Rosa Luxemburg
In principio erat Verbum
“Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só a uma grande massa de produtos fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já criadas. (...) A sociedade vê-se subitamente reconduzida a um estado de barbárie momentânea.” (Manifesto Comunista, p. 45)
Die Befreiung der Arbeiterklasse muß das Werk der Arbeiterklasse selbst sein.
“Escrito
está: ‘Era no início o Verbo!’
Começo
apenas, e já me exacerbo!
Como hei de
ao verbo dar tão alto apreço?
De outra
interpretação careço;
Se o
espírito me deixa esclarecido,
Escrito
está: No início era o Sentido!
Pesa a linha
inicial com calma plena,
Não se
apresse a tua pena!
É o sentido
então, que tudo opera e cria?
Deverá opor!
No início era a Energia!
Mas, já,
enquanto assim o retifico,
Diz-me algo
que tampouco nisso fico.
Do espírito
me vale a direção,
E escrevo em
paz: Era no princípio a Ação!”
(Goethe, Fausto)
“Exercendo o poder, a massa deve aprender
a exercer o poder. Não há nenhum outro meio de lhe ensinar isso. Felizmente,
foi-se o tempo em que se tratava de ensinar o socialismo ao proletariado. (...)
Não, a escola socialista dos operários não precisa de nada disso. Eles são
educados quando passam à ação. No princípio era a ação, é aqui a divisa (...)”
(Rosa Luxemburg, Congresso de
Fundação do Partido Comunista Alemão)
In principio erat Verbum
É
preciso provisoriamente reestabelecer os direitos de João Evangelista contra as
incursões de Fausto. Comecemos então pelas palavras de Rosa:
“O
socialismo é nesta hora a única tábua de salvação da humanidade. Sobre as
muralhas da sociedade capitalista que desmoronam, brilha, em letras de fogo, a
advertência do Manifesto Comunista: Socialismo ou queda na
barbárie!” (O que quer a Liga Spartakus?)
A
prosa tem vigor, mas o imaginário é compósito e disparatado. Há um naufrágio,
muralhas que caem, inscrições fulgurantes. Onde estamos? Na Balsa do Medusa? No
capítulo 6 de Josué ou no capítulo 5 de Daniel? E que advertência é essa que
não se encontra em nenhuma parte do Manifesto Comunista?
É
evidente quão longe estamos da niaiserie alemã de Kautsky, o
mestre-escola, e da secura militar de Vladimir Ilitch, o general. Mas teríamos
voltado à boa fonte? Teríamos voltado àquela energia de espírito livre que
atravessa o Manifesto? Não exatamente. O Manifesto Comunista era
a proclamação do mundo novo (o da burguesia) e o anúncio do mundo por vir (o da
extinção da luta de classes). Setenta anos depois, falando entre escombros e
esperanças em vias de dissiparem-se, Rosa compôs uma divisa a partir de retalhos
do Manifesto:
" Socialismo ou queda na barbárie!”
"
Estranhamente, não
é o comunismo, mas o socialismo que Rosa opõe à “barbárie”, palavra que
recebe um peso e uma tensão ausentes no Manifesto, no qual bárbaros são os povos e as nações que ainda não foram arrastadas pelo vórtice da civilização burguesa:
"Com
o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e o constante progresso
dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização
todas as nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos
são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga à
capitulação os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de
ruína total, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção,
constrangendo-as a abraçar a chamada civilização, isto é, a se tornarem
burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.
A
burguesia submeteu o campo à cidade. Criou os grandes centros urbanos, aumentou
prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e, com isso,
arrancou uma grande parte da população da idiotia da vida rural. Do mesmo modo
que subordinou o campo à cidade, os países bárbaros ou semibárbaros aos países
civilizados, subordina os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao
Ocidente.” (Manifesto
Comunista, p. 44)
Para Marx e Engels em 1847, a barbárie estava em tudo o que se opunha à espiral ascendente do Ocidente, até mesmo as crises que sacudiam de tempos em tempos o modo de produção “burguês”:
Para Marx e Engels em 1847, a barbárie estava em tudo o que se opunha à espiral ascendente do Ocidente, até mesmo as crises que sacudiam de tempos em tempos o modo de produção “burguês”:
“Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só a uma grande massa de produtos fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já criadas. (...) A sociedade vê-se subitamente reconduzida a um estado de barbárie momentânea.” (Manifesto Comunista, p. 45)
Todavia,
depois da carnificina de 14-18, tornou-se difícil, tanto à direita
quanto à esquerda, acreditar que a sociedade burguesa europeia era ainda a
portadora da civilização e das luzes contra a barbárie. Face às razias imperialistas, à derrocada da social-democracia alemã e aos milhões de vítimas da guerra, a afirmação do Manifesto segundo a qual a luta de classes sempre termina ou com a transformação revolucionária da
sociedade ou com a destruição das classes beligerantes passou a ter um sentido novo e crucial para Rosa Luxemburg. A instauração de uma sociedade socialista, por meio da luta tenaz de auto-emancipação do proletariado, seria o único caminho para escapar das formas agressivas e brutais que o capitalismo assumira na sua fase imperialista. " Socialismo ou queda na barbárie!” Era da salvação da
humanidade que Rosa Luxemburgo falava. A sombria nuvem suspensa sobre a espécie humana só
poderia ser afastada pela forma mais radical de democracia.
Nada disso, é claro, estava nem poderia estar no Manifesto Comunista, texto luminoso e fundador. Foi Rosa quem viu o pesadelo e entreviu a sua saída. Na falta de uma elaboração teórica que a militância constante não lhe permitiu, Rosa Luxemburg apelou para as velhas formas imagéticas dos apocalipses da tradição judaico-cristã, em sua insistência no colapso das estruturas existentes.
Nada disso, é claro, estava nem poderia estar no Manifesto Comunista, texto luminoso e fundador. Foi Rosa quem viu o pesadelo e entreviu a sua saída. Na falta de uma elaboração teórica que a militância constante não lhe permitiu, Rosa Luxemburg apelou para as velhas formas imagéticas dos apocalipses da tradição judaico-cristã, em sua insistência no colapso das estruturas existentes.
Foi
essa mulher, judia, polonesa e marxista, que seria brutalmente assassinada
pelas milícias ultradireitistas sob o olhar conivente das lideranças
social-democratas, e que, já morta, teria sua obra renegada pelos burocratas bolcheviques e seu nome espezinhado pelos
esbirros de Stálin, foi essa mulher quem primeiro viu a face do inimigo.
******
Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, Companhia das Letras, São Paulo, 1987 | Gilbert Badia, Le Spartakisme et sa problématique, Annales. Histoire, Sciences Sociales, 21e Année, No. 3 (May - Jun., 1966), pp. 654-667 | Riccardo Bellofiore, Rosa Luxemburg and the Critique of Political Economy, Routledge, Abindgon, New York, 2009 | George Castellan, A propos de Rosa Luxemburg, Revue d'histoire moderne et contemporaine (1954) T.23e, No. 4 (Oct. - Dec,. 1976), pp. 573-582 | Charles F. Elliott, Lenin, Rosa Luxemburg and the dilemma of non-revolutionary proletariat, Midwest Journal of Political Science, vol. IX number 4 november 1965 | Paul Frölich, Rosa Luxemburgo: vida y obra, Editorial Fundamentos, Madrid, 1976 | Norman Geras, A Actualidade de Rosa Luxemburgo, Antídoto, Lisboa, 1978 | J. W. von Goethe, Fausto, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1987 | Daniel Guérin, Rosa Luxemburgo e a espontaneidade revolucionária, Editora Perspectiva, São Paulo, 1982 | Eric J. Hobsbawn (org), História do Marxismo, O Marxismo na época da Segunda Internacional (3 volumes), Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1982, 1984 | Hajo Holborn, A History of Modern Germany 1840-1945, Princeton University Press, Princeton, 1982 | M.C. Howard and J. E. King, A History of Marxian Economics, volume 1 1883-1929, Princeton University Press, New Jersey, 1989 | Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism (3 vol.), Clarendon Press, Oxford, 1978 | Gérard Bensussan, George Labica, Dictionnaire Critique du Marxisme, Quadrige/PUF, Paris, 1999 | Isabel Maria Loureiro, Rosa Luxemburg: os dilemas da ação revolucionária, Editora Unesp, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2004 | Georg Lukács, Histoire et Conscience de Classe, Les Éditions de Minuit, Paris, Paris, 1976 | Ralph Haswell Lutz, The German Revolution 1918-1919, Cambridge University Press, 1967 | Rosa Luxemburgo, Textos Escolhidos, 3 volumes, Isabel Loureiro (org.), Editora Unesp, São Paulo, 2011 | Rosa Luxemburg, A Acumulação do Capital e Anticrítica, 2 volumes, coleção "Os Economistas", Nova Cultural, São Paulo, 1988 | Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, Boitempo, São Paulo, 1998 | J. P. Nettl, Rosa Luxemburgo, Ediciones Era, México, 1974; Rosa Luxemburg, Il Saggiatore, Milano, 1978 | Carl E. Schorske, German Social Democracy 1905-1917, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 2014 | H. Schurer, The Russian Revolution of 1905 and the Origins of German Communism, The Slavonic and East European Review, Vol. 39. N. 93 (Jun. 1961) pp. 459-471
Ein Marxist hat
nicht das Recht, Pessimist zu sein.
Nenhum comentário:
Postar um comentário