domingo, 17 de maio de 2015

A claraboia e o holofote #29 (I)








Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



Rosa Luxemburg




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Um ano após a tomada do poder na Rússia pelos bolcheviques, a Primeira Guerra Mundial chegava ao fim. No dia 9 de novembro, o Kaiser Wilhelm II abdicou; dois dias depois, assinou-se o armistício de Compiègne. A Alemanha derrotada, agora uma república parlamentar, passou a ser governada pelo SPD, tendo à frente Friedrich Ebert e Philipp Scheidemann, da ala direita e oportunista do partido. Os integrantes da ala esquerda, desde 1915, se reuniam no Partido Social-democrata Alemão Independente (USPD), que abrigava correntes radicais como a Liga Spartakus, fundada por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg.

Em 14 de dezembro de 1918, Rosa publicou o programa da Liga, que em poucos dias viria a ser adotado, com pequenas modificações, pelo Partido Comunista Alemão (KPD). É por esse documento inflamado que começarei meu percurso na obra de Rosa Luxemburg.



O que quer a Liga Spartakus?

“O socialismo é nesta hora a única tábua de salvação da humanidade. Sobre as muralhas da sociedade capitalista que desmoronam, brilha, em letras de fogo, a advertência do Manifesto Comunista: Socialismo ou queda na barbárie!

A realização da sociedade socialista é a mais grandiosa tarefa que, na história do mundo, já coube a uma classe e a uma revolução. Essa tarefa exige uma completa transformação do Estado e uma completa mudança dos fundamentos econômicos e sociais da produção.

Essa transformação e essa mudança não podem ser decretadas por nenhuma autoridade, comissão ou parlamento: só a própria massa popular pode empreendê-las e realizá-las.

(...)

A essência da sociedade socialista consiste no seguinte: a grande massa trabalhadora deixa de ser uma massa governada para viver ela mesma a vida política e econômica em sua totalidade, e para orientá-la por uma autodeterminação consciente e livre.

Assim, da cúpula do Estado à menor comunidade, a massa proletária precisa substituir os órgãos herdados da dominação burguesa – Conselho Federal, parlamentos, conselhos municipais – por seus próprios órgãos de classe, os Conselhos de Trabalhadores e Soldados. Precisa ocupar todos os postos, controlar todas as funções, aferir todas as necessidades do Estado pelos próprios interesses da classe trabalhadora e pelas tarefas socialistas. E só por uma influência recíproca constante, viva, entre as massas populares e seus organismos, os Conselhos de Trabalhadores e Soldados, é que a atividade das massas pode insuflar no Estado um espírito socialista.

Por sua vez, a transformação econômica só pode realizar-se sob a forma de um processo levado a cabo pela ação das massas proletárias. No que se refere à socialização, secos decretos emitidos pelas autoridades revolucionárias supremas não passam de palavras ocas. Só o operariado, pela própria ação, pode transformar o verbo em carne. Numa luta tenaz contra o capital, num corpo a corpo em cada empresa, graças à pressão direta das massas, às greves, graça à criação dos seus organismos representativos permanentes, os trabalhadores podem alcançar o controle e, finalmente, a direção efetiva da produção.

As massas proletárias devem aprender, de máquinas mortas que o capitalista instala no processo de produção, a tornar-se dirigentes autônomas desse processo, livres, que pensam. Devem adquirir o senso das responsabilidades, próprio de membros atuantes da coletividade, única proprietária da totalidade da riqueza social. Precisam mostrar zelo sem o chicote do patrão, máximo rendimento sem o contramestre capitalista, disciplina sem sujeição e ordem sem dominação. O mais elevado idealismo no interesse da coletividade, a mais estrita autodisciplina, verdadeiro senso cívico das massas constituem o fundamento moral da sociedade socialista, assim como a estupidez, egoísmo e corrupção são os fundamentos morais da sociedade capitalista.

Só pela própria atividade, pela própria experiência, pode a massa trabalhadora adquirir todas essas virtudes cívicas socialistas, assim como os conhecimentos e as capacidades necessárias à direção das empresas socialistas.

A socialização da sociedade não pode ser realizada em toda a sua amplitude senão por uma luta tenaz, infatigável da massa trabalhadora em todos os pontos onde o trabalho enfrenta o capital, onde o povo e a dominação de classe da burguesia se encaram, olhos nos olhos. A libertação da classe trabalhadora deve ser obra da própria classe trabalhadora.

***

Nas revoluções burguesas, o derramamento de sangue, o terror, o assassinato político eram as armas indispensáveis nas mãos das classes ascendentes.

A revolução proletária não precisa do terror para realizar seus fins, ela odeia e abomina o assassinato. Ela não precisa desses meios de luta porque não combate indivíduos, mas instituições, porque não entra na arena cheia de ilusões ingênuas que, perdidas, levariam a uma vingança sangrenta. Não é a tentativa desesperada de uma minoria de moldar o mundo à força de acordo com o seu ideal, mas a ação da grande massa dos milhões de homens do povo, chamada a cumprir sua missão histórica e a fazer da necessidade histórica uma realidade.

Mas a revolução proletária é, ao mesmo tempo, o dobre de finados de toda a servidão e de toda a opressão. Eis por que, contra ela, numa luta de vida ou morte, como se fossem um único homem, se erguem todos os capitalistas, os junkers, os pequeno-burgueses, os oficiais, todos os aproveitadores e parasitas da exploração e da dominação de classe.

Não passa de delírio extravagante acreditar que os capitalistas se renderiam de bom grado ao veredito socialista de um parlamento, de uma Assembleia Nacional, que renunciariam tranquilamente à propriedade, ao lucro, aos privilégios da exploração. Todas as classes dominantes, com a mais tenaz energia, lutaram até o fim por seus privilégios. Os patrícios de Roma, assim como os barões feudais da Idade Média, os gentlemen ingleses, bem como os mercadores de escravos americanos, os boiardos da Valáquia, assim como os fabricantes de seda de Lyon – todos derramaram rios de sangue, caminharam sobre cadáveres, em meios a incêndios e crimes, provocaram a guerra civil e traíram seus países para defender os privilégios e poder.

Último rebento da classe dos exploradores, a classe capitalista imperialista ultrapassa em brutalidade, em cinismo nu e cru, em abjeção todas as suas antecessoras. Ela defenderá com unhas e dentes o que tem de mais sagrado:  o lucro e o privilégio da exploração. Utilizará os métodos sádicos revelados em toda a história da política colonial e no decorrer da última guerra. Moverá céus e terra contra o proletariado. Mobilizará o campesinato contra as cidades, açulará camadas operárias retrógradas contra a vanguarda socialista, utilizará oficiais para organizar massacres, tentará paralisar toda medida socialista com milhares de meios de resistência passiva, lançará contra a revolução vinte Vendeias, pedirá socorro ao inimigo externo, às armas dos Clemenceau, Lloyd George e Wilson, preferindo transformar a Alemanha num monte de escombros a renunciar de bom grado à escravidão do salário.

Será preciso quebrar todas essas resistências passo a passo, com mão de ferro e uma brutal energia. À violência da contrarrevolução burguesa é preciso opor a violência revolucionária do proletariado, aos atentados e às intrigas urdidas pela burguesia, a lucidez inquebrantável, a vigilância e a constante atividade da massa proletária. Às medidas da contrarrevolução, o armamento do povo e o desarmamento das classes dominantes. Às manobras de obstrução parlamentar da burguesia, a organização ativa da massa dos trabalhadores e soldados. À onipresença e aos mil meios de que dispõe a sociedade burguesa, é preciso opor o poder concentrado da classe trabalhadora, elevado ao máximo. Só a frente única do conjunto do proletariado alemão, unindo o proletariado do Sul e do Norte da Alemanha, o proletariado urbano e rural, os trabalhadores e soldados, a liderança intelectual viva da revolução alemã e a Internacional, só o alargamento da revolução proletária alemã permitirá criar a base de granito sobre a qual o edifício do futuro pode ser construído.

A luta pelo socialismo é a mais prodigiosa guerra civil conhecida até hoje pela história do mundo, e a revolução proletária deve-se preparar para ela com os instrumentos necessários, precisa aprender a utilizá-los – para lutar e vencer.

Dotar a massa compacta do povo trabalhador com a totalidade do poder político para que realize as tarefas da revolução – eis a ditadura do proletariado e, portanto, a verdadeira democracia. Não há democracia quando o escravo assalariado se senta ao lado do capitalista, o proletário agrícola, ao lado do junker, numa igualdade falaciosa, para debater seus problemas vitais de forma parlamentar. Mas quando a massa dos milhões de proletários empunha com sua mão calosa a totalidade do poder de Estado, como o deus Thor o seu martelo, para arremessá-lo à cabeça das classes dominantes, só então haverá uma democracia que não sirva para lograr o povo.
(Rosa Luxemburg, O que quer a Liga Spartakus, Textos Escolhidos, volume II, p.289-293)



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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein.


Die Befreiung der Arbeiterklasse muß das Werk der Arbeiterklasse selbst sein.




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O sobrinho de Enesidemo


100ª edição







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