Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista
Lenin
1. A autoimagem do partido bolchevique vitorioso
Victor Serge: a visão de um
revolucionário
"As
massas têm milhões de rostos; não são nada homogêneas; são dominadas por
interesses de classe, diversos e contraditórios; só alcançam a consciência
verdadeira – sem a qual nenhuma ação fecunda é possível – mediante a
organização. As massas sublevadas da Rússia de 1917 alcançam a clara
consciência da ação necessária, dos meios, dos objetivos a serem atingidos
mediante o órgão do Partido Bolchevique. Isto não é uma teoria, é a expressão
de um fato. As relações entre o partido, a classe operária e as massas
trabalhadoras aparecem aqui com notável nitidez. O que querem, confusamente, os
marinheiros do Kronstadt, os soldados de Kazan, os operários de Petrogrado, de
Ivanovo-Voznesensk, de Moscou, de toda parte, os camponeses que saqueiam as
residências senhoriais, o que querem todos eles, sem a possibilidade de
expressar, claramente, suas aspirações, de as confrontar com as possibilidades
econômicas e políticas, de estabelecer os objetivos mais racionais, de escolher
os meios mais adequados para atingi-los, de se entender de ponta a ponta do
país, de informar-se uns dos outros, de disciplinar-se, de constituir, em uma
palavra, uma força exclusivamente inteligente, instruída, voluntária,
prodigiosa, o que todos eles querem, o partido o exprime em termos claros e o
faz. O partido lhes revela aquilo que pensam. O partido é o vínculo que os une
a todos, de ponta a ponta do país. O partido é sua consciência, sua
inteligência, sua organização.
(...)
Por
isso é que o percurso das massas até a revolução se expressa por um importante
fato político: os bolcheviques, pequena minoria revolucionária em março,
tornam-se, entre setembro e outubro, o partido da maioria. Fazer distinção
entre as massas e o partido torna-se impossível. É uma única corrente. (...) Os
bolcheviques, graças à sua justa compreensão teórica da dinâmica dos
acontecimentos, identificam-se, ao mesmo tempo, com as massas trabalhadoras e
com a necessidade histórica. “Os comunistas não têm interesses diferentes dos
de todo o proletariado”, está escrito no Manifesto do Partido Comunista, de
Marx e Engels. O quanto essa frase, escrita em 1847, nos parece, atualmente,
correta!
(...)
Os
verdadeiros chefes proletários são, ao mesmo tempo, guias, pilotos, capitães e
diretores de empresas: trata-se de uma formidável empresa de demolição e de
construção social. A eles cabe descobrir, pela análise científica dos processos
históricos, o significado dos acontecimentos, suas tendências, as
possibilidades que oferecem, bem como conceber o que o proletariado pode e deve
fazer, não pela própria vontade ou inspiração momentânea, mas por necessidade
histórica. Em suma, conhecer o real, perceber o possível, conceber a ação que
será o elo entre o real e o possível. Ao fazer isso, colocam-se,
invariavelmente, do único ponto de vista dos interesses superiores do
proletariado; de tal modo que seu pensamento é o do proletariado, armado de uma
disciplina científica. A consciência de classe do proletariado atinge, assim,
sua mais alta expressão entre os chefes da vanguarda organizada da classe
operária. (...) Mas seu mérito – o gênio de um Lenin – advém do fato de que o
desenvolvimento da consciência de classe nada tem de fatal; o sentimento de
todos pode muito bem permanecer latente sem se expressar, num determinado
momento; as possibilidades contidas numa situação podem não ser percebidas; a
ação necessária à salvação ou à vitória do proletariado pode não estar
concebida. A história recente do proletariado da Europa ocidental oferece
muitos exemplos de acontecimentos abortados em consequência da fragilidade da
consciência de classe. Completemos a definição do chefe proletário, homem dos
tempos novos, em contraste com os chefes das classes dirigentes de outrora e
das classes poderosas de hoje. Esses últimos são instrumentos cegos da
necessidade histórica: o revolucionário é seu instrumento consciente.
A
Revolução de Outubro nos oferece o exemplo de um partido proletário, por assim
dizer, ideal. Relativamente pouco numeroso na verdade, seus militantes vivem
com as massas, no seio das massas; longos anos de provações – uma revolução, a
ilegalidade, o exílio, a prisão, incessantes lutas de ideias – formaram seus
quadros admiráveis e chefes autênticos, cuja ação comum concretizou a unidade
de pensamento. A iniciativa de todos e o realce de personalidades fortes se
harmonizam no partido com uma centralização inteligente, uma disciplina
voluntária, o respeito às direções reconhecidas. Esse partido, dotado de
excelente aparelho de organização, não apresenta a menor deformação
burocrática. Nele não se observa nenhum fetichismo, não possui tradições malsãs
ou sequer equívocas; sua tradição principal é a da guerra ao oportunismo; ele é
revolucionário até a medula dos ossos. Assim, não deixa de ser notável que
hesitações profundas e tenazes ocorram em seu interior às vésperas da ação e
que vários de seus militantes, os mais influentes, se pronunciem veementemente
contra a tomada do poder."
O Ano I da Revolução Russa (1930) pp.76-77; 82-83
György Lukács: a visão de um
filósofo
"A
missão histórica do proletariado é desvencilhar-se de toda comunhão ideológica
com as outras classes e encontrar uma clara consciência de classe com base na
especificidade de sua situação e na autonomia de seus interesses. Somente desse
modo ele se tornará capaz de conduzir todos os oprimidos e explorados da
sociedade burguesa na luta conjunta contra seus dominadores econômicos e
políticos. A base objetiva desse papel dirigente do proletariado é sua posição
no processo de produção capitalista. No entanto, seria uma aplicação mecânica
do marxismo e, assim, uma ilusão totalmente anistórica imaginar que a
consciência de classe correta, que capacita o proletariado a exercer a
liderança, possa surgir nessa classe de maneira gradual, sem atritos e
regressões, como se o proletariado pudesse alcançar sua vocação
classista-revolucionária por meio de uma progressão ideológica natural. A
impossibilidade da transição econômica gradual do capitalismo para o socialismo
foi claramente comprovada nos debates sobre Bernstein. Mas, apesar disso, a
contrapartida ideológica dessa doutrina manteve-se incólume no pensamento de
muitos revolucionários sinceros na Europa e nem sequer foi reconhecida como
problema e perigo. (...)
Lenin
foi o primeiro e, por muito tempo, o único líder e teórico importante a
considerar esse problema em seu aspecto teoricamente central e, por isso,
decisivo na prática: o aspecto da organização. (...)
A
ideia de organização de Lenin pressupõe o fato da revolução, a atualidade da
revolução (...) O partido, como organização centralizada dos elementos mais
conscientes do proletariado – e apenas deste último -, é concebido como
instrumento da luta de classes numa época revolucionária. “Não se pode”,
segundo Lenin, “separar mecanicamente o aspecto político do organizacional”, e
aquele que afirma ou nega a organização partidária bolchevique, sem se
perguntar se vivemos ou não a época das revoluções proletárias, mostra não ter
compreendido nada da essência dessa questão.
Em
sentido radicalmente contrário, no entanto, pode-se levantar a seguinte
objeção: precisamente a atualidade da revolução torna supérflua uma organização
desse tipo. Pode ter sido útil, na época da inatividade do movimento
revolucionário, reunir e organizar os revolucionários profissionais. Contudo,
nos anos da revolução propriamente dita, quando as massas se encontram
profundamente agitadas e logo amadurecem, acumulando em semanas e mesmo em dias
mais experiências revolucionárias do que em décadas inteiras, quando até mesmo
aquela parte da classe que normalmente não toma parte no movimento – mesmo com
suas vantagens mais imediatas – passa a atuar de modo revolucionário, tal
organização revela-se inútil e sem sentido. Ela desperdiça energias úteis e,
quando se torna influente, paralisa a produtividade espontânea e revolucionária
das massas.
É
evidente que essa objeção conduz mais uma vez ao problema da progressão
ideológica natural. O Manifesto Comunista caracteriza de modo muito claro a
relação entre o partido revolucionário do proletariado e a totalidade da
classe:
"Os comunistas se distinguem dos
outros partidos operários somente em dois pontos: 1) nas diversas lutas
nacionais dos proletários, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns do
proletariado, independentemente da nacionalidade; 2) nas diferentes fases de
desenvolvimento por que passa a luta entre os proletários e burgueses,
representam, sempre e em toda parte, os interesses do movimento em seu
conjunto.
Na prática, os comunistas constituem a
fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que
impulsiona as demais; teoricamente têm sobre o resto do proletariado a vantagem
de uma compreensão nítida das condições, do curso e dos fins gerais do
movimento proletário."
Eles
são, em outras palavras, a face visível da consciência de classe do
proletariado. E a questão de sua organização é decidida pelo modo como o
proletariado alcança de fato sua própria consciência de classe e a torna
plenamente sua. Que isso não ocorre por si só, pelo desenvolvimento mecânico das
forças econômicas da produção capitalista, e tampouco pelo simples crescimento
orgânico da espontaneidade das massas, deve ser admitido por todo aquele que
não nega incondicionalmente a função revolucionária do partido. A diferença
entre a concepção leniniana de partido e as outras reside sobretudo no fato de
que ele, por um lado, apreende de modo mais profundo e consequente a
diferenciação econômica no interior do proletariado (o surgimento da
aristocracia operária etc.) e, por outro lado, vislumbra a cooperação do
proletariado com outras classes na nova perspectiva histórica que se apresenta.
Segue-se disso uma importância maior do proletariado na preparação e na
condução da revolução e, a partir daí, a função dirigente do partido em relação
à classe operária."
Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento (1924), p. 45-48
Grigori Zinoviev: a visão de um apparatchik
"É
impossível o predomínio do proletariado sem a supremacia do partido comunista.
A ditadura da classe operária acha sua expressão na ditadura do partido, que
ela criou e que se coloca à sua frente. A história do partido comunista russo é
a história da classe operária russa."
Geschichte der Kommunistischen Partei Russlands (1923) citado por Lichtheim, El Marxismo, um estudio histórico y crítico, p. 399
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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein
Ernst Bloch
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