, por isso, o Partido Comunista
da Rússia nada tinha de fatal ou inelutável, embora também estivesse longe de
ser um acaso ou mero acidente de percurso. Quando entendemos que o Partido Comunista é justamente a tentativa de resolver - no plano político - a oposição entre necessidade histórica e ação voluntária, entramos no cerne dos escritos de Lenin e passamos, nós mesmos, a nos arrastar sobre o fio dialético da navalha.
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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein
Ernst Bloch
Из искры возгорится пламя
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