domingo, 22 de março de 2015

A claraboia e o holofote #28 (IX)









Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Lenin 

9. A (re) fundação do Partido Comunista



“Agarramo-nos à camisa suja a que estamos habituados e à qual já tomamos apego...

Já é tempo de tirar a camisa suja, já é tempo de vestir roupa limpa.”

Lenin





Não serei o enésimo escriba a recordar a travessia mítica do herói de Zurich a Petrogrado: a negociação com o governo alemão por intermédio do social-democrata Parvus, o trem "lacrado" passando pelo território do Kaiser, o desembarque na estação Finlândia ao som da Marselhesa. Tampouco quero voltar aos murmúrios e aos gritos com que bolcheviques e mencheviques desaprovaram, consternados uns e furiosos outros, as teses apresentadas no Palácio Táuride na noite de 4 de abril de 1917 (dia 17 do calendário gregoriano), as quais, três dias depois, foram estampadas no PravdaMuito melhor é passarmos logo às palavras que o camarada Lenin pronunciou naquela ocasião:




Sobre as tarefas do proletariado na presente revolução
(Teses de Abril)


1.
Em nossa atitude perante a guerra, que por parte da Rússia continua a ser indiscutivelmente uma guerra imperialista, de rapina, mesmo sob o novo governo Lvov e cia., em virtude do caráter capitalista deste governo, é intolerável a menor concessão ao ‘defensivismo revolucionário’.

O proletariado consciente só pode dar assentimento a uma guerra revolucionária que justifique verdadeiramente o defensivismo revolucionário nas seguintes condições: a) passagem do poder para as mãos do proletariado e dos setores pobres do campesinato que a ele aderem; b) renúncia de fato, e não em palavras, a todas as anexações; c) ruptura completa de fato com todos os interesses do capital.

Dada a indubitável boa-fé de grandes setores de representantes de massa do defensivismo revolucionário, que admitem a guerra só como uma necessidade e não para fins de conquista, e por estarem sendo enganados pela burguesia, é preciso esclarecê-los sobre seu erro de modo particularmente minucioso, perseverante, paciente, explicar-lhes a ligação indissolúvel do capital com a guerra imperialista e demonstrar-lhes que sem derrubar o capital é impossível pôr fim à guerra com uma paz verdadeiramente democrática e não imposta pela violência.

Organização da mais ampla propaganda deste ponto de vista entre os soldados que estão na frente de guerra.

Confraternização.

2.
A peculiaridade do momento atual na Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução, que deu poder à burguesia por faltar ao proletariado o grau necessário de consciência e organização, para sua segunda etapa, que deve colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato.

Esta transição caracteriza-se, por um lado, pelo máximo de legalidade (a Rússia é agora o país mais livre do mundo entre todos os países beligerantes); por outro lado, pela ausência de violência contra as massas e, finalmente, pelas relações de confiança e sem fundamento destas com o governo dos capitalistas, os piores inimigos da paz e do socialismo.

Esta peculiaridade exige de nós habilidade para nos adaptarmos às condições especiais do trabalho do partido entre as amplas massas do proletariado, duma amplitude sem precedentes, que acabam de despertar para a vida política.

3.
Nenhum apoio ao governo provisório, explicar a completa falsidade de todas as suas promessas, sobretudo a da renúncia às anexações. Desmascaramento, em vez da ‘exigência’ inadmissível e semeadora de ilusões de que este governo, governo de capitalistas, deixe de ser imperialista.

4.
Reconhecer o fato de que, na maior parte dos sovietes de deputados operários, nosso partido está em minoria, e, no momento, em grande minoria, diante do bloco de todos os elementos oportunistas pequeno-burgueses, sujeitos à influência da burguesia e que levam a sua influência para o seio do proletariado, desde os socialistas populares e os socialistas revolucionários até o CO [Comitê de Organização] (Tchkheidze, Tsereteli, etc), Steklov, etc.

Explicar às massas que os sovietes de deputados operários (SDO) são a única forma possível de governo revolucionário e que, por isso, enquanto este governo se deixar influenciar pela burguesia, nossa tarefa só pode consistir em explicar os erros de sua tática de modo paciente, sistemático, tenaz, e adaptado especialmente às necessidades práticas das massas.

Enquanto estivermos em minoria, desenvolveremos um trabalho de crítica e esclarecimento dos erros, defendendo ao mesmo tempo a necessidade de que todo o poder de Estado passe para os sovietes de deputados operários, a fim de que, sobre a base da experiência, as massas se libertem dos seus erros.

5.
Não uma república parlamentar – regressar dos SDO a ela seria um passo atrás, mas uma república dos sovietes de deputados operários, assalariados agrícolas e camponeses de todo o país, de baixo para cima.

Supressão da polícia, do exército e do funcionalismo.

A remuneração de todos os funcionários, elegíveis e exoneráveis em qualquer momento, não deverá exceder o salário médio de um bom operário.

6.
No programa agrário, transferir o centro de gravidade para os sovietes de deputados assalariados agrícolas.

Confisco de todas as terras do país, com os sovietes locais de deputados assalariados agrícolas e camponeses dispondo delas. Criação de sovietes de deputados dos camponeses pobres. Fazer de cada grande herdade (com dimensão de cerca de 100 a 300 deciatinas, segundo as condições locais ou outras condições e segundo a determinação das instituições locais) uma exploração-modelo sob o controle dos deputados assalariados agrícolas e por conta da coletividade.

7.
Fusão imediata de todos os bancos do país num banco nacional único e introdução do controle por parte do SDO.

8.
Não 'introdução' do socialismo como nossa tarefa imediata, mas apenas passar ao controle da produção social e da distribuição por parte dos SDO.

9.
Tarefas do partido:

a)   Congresso imediato do partido

b)   Modificação do programa do partido, principalmente:

1)   Sobre o imperialismo e a guerra imperialista;

2)   Sobre a posição perante o Estado e nossa reivindicação de um ‘Estado-comuna’;

3)   Emenda do programa mínimo, já antiquado;

4)   Mudança de denominação do partido [nota de Lenin: Em lugar de ‘social-democracia’, cujos chefes oficiais traíram o socialismo no mundo inteiro, passando para o lado da burguesia (os ‘defensistas’ e os vacilantes ‘kautskianos’), devemos denominar-nos Partido Comunista]

10.
Renovação da Internacional.

Iniciativa de constituir uma Internacional revolucionária, uma Internacional contra os social-chauvinistas e contra o ‘centro’. 



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"Para a maioria dos que estavam ali presentes, tais declarações tiveram o efeito de uma bomba, sendo encaradas como um repúdio não só da posição bolchevique anterior, como também do próprio marxismo, 'Todos' sabiam que aquele não era o momento para uma revolução socialista, mas sim para uma revolução de índole democrática burguesa. As teses de Lenin eram uma declaração anarquista, própria de um aventureiro e não de um marxista. 'Mas isso é um absurdo', protestou um menchevique, 'uma rematada loucura'. Para outros, seguramente Lenin estava fora de sintonia com a situação real vigente na Rússia. Depois que ele tivesse observado melhor a realidade que o cercava, certamente se tornaria mais sensato e lúcido. Com um ar triunfante, os líderes mencheviques concluíram que aquele homem estava, de maneira óbvia, politcamente morto. Tal como Plekhanov, com seu nacionalismo excessivo, assim Lenin, com seu anarquismo, tinha naturalmente se colocado fora do marxismo russo."
(Adam Ulam, Os Bolcheviques, p. 376)


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Talvez poucos tenham dado importância à proposta de mudar o nome do partido, em meio aos pesados disparos que Lenin dirigiu contra posições que os social-democratas russos tinham como bem estabelecidas, mas a fundação do partido comunista, que seria aprovada poucos meses depois da tomada de poder pelos bolcheviques, finalmente deu carne, ossos, sangue e nervos ao espectro do comunismo. Os efeitos geopolíticos do advento do partido comunista leninista serão sentidos pela maior parte do século XX, mas este é o momento em que meu folhetim político-filosófico se aparta do caminho dos historiadores e sovietólogos, pois não é o líder revolucionário e chefe de Estado que iremos acompanhar, mas sim o homem que, entre janeiro e abril  de 17, transformou radicalmente as condições de legibilidade do Manifesto de Marx e Engels, ao imprimir nesse texto uma marca - ou mácula - da qual não nos livramos até hoje, tornando pobres e anacrônicas as leituras feitas pelos luminares da 2ª Internacional.


Para os social-democratas, o Manifesto era basicamente um documento histórico venerável, uma espécie de certidão de nascimento, amarelada e quebradiça, do início do seu movimento, um marco zero em relação ao qual podiam medir o notável avanços dos partidos operários no plano internacional. Esse era a perspectiva do grande marxista italiano Antonio Labriola em 1895:

"Daqui a três anos nós, socialistas, poderemos comemorar nosso jubileu. A memorável data da publicação do Manifesto Comunista (fevereiro de 1848) marca nossa primeira e certa entrada na História. A essa data se refere cada juízo, cada apreciação nossa sobre os progressos que o proletariado vem fazendo nesse meio século." 
("Em memória do Manifesto Comunista" in Manifesto Comunista, editora Boitempo, 1998, p. 87)

O ponto de vista de Kaustsky não era diferente, quando julgava que o velho Manifesto poderia ser um guia valioso para os social-democratas russos uma vez que certos aspectos que o tornavam obsoleto nas sociedades europeias mais avançadas ainda persistiam na Rússia (cf. A claraboia e o holofote #26 ).

Lenin lançou no descrédito essas leituras condescendentes e cheias de convicção otimista no progresso histórico. Ao invés de ver no Manifesto a descrição incipiente de uma configuração já superada do sistema social e, portanto, obsoleta do ponto de vista político, Lenin entendeu o Manifesto como um gráfico geral do sistema de forças sociais e políticas no regime do capital, gráfico que só poderia se tornar inatual quando o próprio capitalismo fosse abolido. 

Lenin trouxe novamente à luz a urgência revolucionária do panfleto de Marx e Engels, recuperando a sua segunda parte, mas isso se fez a um custo prático e político muito alto, como perceberam Rosa Luxemburgo e Antonio Gramsci.


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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein


Ernst Bloch



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2 comentários:

  1. Após algum tempo esmiuçando o seu blog, tenho certeza de uma coisa: essas foram as leituras mais frustrantes da minha vida. Dotado apenas do raso conhecimento de um aluno mediano de ensino médio, quando tento ler algum de seus posts tenho que pausar a leitura, linha sim, linha também, para jogar no Google nomes, datas, linhas filosóficas, títulos e trechos em uma língua estrangeira ou outra. Salvo raríssimas exceções os textos aqui publicados passam tão longe da minha alçada que chega a ser risível. Acho que vou deixar pra tentar de novo daqui alguns anos.

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  2. Carlos,

    Não sei se te agradeço pelo heroísmo de esmiuçar meu blog ou se peço desculpas pela dificuldade do assunto que tenho tratado. Na verdade, minhas postagens são um acerto de contas com alguns ex-colegas e ex-professores do curso de Filosofia da USP. Trata-se de uma discussão que começou há mais de 25 anos e que não acabou.. Depois de tantos anos e de tantas leituras, a conversa ficou tão hermética e tão especializada que se tornou muito difícil para alguém tentar entrar nela agora. Daí a frustração que você sentiu.

    um grande abraço,

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