domingo, 16 de novembro de 2014

A claraboia e o holofote #28 (I)







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Lenin 



1. A autoimagem do partido bolchevique vitorioso


Victor Serge: a visão de um revolucionário

"As massas têm milhões de rostos; não são nada homogêneas; são dominadas por interesses de classe, diversos e contraditórios; só alcançam a consciência verdadeira – sem a qual nenhuma ação fecunda é possível – mediante a organização. As massas sublevadas da Rússia de 1917 alcançam a clara consciência da ação necessária, dos meios, dos objetivos a serem atingidos mediante o órgão do Partido Bolchevique. Isto não é uma teoria, é a expressão de um fato. As relações entre o partido, a classe operária e as massas trabalhadoras aparecem aqui com notável nitidez. O que querem, confusamente, os marinheiros do Kronstadt, os soldados de Kazan, os operários de Petrogrado, de Ivanovo-Voznesensk, de Moscou, de toda parte, os camponeses que saqueiam as residências senhoriais, o que querem todos eles, sem a possibilidade de expressar, claramente, suas aspirações, de as confrontar com as possibilidades econômicas e políticas, de estabelecer os objetivos mais racionais, de escolher os meios mais adequados para atingi-los, de se entender de ponta a ponta do país, de informar-se uns dos outros, de disciplinar-se, de constituir, em uma palavra, uma força exclusivamente inteligente, instruída, voluntária, prodigiosa, o que todos eles querem, o partido o exprime em termos claros e o faz. O partido lhes revela aquilo que pensam. O partido é o vínculo que os une a todos, de ponta a ponta do país. O partido é sua consciência, sua inteligência, sua organização.
(...)
Por isso é que o percurso das massas até a revolução se expressa por um importante fato político: os bolcheviques, pequena minoria revolucionária em março, tornam-se, entre setembro e outubro, o partido da maioria. Fazer distinção entre as massas e o partido torna-se impossível. É uma única corrente. (...) Os bolcheviques, graças à sua justa compreensão teórica da dinâmica dos acontecimentos, identificam-se, ao mesmo tempo, com as massas trabalhadoras e com a necessidade histórica. “Os comunistas não têm interesses diferentes dos de todo o proletariado”, está escrito no Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels. O quanto essa frase, escrita em 1847, nos parece, atualmente, correta!
(...)
Os verdadeiros chefes proletários são, ao mesmo tempo, guias, pilotos, capitães e diretores de empresas: trata-se de uma formidável empresa de demolição e de construção social. A eles cabe descobrir, pela análise científica dos processos históricos, o significado dos acontecimentos, suas tendências, as possibilidades que oferecem, bem como conceber o que o proletariado pode e deve fazer, não pela própria vontade ou inspiração momentânea, mas por necessidade histórica. Em suma, conhecer o real, perceber o possível, conceber a ação que será o elo entre o real e o possível. Ao fazer isso, colocam-se, invariavelmente, do único ponto de vista dos interesses superiores do proletariado; de tal modo que seu pensamento é o do proletariado, armado de uma disciplina científica. A consciência de classe do proletariado atinge, assim, sua mais alta expressão entre os chefes da vanguarda organizada da classe operária. (...) Mas seu mérito – o gênio de um Lenin – advém do fato de que o desenvolvimento da consciência de classe nada tem de fatal; o sentimento de todos pode muito bem permanecer latente sem se expressar, num determinado momento; as possibilidades contidas numa situação podem não ser percebidas; a ação necessária à salvação ou à vitória do proletariado pode não estar concebida. A história recente do proletariado da Europa ocidental oferece muitos exemplos de acontecimentos abortados em consequência da fragilidade da consciência de classe. Completemos a definição do chefe proletário, homem dos tempos novos, em contraste com os chefes das classes dirigentes de outrora e das classes poderosas de hoje. Esses últimos são instrumentos cegos da necessidade histórica: o revolucionário é seu instrumento consciente.
A Revolução de Outubro nos oferece o exemplo de um partido proletário, por assim dizer, ideal. Relativamente pouco numeroso na verdade, seus militantes vivem com as massas, no seio das massas; longos anos de provações – uma revolução, a ilegalidade, o exílio, a prisão, incessantes lutas de ideias – formaram seus quadros admiráveis e chefes autênticos, cuja ação comum concretizou a unidade de pensamento. A iniciativa de todos e o realce de personalidades fortes se harmonizam no partido com uma centralização inteligente, uma disciplina voluntária, o respeito às direções reconhecidas. Esse partido, dotado de excelente aparelho de organização, não apresenta a menor deformação burocrática. Nele não se observa nenhum fetichismo, não possui tradições malsãs ou sequer equívocas; sua tradição principal é a da guerra ao oportunismo; ele é revolucionário até a medula dos ossos. Assim, não deixa de ser notável que hesitações profundas e tenazes ocorram em seu interior às vésperas da ação e que vários de seus militantes, os mais influentes, se pronunciem veementemente contra a tomada do poder."

O Ano I da Revolução Russa (1930) pp.76-77; 82-83


György Lukács: a visão de um filósofo

"A missão histórica do proletariado é desvencilhar-se de toda comunhão ideológica com as outras classes e encontrar uma clara consciência de classe com base na especificidade de sua situação e na autonomia de seus interesses. Somente desse modo ele se tornará capaz de conduzir todos os oprimidos e explorados da sociedade burguesa na luta conjunta contra seus dominadores econômicos e políticos. A base objetiva desse papel dirigente do proletariado é sua posição no processo de produção capitalista. No entanto, seria uma aplicação mecânica do marxismo e, assim, uma ilusão totalmente anistórica imaginar que a consciência de classe correta, que capacita o proletariado a exercer a liderança, possa surgir nessa classe de maneira gradual, sem atritos e regressões, como se o proletariado pudesse alcançar sua vocação classista-revolucionária por meio de uma progressão ideológica natural. A impossibilidade da transição econômica gradual do capitalismo para o socialismo foi claramente comprovada nos debates sobre Bernstein. Mas, apesar disso, a contrapartida ideológica dessa doutrina manteve-se incólume no pensamento de muitos revolucionários sinceros na Europa e nem sequer foi reconhecida como problema e perigo. (...)
Lenin foi o primeiro e, por muito tempo, o único líder e teórico importante a considerar esse problema em seu aspecto teoricamente central e, por isso, decisivo na prática: o aspecto da organização. (...)
A ideia de organização de Lenin pressupõe o fato da revolução, a atualidade da revolução (...) O partido, como organização centralizada dos elementos mais conscientes do proletariado – e apenas deste último -, é concebido como instrumento da luta de classes numa época revolucionária. “Não se pode”, segundo Lenin, “separar mecanicamente o aspecto político do organizacional”, e aquele que afirma ou nega a organização partidária bolchevique, sem se perguntar se vivemos ou não a época das revoluções proletárias, mostra não ter compreendido nada da essência dessa questão.
Em sentido radicalmente contrário, no entanto, pode-se levantar a seguinte objeção: precisamente a atualidade da revolução torna supérflua uma organização desse tipo. Pode ter sido útil, na época da inatividade do movimento revolucionário, reunir e organizar os revolucionários profissionais. Contudo, nos anos da revolução propriamente dita, quando as massas se encontram profundamente agitadas e logo amadurecem, acumulando em semanas e mesmo em dias mais experiências revolucionárias do que em décadas inteiras, quando até mesmo aquela parte da classe que normalmente não toma parte no movimento – mesmo com suas vantagens mais imediatas – passa a atuar de modo revolucionário, tal organização revela-se inútil e sem sentido. Ela desperdiça energias úteis e, quando se torna influente, paralisa a produtividade espontânea e revolucionária das massas.
É evidente que essa objeção conduz mais uma vez ao problema da progressão ideológica natural. O Manifesto Comunista caracteriza de modo muito claro a relação entre o partido revolucionário do proletariado e a totalidade da classe:

"Os comunistas se distinguem dos outros partidos operários somente em dois pontos: 1) nas diversas lutas nacionais dos proletários, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns do proletariado, independentemente da nacionalidade; 2) nas diferentes fases de desenvolvimento por que passa a luta entre os proletários e burgueses, representam, sempre e em toda parte, os interesses do movimento em seu conjunto.

Na prática, os comunistas constituem a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais; teoricamente têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, do curso e dos fins gerais do movimento proletário."

Eles são, em outras palavras, a face visível da consciência de classe do proletariado. E a questão de sua organização é decidida pelo modo como o proletariado alcança de fato sua própria consciência de classe e a torna plenamente sua. Que isso não ocorre por si só, pelo desenvolvimento mecânico das forças econômicas da produção capitalista, e tampouco pelo simples crescimento orgânico da espontaneidade das massas, deve ser admitido por todo aquele que não nega incondicionalmente a função revolucionária do partido. A diferença entre a concepção leniniana de partido e as outras reside sobretudo no fato de que ele, por um lado, apreende de modo mais profundo e consequente a diferenciação econômica no interior do proletariado (o surgimento da aristocracia operária etc.) e, por outro lado, vislumbra a cooperação do proletariado com outras classes na nova perspectiva histórica que se apresenta. Segue-se disso uma importância maior do proletariado na preparação e na condução da revolução e, a partir daí, a função dirigente do partido em relação à classe operária."

Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento (1924), p. 45-48


Grigori Zinoviev: a visão de um apparatchik

"É impossível o predomínio do proletariado sem a supremacia do partido comunista. A ditadura da classe operária acha sua expressão na ditadura do partido, que ela criou e que se coloca à sua frente. A história do partido comunista russo é a história da classe operária russa."

Geschichte der Kommunistischen Partei Russlands (1923) citado por Lichtheim, El Marxismo, um estudio histórico y crítico, p. 399




********



Edward Acton, Vladimir Cherniaev & William G. Rosenberg, Critical Companion to the Russian Revolution 1914-1921, Hodder Arnold, London, 1997 | Louis Althusser, Lenin before Hegel, 1969 | Kevin Anderson, Lenin, Hegel and Western Marxism, University of Illinois Press, Chicago, 1995 | Daniel Bensaïd, Lenin, ou a política do tempo partido | Gérard Bensussan, George Labica, Dictionnaire Critique du Marxisme, Quadrige/PUF, Paris, 1999 | Eduard Bernstein, The Preconditions of Socialism, Cambridge University Press, Cambridge, 2010 | Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, Gianfranco Pasquino, Dicionário de Política, EdUnB, Brasília, 1998 | Tom Bottomore, Dicionário do Pensamento Marxista, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997 | Augusto César Buonicore, Lênin e o partido de vanguarda | Paul Bushkovitch, História Concisa da Rússia, Edipro, São Paulo, 2014 | F. Chatelet, O. Duhamel, E. Pisier, Dicionário das Obras Políticas, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1993 | Hal Draper, The Myth of Lenin's "Concept of Party", 1990 | Hal Draper, The Adventures of Communist Manifesto, Center for Socialist History, Alameda, 2014 | Marc Ferro, A Revolução Russa de 1917, Perspectiva, São Paulo, 2007 | Orlando Figes, A People's Tragedy - The Russian Revolution 1891-1924, Penguin Books, London, 1998 | Jacob Gorender, Bukharin: Economia, coleção Grandes Cientistas Sociais, Ática, São Paulo, 1990 | Nicolai Hartmann, A Filosofia do Idealismo Alemão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1983 | G. W. F. Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio, vol. 1 A Ciência da Lógica, Edições Loyola, São Paulo, 1995 | G. W. F. Hegel, Ciência da Lógica (excertos), Barcarolla, São Paulo, 2011 | Rudolf Hilferding, Finance Capital: a study of the latest phase of capitalist development, 1910 | J. A. Hobson, Imperialism: a study, James Nisbet & Co. Limited, London, 1902 | E. J. Hosbawn, Revolucionários, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 2003 | Karl Kautsky, Ultra-Imperialism in Neue Zeit, setembro de 1914 (com introdução de Martin Thomas) | Ekaterina Khaustova, Pre-revolution living standards: Russia 1888-1917, 2013 | M. C. Howard and J. E. King, A History of Marxian Economics, volume 1 1883-1929, Princeton University Press, New Jersey, 1989 | Michael Inwood, Dicionário Hegel, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997 | Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism (3 vol.), Clarendon Press, Oxford, 1978 | Stathis Kouvelakis, “Lenin como lector de Hegel. Hipótesis para una lectura de los Cuadernos de Lenin sobre La ciencia de la lógica” in Lenin Reativado. Hacia una política de la verdad (org. Slavoj Zizek, Sebastian Budgen, Stathis Kouvelakis), Ediciones Akal, Madrid, 2010 | Robert Kurz, O colapso da modernização, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1996 | V. I. Lenin, Obras Escolhidas em três tomos, Edições Avante, Lisboa-Moscou, 1978 | V. I. Lenin, The Development of Capitalism in Russia, 1899 | V. I. Lenin, The Position and Tasks ofthe Socialist International1914 | V. I. Lenin, Introduction to Imperialism and World Economy by N. I. Bukharin, 1915 | V. I. Lenin, Imperialism and the split in socialism, 1916 | V. I. Lenin, Letters on tactics, 1917 | V. I. Lenin, Theses on fundamental tasks of the Second Congress of the Communist Internacional, 1920 | V. I. Lenin, Cadernos sobre a Dialética de Hegel, Introdução de Henri Lefebvre e Norbert Guterman, Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 2011 | George Lichtheim, El marxismo: un estudio histórico y crítico, Editorial Anagrama, Barcelona, 1977 | Michel Löwy, De la grande logique de Hegel àla gare finlandaise de Petrograd, L'Homme et la Societé, número 15, 1970 | György Lukács, Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento, Boitempo Editorial, São Paulo, 2012 | Rosa Luxemburg, The Accumulation of Capital (with introduction of Joan Robinson), Routledge and Kegan, London, 1951 | Herbert Marcuse, Razão e Revolução, Editora Saga, Rio de Janeiro, 1969 | Karl Marx, Manifesto Comunista, Boitempo Editorial, São Paulo, 1998 | Karl Marx, O Capital, Nova Cultural, São Paulo, 1985 | Wolfgang J. Mommsen, Theories of Imperialism, Chicago University Press, 1980 | João Quartim de Moraes, A grande virada de Lenin, Revista Crítica Marxista n. 34, 2012 | Richard Pipes, Communism: a history, A Modern Library Chronicles Books, New York, 2001 | Érico Sachs, Partido, Vanguarda e Classe, 1968 | David Priestland, A Bandeira Vermelha: uma história do comunismo, Leya, São Paulo, 2012 | Victor Serge, O ano I da Revolução Russa, Boitempo Editorial, São Paulo, 2007 | Joseph Seymour, Lenin e o Partido de Vanguarda, 1977-78  | E. K. Hunt e J. Sherman, História do Pensamento Econômico, Editora Vozes, Petrópolis, 1986 | Maurício Tragtenberg, A Revolução Russa, Editora Unesp. São Paulo, 2007 | Leon Trotsky, A história da Revolução Russa (3 vol), Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977 | Adam B. Ulam, Os Bolcheviques, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1976 | Dmitri Volkogonov, Lenin - a new biography, The Free Press, New York, 2014 | Alan Woods, Bolshevism: the Road to Revolution, 1999 |  Grigory Zinoviev, History of the Bolshevik Party, 1924  | Slavoj Žižek (org), Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917, Boitempo Editorial, São Paulo, 2005




Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein



Ernst Bloch



Из искры возгорится пламя





Nenhum comentário:

Postar um comentário