Uma
leitura do Manifesto do Partido Comunista
Rosa Luxemburg
A crise da social-democracia
ou
Brochura de Junius (1916)
ou
Brochura de Junius (1916)
Excertos
[1. É preciso investigar as causas objetivas e subjetivas do apoio da bancada do SPD à concessão dos créditos de guerra em 4 de agosto de 1914. O imperialismo e a barbárie triunfaram. É preciso extrair as lições desses acontecimentos para preparar o caminho para que o proletariado volte a ser protagonista de seu próprio destino]
No dia 26
de julho de 1914, uma semana antes de irromper a guerra, os jornais do partido
alemão escreviam:
"Não somos
marionetes, combateremos com toda a energia um sistema que faz dos homens
instrumentos passivos da situação reinante, desse capitalismo que procura
transformar a Europa sedenta de paz num matadouro fumegante. Se a destruição
seguir seu curso, se o firme desejo de paz do proletariado alemão e
internacional, que será evidente nas manifestações poderosas dos próximos dias,
não for capaz de impedir a guerra mundial, então esta deve, pelo menos, ser a
última guerra, deve ser o crepúsculo dos deuses do capitalismo".
(...)
E então
aconteceu o inesperado, o inaudito, o 4 de agosto de 1914.
Precisava
ter sido assim? Um acontecimento dessa importância não é certamente uma
brincadeira do acaso. Ele deve ter profundas e consideráveis causas objetivas.
Mas essas causas também podem residir nos equívocos da liderança do
proletariado, na social-democracia, na falência de nossa vontade de lutar, de
nossa coragem, da lealdade às nossas convicções. O socialismo científico nos
ensinou a compreender as leis objetivas do desenvolvimento histórico. Os homens
não fazem a arbitrariamente a história, mas, apesar disso, fazem-na eles
mesmos. A ação do proletariado depende do grau de maturidade do desenvolvimento
social, mas o desenvolvimento social não é independente do proletariado. Este
é, em igual medida, sua força motriz e sua causa, assim como seu produto e sua
consequência. Sua própria ação faz parte da história, contribuindo para
determiná-la. E embora não possamos saltar por cima do desenvolvimento
histórico, assim como um homem não pode saltar por cima da própria sombra,
podemos, no entanto, acelerá-lo ou retardá-lo.
O
socialismo é o primeiro movimento popular na história do mundo que se pôs como
fim, e que é encarregado por ela de introduzir, no fazer social dos homens, um
sentido consciente, um pensamento planejado e, consequentemente, uma vontade
livre. É por isso que Friedrich Engels chama a vitória definitiva do
proletariado socialista de salto da humanidade do reino animal ao reino da
liberdade. Esse ‘salto’ também está ligado às leis de bronze da história, aos
mil elos do desenvolvimento anterior, doloroso e demasiado lento. Mas ele nunca
poderia ser realizado se, do conjunto dos pré-requisitos materiais acumulados
pelo desenvolvimento, não brotasse a centelha da vontade consciente da grande
massa popular. A vitória do socialismo não cairá do céu como uma fatalidade.
Ela só poderá resultar de uma longa série de enfrentamentos violentos entre os
velhos e os novos poderes, enfrentamentos em que o proletariado internacional,
sob a liderança da social-democracia, aprende e procura pôr seu destino nas
próprias mãos, apoderando-se do comando da vida social. Ele que era o joguete
passivo da própria história, procura tornar-se seu piloto lúcido.
Friedrich
Engels disse uma vez: a sociedade burguesa encontra-se perante um dilema – ou
passagem ao socialismo ou regressão à barbárie. O que significa ‘regressão à
barbárie’ no nível atual da civilização europeia? Até hoje todos nós lemos e
repetimos essas palavras sem pensar, sem ter ideia de sua terrível gravidade.
Se olharmos à nossa volta neste momento, veremos o que significa a regressão da
sociedade burguesa à barbárie. Esta guerra mundial é uma regressão à barbárie.
O triunfo do imperialismo leva ao aniquilamento da civilização –
ocasionalmente, enquanto durar uma guerra moderna, e definitivamente, se o
período das guerras mundiais que está começando continuar sem obstáculos até
suas últimas consequências. (...) O futuro da civilização e da humanidade
depende de o proletariado jogar sua espada revolucionária na balança, com viril
determinação. Nesta guerra, o imperialismo venceu. Sua espada ensanguentada
pelo genocídio fez pender brutalmente o prato da balança para o abismo da
desolação e da ignomínia. Toda a desolação e toda a ignomínia só podem ser
contrabalançadas se aprendermos com a guerra, e na guerra, de que modo o proletariado
desiste do papel de servo nas mãos das classes dominantes e recupera o papel de
senhor do próprio destino.
[2. A posição do SPD no 4 de agosto cavou um fosso entre os interesses da nação e os interesses do proletariado, o que contraria toda a teoria e a prática do partido]
"Agora
estamos perante a dura realidade da guerra. Ameaçam-nos os horrores de uma
invasão inimiga. Hoje não temos que decidir a favor ou contra a guerra, mas
sobre a questão dos meios necessários para a defesa do país (...). Muito, senão
tudo, está em jogo para nosso povo e seu futuro livre, caso o despotismo russo,
manchado do sangue dos melhores do seu próprio povo, seja vitorioso. Trata-se
de afastar esse perigo, de garantir a civilização e a independência de nosso
próprio país na hora do perigo. Nisto sentimo-nos de acordo com a
Internacional, que sempre reconheceu o direito de todos os povos à
independência nacional e à autodefesa, assim como, de acordo com ela,
condenamos toda a guerra de conquista (...). Guiados por esses princípios,
aprovamos os créditos de guerra pedidos".
Com essa
declaração, a bancada parlamentar, em 4 de agosto, dava a palavra de ordem que
deveria determinar e comandar a atitude do operariado alemão durante a guerra.
Pátria em perigo, defesa nacional, guerra popular pela existência, civilização
e liberdade – estes eram os slogans proclamados pela representação parlamentar
da social-democracia. Tudo o mais viria daí como simples consequência: a
atitude da imprensa partidária e sindical, o delírio patriótico das massas, a
união sagrada, a súbita desintegração da Internacional – tudo era apenas a
inevitável consequência da primeira orientação adotada pelo Reichstag. (...)
Mas se a
palavra de ordem emitida pela bancada parlamentar alemã em 4 de agosto fosse
correta, então teria sido proferida a sentença contra a Internacional operária,
não somente nesta guerra, mas em geral. Pela primeira vez desde que existe o
movimento operário moderno, abre-se um fosso entre os mandamentos da
solidariedade internacional dos proletários e os interesses da liberdade e da
existência nacional dos povos, e pela primeira vez descobrimos que a
independência e a liberdade das nações exigem imperiosamente que os proletários
de diferentes línguas se massacrem e exterminem uns aos outros. Até agora
vivíamos na convicção de que os interesses das nações e os interesses da classe
do proletariado se uniam harmoniosamente, que eram idênticos, que era
impossível que entrassem em oposição. Esta era a base de nossa teoria e de
nossa prática, a alma de nossa agitação junto das massas populares. Será que
cometemos um erro monstruoso no tocante a esse ponto fundamental de nossa visão
de mundo? Encontramo-nos perante a questão vital do socialismo internacional.
[3. As razões pelas quais a Alemanha se encaminhava para a guerra: a formação do Estado alemão na era Bismarck e o advento do imperialismo]
Duas
linhas de desenvolvimento na história recente conduzem diretamente à guerra
atual. Uma começa no período de constituição dos chamados Estados nacionais,
isto é, dos Estados capitalistas modernos, na guerra de Bismarck contra a
França. A guerra de 1870, que pela anexação da Alsácia-Lorena jogou a República
francesa nos braços da Rússia, iniciou a divisão da Europa em dois campos
inimigos e a era da louca corrida armamentista, trazendo o primeiro elemento
inflamável à atual conflagração atual. (...)
A segunda
linha que desemboca na atual guerra mundial [...] resulta de acontecimentos de
natureza internacional [...]: o desenvolvimento imperialista dos últimos 25
anos.
O
desenvolvimento capitalista, que ocorreu na Europa reconstituída após o período
da guerra dos anos 1860 e 1870, especialmente depois de superada a grande
depressão que se seguiu ao entusiasmo da fundação e ao crash de 1873, atingira
um ápice sem precedentes na prosperidade dos anos 1890, inaugurando, como se
sabe, um novo período de tempestade e ímpeto entre os Estados europeus: estes
entrarem em competição ao expandir-se para os países e as zonas
não-capitalistas do mundo.(...)
Todos
esses acontecimentos, que se sucederam sem interrupção, criaram, por todo lado,
novos antagonismos fora da Europa: entre a Itália e a França na África do
Norte, entre a França e a Inglaterra no Egito, entre a Inglaterra e a Rússia na
Ásia Central, entre o Japão e a Inglaterra na China, entre os Estados Unidos e
o Japão no Oceano Pacífico – um mar agitado, ondulando para lá e para cá, cheio
de antagonismos virulentos e de alianças passageiras, de tensões e distensões,
ameaçando de tempos em tempos a deflagração de uma guerra parcial entre as
potências europeias, mas que sempre voltava a ser adiada. A partir daí era
claro para todo mundo: 1º) Que a guerra secreta, silenciosamente preparada, de
todos os países capitalistas uns contra os outros, às costas dos povos
asiáticos e africanos, devia levar, mais cedo ou mais tarde, a um ajuste de
contas geral; que o vento semeado na África e na Ásia devia um dia retornar à
Europa como terrível tempestade, tanto mais que os acontecimentos asiáticos e
africanos eram o sedimento permanente da crescente corrida armamentista na
Europa; 2º) Que a guerra mundial europeia irromperia assim que os antagonismos
parciais e variáveis entre os Estados imperialistas encontrassem um eixo
central, um antagonismo preponderante e forte, em torno do qual pudessem
temporariamente se agrupar. Essa situação foi criada com o aparecimento do imperialismo
alemão.
É na
Alemanha que o advento do imperialismo, comprimido num curtíssimo espaço de
tempo, pode ser observado na sua forma mais pura. A expansão sem igual da
grande indústria e do comércio, desde a fundação do império, produziu aqui, nos
anos 1880, duas formas particularmente características da acumulação do
capital: o mais forte desenvolvimento dos cartéis na Europa e o maior e mais
concentrado sistema bancário do mundo. Aquele organizou a indústria pesada como
o elemento mais influente no Estado, ou seja, organizou precisamente o setor do
capital diretamente interessado nos fornecimentos ao Estado, nos armamentos
militares, assim como nos empreendimentos imperialistas (construção de
ferrovias, exploração de minas etc.). Este fez do capital financeiro uma força
unida, dotada de uma energia cada vez maior e mais concentrada, uma força que
autoritariamente põe e dispõe da indústria, do comércio e do crédito, também
determinante na economia privada e na economia pública, capaz de expandir-se com
agilidade e sem limites, sempre faminta de lucros e de atividade, impessoal e,
com isso, de vistas largas, audaciosa e sem escrúpulos, internacional por
natureza, talhada por todas as suas aptidões para fazer da cena mundial o palco
de suas façanhas. (...)
Em 11 de
dezembro de 1899, dizia von Bülow, na época secretário de Estado do Ministério
do Exterior, ao justificar o segundo projeto de lei sobre a frota naval:
"Se os
ingleses falam de uma Greater Britain, se os franceses falam de uma Nouvelle
France, se os russos colonizam a Ásia, nós também reivindicamos uma Alemanha
maior [...]. Se não constituirmos uma frota capaz de [...] defender nosso
comércio e nossos compatriotas no estrangeiro, nossas missões e a segurança de
nosso litoral, poremos em perigo os interesses mais vitais do país [...]. No
próximo século o povo alemão será martelo ou bigorna".
Retirem-se
os floreios retóricos a respeito da segurança do litoral, das missões e do
comércio, resta esse programa lapidar: uma Alemanha maior, a política do
martelo sobre outros povos. (...)
O
desenvolvimento do poder marítimo e a ostentação da bandeira da política
mundial pelo lado alemão anunciavam, assim, novas e consideráveis incursões de
seu imperialismo pelo mundo. Com uma frota agressiva de primeira classe e com a
ampliação do exército, feita paralelamente à construção da frota, foi criado um
aparato para a política futura, cuja direção e cujos fins abriam as portas a
inúmeras possibilidades. A construção da frota e o armamento militar transformaram-se
num excelente negócio da grande indústria alemã e, ao mesmo tempo, abriram
perspectivas ilimitadas ao capital dos cartéis e dos bancos com vontade de
difundir suas operações pelo mundo inteiro. Assim, ficou garantida a conversão
de todos os partidos burgueses à bandeira do imperialismo.
[4. A guerra de 14 não foi um imprevisto. Ela estava no horizonte há muitos anos e sua aproximação era insistentemente anunciada pelo SPD]
Causas e
conflitos para a guerra, tudo estava maduro havia tempo; a constelação que hoje
vivenciamos estava pronta havia uma década. A cada ano e a cada acontecimento
político dos últimos tempos ela se aproximava um passo: a revolução turca, a
anexação da Bósnia, a crise do Marrocos, a expedição de Trípoli, as duas
guerras balcânicas. Todos os projetos de leis dos últimos anos foram
apresentados levando diretamente em consideração a guerra como uma preparação consciente
para o inevitável ajuste de contas geral. Cinco vezes no decorrer dos últimos
anos a guerra não rebentou por um fio: no verão de 1905, quando pela primeira
vez a Alemanha anunciou peremptoriamente suas pretensões no caso do Marrocos;
no verão de 1908, quando a Inglaterra, a Rússia e a França, depois do encontro
dos monarcas em Reval por causa da questão macedônia, quiseram enviar um
ultimato à Turquia e a Alemanha, a fim de defendê-la, se dispunha a entrar em
guerra, o que só foi evitado pela eclosão da revolução turca; no começo de
1909, quando a Rússia se mobilizou em resposta à anexação da Bósnia pela
Áustria, ao que a Alemanha declarou formalmente em São Petersburgo que estava
pronta a entrar em guerra ao lado da Áustria; no verão de 1911, quando o
Panther foi enviado a Agadir, o que teria certamente deflagrado a guerra se a
Alemanha não tivesse renunciado a parte do Marrocos e se contentado com o
Congo; e por fim, no começo de 1913, quando a Alemanha, vendo que a Rússia
tinha a intenção de invadir a Armênia, esclareceu formalmente pela segunda vez
em São Petersburgo que estava pronta para entrar em guerra.
Portanto,
há oito anos que a presente guerra mundial está no ar. Se ela foi continuamente
adiada, isso aconteceu unicamente porque, todas as vezes, um dos lados
concernidos ainda não havia concluído seus preparativos militares.
(...)
Quando os
batalhões alemães invadiram a Bélgica, quando o Reichstag alemão foi colocado
perante o fato consumado da guerra e do estado de sítio, isso não era um raio
em céu azul, uma situação nova, inesperada, um acontecimento que nesse contexto
político pudesse ser uma surpresa para a bancada social-democrata. A guerra
mundial, que começou oficialmente em 4 de agosto, era a mesma para a qual a
política imperialista alemã e internacional trabalhava incansavelmente havia
décadas, a mesma cuja aproximação a social-democracia alemã, havia dez anos,
também incansavelmente, profetizara quase ano a ano, a mesma que os
parlamentares, os jornais e as brochuras social-democratas estigmatizaram mil
vezes como um frívolo crime imperialista, que nada tinha a ver com a
civilização nem com o interesse social, sendo, pelo contrário, o oposto direto
de ambos,
E de
fato. Nesta guerra não se trata da ‘existência e do desenvolvimento pacífico da
Alemanha’, como diz a declaração da bancada social-democrata, não se trata da
civilização alemã, como escreve a imprensa social-democrata, e sim dos lucros
atuais do Deutsche Bank na Turquia Asiática e dos lucros futuros dos Mannesmann
e Krupp no Marrocos; trata-se da existência e do caráter reacionário da
Áustria, esse ‘monte de podridão organizada que se chama monarquia
habsburguesa’, como escrevia o Vorwärts em 25 de junho de 1914 (...).
[5. Combater a autocracia czarista era um pretexto ilusório para o SPD apoiar a guerra. O governo imperial alemão, ao qual o SPD concedeu os créditos de guerra, era há muitos anos um dos principais esteios do czarismo.]
E o czarismo! Esse foi sem dúvida determinante para a atitude do
partido, sobretudo no primeiro momento da guerra. Em sua declaração, a bancada
social-democrata lançou a palavra de ordem: contra o czarismo! A imprensa
social-democrata, a partir daí, imediatamente travou uma luta em defesa de toda
‘a civilização’ europeia.
(...)
Depois que a bancada social-democrara atribuiu à guerra o caráter
de defesa da nação e da civilização alemãs, a imprensa social-democrata
atribuiu-lhe o caráter de libertadora das nações estrangeiras. Hindenburg
tornava-se o executor testamentário de Marx e Engels.
Nesta guerra, a memória pregou indiscutivelmente ao nosso partido
uma peça fatal: enquanto ele esquecia completamente todos os seus princípios,
promessas e resoluções adotadas nos Congressos internacionais, justo no momento
em que se tratava de aplicá-los, para seu azar lembrou-se de um ‘legado’ de
Marx, tirando-o da poeira do tempo dos tempos precisamente no momento em que só
podia servir para enfeitar o militarismo prussiano, que Marx queria combater
utilizando ‘homens e cavalos até o último suspiro’. Foram os toques de trombeta
gelados da Nova Gazeta Renana e da
revolução alemã de março [de 1848] contra a Rússia dos servos de Nicolau I que,
no ano da graça de 1914, penetraram subitamente nos ouvidos da
social-democracia alemã e lhe puseram nas mãos as ‘coronhas alemãs’, lado a
lado com os junkers prussianos, contra a Rússia da grande
Revolução [de 1905].
Mas justamente aqui se trata de fazer uma ‘revisão’ e de examinar
as palavras de ordem da revolução de março [de 1848] à luz da experiência
histórica de quase setenta anos.
Em 1848, o czarismo era de fato o ‘refúgio da reação europeia’.
Produto autóctone das condições sociais russas, em cuja base medieval, de
economia natural, estava profundamente enraizado, o absolutismo era o protetor
e, ao mesmo tempo, o guia todo-poderoso da reação monárquica, abalada pela
revolução burguesa e, sobretudo na Alemanha, pela fragmentação em pequenos
Estados. Ainda em 1851, Nicolau I podia dar a entender em Berlim, pelo cônsul
prussiano von Rochow, que ele ‘certamente gostou muito de ver, em novembro de
1848, a revolução ser reprimida pela raiz com a entrada do general von Wrangel
em Berlim’ e que ‘ainda havia outros momentos em que não se precisava dar uma
má Constituição’. Ou, noutra feita, numa advertência a Manteuffel: que ele
‘tinha certeza de que o ministério real, sob a liderança de Hochdero,
defenderia energicamente os direitos da coroa perante as Câmaras, e que faria
valer os princípios conservadores’. O mesmo Nicolau ainda podia igualmente
conceder a ordem de Alexander Nevski a um ministro-presidente prussiano em
reconhecimento por seus ‘esforços constantes [...] visando reforçar a ordem
legal na Prússia’.
A guerra da Crimeia trouxe a esse respeito uma grande modificação.
Ela provocou a bancarrota militar e, consequentemente, também a bancarrota
política do antigo sistema. O absolutismo russo viu-se obrigado a percorrer o
caminho das reformas, a modernizar-se, a adaptar-se às condições burguesas,
estendendo assim o dedo mindinho ao diabo, que agora o segura firmemente pelo
braço e que, por fim, agarrará tudo. Os resultados da guerra da Crimeia eram,
também, uma amostra instrutiva do dogma da libertação que as ‘coronhas’ podiam
levar a um povo subjugado. A bancarrota militar em Sedan deu à França a
República. Mas essa República não era um presente da soldadesca de Bismarck:
naquela época, como hoje, a Prússia não tinha nada a oferecer aos outros povos
a não ser o próprio regime de junkers. Na França, a República era o
fruto internamente amadurecido das lutas sociais desde 1789 e das três
revoluções. O crash de Sebastopol teve o mesmo efeito que o de Jena:
a falta de um movimento revolucionário dentro do país levou apenas à renovação
e à reconsolidação externas do antigo regime.
Mas as reformas dos anos 1860 na Rússia, que abriram caminho ao
desenvolvimento capitalista-burguês, só podiam ser realizadas com os meios
financeiros de uma economia capitalista-burguesa. E esses meio forma fornecidos
pelo capital europeu ocidental – da Alemanha e da França. A partir dessa época
criou-se a nova situação que permanece até hoje: o absolutismo russo é mantido
pela burguesia da Europa Ocidental. (...) Desde então, o czarismo deixou de ser
simplesmente um produto das condições russas: as condições capitalistas da
Europa Ocidental são sua segunda raiz. Sim, a partir dessa época, a situação
altera-se cada vez mais a cada década. Na mesma medida em que o desenvolvimento
do capitalismo russo corrói a raiz autóctone da autocracia russa, ele reforça
cada vez mais a outra, a da Europa ocidental. Ao apoio financeiro se junta, em
medida crescente, o apoio político, por causa da concorrência entre a França e
a Alemanha desde a guerra de 1870. Quanto mais forças revolucionárias se erguem
contra o absolutismo no seio do próprio povo russo, tanto mais elas esbarram na
resistência proveniente da Europa Ocidental, que concede reforço moral e
político pela retaguarda ao czarismo ameaçado. Quando, no início dos anos 1880,
o movimento terrorista do velho socialismo russo havia, por algum tempo,
abalado gravemente o regime czarista e destruído sua autoridade interna e
externa, foi justamente então que Bismarck concluiu com a Rússia seu tratado de
segurança, dando-lhe apoio na política internacional. Por sua vez, quanto mais
a Rússia era cortejada pela política alemã, tanto mais, naturalmente, lhe eram
abertos sem limites os cofres da burguesia francesa. Bebendo dessas duas fontes
de auxílio, o absolutismo prorrogava doravante sua existência lutando
internamente contra a maré enchente do movimento revolucionário.
O desenvolvimento capitalista, que o czarismo mimava com as
próprias mãos, deu finalmente frutos: a partir dos anos 1890, começou o
movimento de massas revolucionário do proletariado russo. Os alicerces do
czarismo puseram-se a estremecer e a vacilar no próprio país. O antigo ‘refúgio
da reação europeia’ vê-se obrigado a conceder em breve um ‘refúgio’ salvador
diante da maré crescente na própria pátria. E ele o encontra – na Alemanha. A
situação sofre uma inversão direta: a ajuda prestada pela Rússia contra a
Revolução Alemã [de 1848] é trocada pela ajuda prestada pela Alemanha contra a
Revolução Russa [de 1905]. (...)
Aqui saltava finalmente aos olhos como a toupeira do desenvolvimento
histórico solapa as coisas, as coloca de ponta-cabeça, enterrando a antiga frase
sobre o ‘refúgio’ da reação europeia’. (...) O destino da Revolução Russa [de
1905] viria a confirmá-lo.
A Revolução foi esmagada. Mas, se examinarmos mais profundamente
as causas de seu fracasso provisório, veremos que são instrutivas a respeito da
posição da social-democracia alemã na guerra atual. Duas causas podem explicar
a derrota da rebelião russa em 1905-1906, apesar de seu dispêndio de energia
revolucionária, clareza de objetivos e tenacidade extraordinários. A primeira
consiste no caráter interno da própria Revolução: em seu enorme programa
histórico, na massa de problemas econômicos e políticos que levantou, tal como
fizera um século antes a grande Revolução Francesa e dos quais alguns, como a
questão agrária, são absolutamente insolúveis no quadro da atual ordem social;
na dificuldade de criar uma forma de Estado moderna para a dominação de classe
da burguesia contra a resistência contrarrevolucionária do conjunto da
burguesia do império. Desse ponto de vista, a Revolução Russa fracassou
justamente por ser uma revolução com tarefas burguesas ou, se quisermos, uma
revolução burguesa com métodos de combater proletário-socialistas, uma colisão
entre duas épocas em meio a relâmpagos e trovões, um fruto, tanto do
desenvolvimento atrasado das relações de classe na Rússia, quanto de seu
superamadurecimento na Europa Ocidental. Assim, também a derrota de 1906 não é
a sua bancarrota, mas simplesmente a conclusão natural do primeiro capítulo, ao
qual, com a necessidade de uma lei natural, outros devem seguir-se. A segunda
causa era, mais uma vez, de natureza externa: ela residia na Europa Ocidental.
A reação europeia novamente corria em ajuda de seu protegido em apuros. Não
ainda com pólvora e chumbo, embora já em 1905, as ‘coronhas alemãs em punhos
alemães’ só estivessem à espera de um sinal se São Petersburgo para invadir a
vizinha Polônia. Mas ajudou-se o czarismo com instrumentos igualmente
eficientes, com subsídios financeiros e alianças políticas. Com dinheiro
francês ele conseguiu os cartuchos com que abateu os revolucionários russos, e
da Alemanha recebeu o reforço moral e político para subir das profundezas do
ultraje a que tinha sido empurrado pelos torpedos japoneses e os punhos dos
proletários russos. Em 1910, em Postdam, a Alemanha oficial recebeu o czarismo
russo de braços abertos. Mas que estranho! Naquela época, quando ela assistia
em sua própria casa a esse banquete fúnebre realizado sobre a hecatombe da Revolução
Russa, a social-democracia alemã ficou completamente calada, tendo esquecido
totalmente o ‘legado de nossos velhos mestres’ do ano de 1848. Enquanto no
começo da guerra, desde que a polícia permitisse, o menor jornal do partido se
embriagava com expressões sanguinárias contra o carrasco da liberdade russa, o
ano de 1910, quando o carrasco era festejado em Potsdam, não emitiu nenhum som,
nenhum protesto, não pronunciou nenhum veto contra o apoio à contrarrevolução
russa.
(...)
Na verdade, a libertação da civilização europeia devia ser apenas
um episódio. O imperialismo alemão abandonou rapidamente a máscara incômoda, a
frente voltou-se de maneira aberta contra a França, e, sobretudo, contra a
Inglaterra. Depressa, uma parte da imprensa do partido também acompanhou essa
guinada. Em vez do czar sanguinário, ela votou ao desprezo a pérfida Álbion e
seu espírito de merceeiro; em vez de libertar a civilização europeia do
absolutismo russo, passou a libertá-la do domínio marítimo da Inglaterra. (...)
Quando a retórica das primeiras semanas da guerra foi enxotada pelo prosaico
estilo lapidar do imperialismo, a única e fraca explicação para a atitude da
social-democracia alemã virou pó.
[6. Aceitando a união nacional, isto é, identificando os interesses da nação com os interesses da classe dominante, a social-democracia renegou a luta de classes durante a guerra. Mas assim ela renegava a base da sua própria existência política e tornava impossível a crítica e a resistência à guerra. ]
O outro aspecto da atitude da social-democracia era a aceitação
oficial da união sagrada, quer dizer, a suspensão da luta de classes enquanto
durasse a guerra. A declaração da bancada, lida no Reichstag em 4 de agosto de
1914, era precisamente o primeiro ato desse abandono da luta de classes: seu
teor já havia sido combinado com os deputados do governo imperial e dos
partidos burgueses; o ato solene de 4 de agosto era uma peça patriótica
preparada nos bastidores, visando ao povo e ao exterior, em que a
social-democracia, ao lados dos outros participantes, já representava o papel
por ela adotado.
(...)
Assim, a social-democracia declara que, com o 4 de agosto de 1914
e até a futura conclusão da paz, a luta de classes não existe. Com o primeiro
tiro de canhão Krupp na Bélgica, a Alemanha transformou-se no país da maravilhas
da solidariedade de classes e da harmonia social.
Mas, a rigor, como imaginar esse milagre? Sabe-se que a luta de
classes não é uma invenção, uma livre criação da social-democracia, para que
ela possa suprimi-la à vontade e espontaneamente por certo tempo. A luta de
classes proletária é mais antiga que a social-democracia; é um produto
elementar da sociedade de classes, que irrompe com o começo do capitalismo na
Europa. Não foi a social-democracia que primeiro conduziu o proletariado
moderno à luta de classes; pelo contrário, o proletariado criou a
social-democracia para que levasse consciência dos objetivos e concatenação aos
diferentes fragmentos locais e temporais da luta de classes. O que mudou com a
deflagração da guerra? Será que deixaram de existir a propriedade privada, a
exploração capitalista, a dominação de classe? Será que os proprietários, num
acesso de patriotismo, declararam: agora, em face da guerra, enquanto ela
durar, entreguemos os meios de produção, as terras, as fábricas, os instrumentos
para que entrem de posse da coletividade, renunciemos ao usufruto exclusivo dos
bens, acabemos com todos os privilégios políticos e sacrifiquemo-los ao altar
da pátria enquanto ela estiver em perigo? A hipótese é completamente absurda e
lembra as cartilhas infantis. E, no entanto, esse seria o único pressuposto
que, logicamente, teria podido levar a classe trabalhadora a declarar: a luta
de classes está suspensa. Mas, naturalmente, não foi o que aconteceu. Pelo
contrário, todas as relações de propriedade, a exploração, a dominação de
classe, e mesmo a privação de direitos em suas várias formas permaneceram
intactas na Alemanha prussiana. O troar de canhões na Bélgica e na Prússia
oriental não modificou absolutamente nada na estrutura econômica, social e
política da Alemanha.
A supressão da luta de classes foi, assim, uma medida totalmente unilateral. Enquanto permaneceu o 'inimigo interno' da classe trabalhadora - a exploração e a opressão capitalistas -, as lideranças da classe trabalhadora - a social-democracia e os sindicatos -, com generosidade patriótica, entregaram sem combate, durante a guerra, a classe trabalhadora a esse inimigo.
A supressão da luta de classes foi, assim, uma medida totalmente unilateral. Enquanto permaneceu o 'inimigo interno' da classe trabalhadora - a exploração e a opressão capitalistas -, as lideranças da classe trabalhadora - a social-democracia e os sindicatos -, com generosidade patriótica, entregaram sem combate, durante a guerra, a classe trabalhadora a esse inimigo.
(...)
Aceitando a união nacional, a social-democracia renegou a luta de
classes durante a guerra. Mas assim ela renegava a base da própria existência,
da própria política. Qual é o seu alento senão a luta de classes? Que papel
podia ela representar durante a guerra depois de ter abandonado seu princípio
vital, a luta de classes? Ao renegar a luta de classes durante a guerra, a
social-democracia despediu-se de si mesma como partido político ativo, como
representante da política dos trabalhadores. Mas assim também arrancou da mão
sua arma mais importante: a crítica da guerra do ponto de vista
particular da classe trabalhadora. Ela entregou a 'defesa da pátria' às classes
dominantes, contentando-se com pôr a classe trabalhadora sob seu comando
e cuidar para que houvesse tranquilidade durante o estado de sítio, ou seja,
contentou-se com representar o papel de policial da classe trabalhadora.
(...)
Nos círculos dirigentes da social-democracia conta-se muito com a
perspectiva de que depois da guerra, como recompensa por sua atitude
patriótica, será concedida à classe trabalhadora uma significativa ampliação
das liberdades democráticas e a igualdade de direitos burguesa. Mas nunca na
história as classes dominantes concederam direitos políticos às classes
dominadas como gorjeta por sua atitude para agradar-lhes.
(...)
Renunciando à luta de classes, nosso partido privou-se ao mesmo
tempo de ter uma influência eficaz sobre a duração da guerra e sobre o o
formato da conclusão da paz.
(...)
O que fez a social-democracia nesta guerra? Exatamente o oposto da
prescrição dos Congressos de Stuttgart e de Basileia: com a concessão dos
créditos e a manutenção da união nacional, ela atua por todos os meios para
impedir a crise econômica e politica e que a guerra sacuda as massas. Ela 'se
empenha com todas as forças' para salvar a sociedade capitalista da anarquia
que resulta da guerra, agindo assim para prolongá-la indefinidamente e aumentar
o número de suas vítimas. (...) Somente por causa da atitude 'patriótica' da
social-democracia, graças à união nacional na retaguarda, é que a guerra
imperialista pôde, sem temor, desencadear sua fúria. Até então, o medo da
agitação interna, da cólera do povo necessitado era o pesadelo constante das
classes dominantes e, por isso, o freio mais eficaz aos seus desejos bélicos.
[7. Contra uma falsa concepção de autodeterminação e contra a fraseologia da 'defesa nacional'. A social-democracia tinha o dever de desmascará-las, mesmo sob o risco de perseguição.]
[7. Contra uma falsa concepção de autodeterminação e contra a fraseologia da 'defesa nacional'. A social-democracia tinha o dever de desmascará-las, mesmo sob o risco de perseguição.]
Segundo a teoria policial do patriotismo burguês e do estado de
sítio, toda luta de classes é um crime contra os interesses da defesa do país,
porque pode ameaçar e enfraquecer a força defensiva da nação. A social-democracia
oficial deixou-se impressionar com essa gritaria. (...) Os séculos atestam que
não é o estado de sítio, mas que a luta de classes brutal, despertando a
autoconsciência, a coragem para o sacrifício e a força moral das massas
populares, é a melhor proteção e a melhor defesa do país contra inimigos
externos.
A social-democracia incorreu no mesmo quiproquó trágico quando, para justificar
sua atitude nesta guerra, recorreu ao direito à autodeterminação das nações. É
verdade, o socialismo reconhece o direito à independência e à liberdade, a
dispor livremente de seu próprio destino. Mas é um verdadeiro escárnio em
relação ao socialismo designar os Estados capitalistas como expressão do
direito à autodeterminação das nações. Em qual desses Estados, até agora, a
nação determinou as formas e condições de sua existência nacional, política ou
social? (...) Somente um político burguês, para quem as raças dos
senhores representam a humanidade e as classes dominantes representam a nação,
pode falar de 'autodeterminação nacional' em relação aos Estados coloniais. No
sentido socialista desse conceito não existe nenhuma nação livre se sua
existência estatal repousar sobre a escravização de outros povos, pois os povos
coloniais também contam como povos e membros do Estado. O socialismo
internacional reconhece às nações o direito de serem livres, independentes, com
direitos iguais, mas somente ele pode criar essas nações, apenas ele pode
realizar o direito à autodeterminação dos povos. Essa palavra de ordem do
socialismo, assim como todas as outras, não é uma santificação do existente,
mas uma indicação e um estímulo para a política revolucionária, transformadora
e ativa do proletariado. Enquanto existirem Estados capitalistas, sobretudo
enquanto a política mundial imperialista determinar e configurar a vida interna
e externa dos Estados, o direito à autodeterminação nacional não terá
absolutamente nada em comum com essa prática, tanto na guerra quanto na paz.
(...)
Além disso, numa avaliação geral da guerra mundial e de seu
significado para a política de classe do proletariado, a questão da defesa ou
do ataque, a questão do 'culpado' não tem nenhuma importância. Se a Alemanha
está pouquíssimo interessada em autodefesa, o mesmo se passa com a França e a
Inglaterra, pois o que estas 'defendem' não é a sua posição nacional, mas sua
posição político-mundial, suas velhas possessões imperialistas ameaçadas pelos
ataques do novo-rico alemão.
(...)
A política imperialista não é obra de um, nem de alguns Estados,
ela é produto do desenvolvimento mundial do capital num determinado grau de
maturação; é primordialmente um fenômeno internacional, um todo indivisível,
que só é compreensível em todas as suas relações recíprocas e do qual nenhum
Estado isolado pode escapar.
É somente a partir daqui que se pode avaliar corretamente a questão da 'defesa
nacional' na presente guerra. O Estado nacional, a unidade e independência
nacionais eram o escudo ideológico sob o qual se constituíram os Estados
burgueses na Europa central no século passado. O capitalismo é incompatível com
o particularismo dos pequenos Estados, com a fragmentação econômica e política;
para desenvolver-se precisa de um território tão grande quanto possível,
interiormente unificado, e de uma cultura intelectual, sem os quais nem as
necessidades da sociedade podem elevar-se ao nível adequado à produção
capitalista de mercadorias, nem o mecanismo da moderna dominação de classe
burguesa pode funcionar. Antes que o capitalismo tivesse se transformado numa
economia mundial abrangendo toda a Terra, ele procurou criar um território
unificado nos limites nacionais de um Estado. Esse programa - que dado o
tabuleiro de xadrez político e nacional transmitido pela Idade Média feudal
somente podia ser executado pela via revolucionária - realizou-se apenas na
França, durante a grande Revolução. No resto da Europa, assim como a
revolução burguesa em geral, ele se tornou uma obra incompleta, ficou a
meio caminho. O império alemão e a Itália atual, a conservação da
Áustria-Hungria e da Turquia até hoje, o império russo e o império mundial
britânico são disso provas vivas. O programa nacional só representou um papel
histórico como expressão ideológica da burguesia ascendente aspirando ao poder
de Estado até que a dominação de classe burguesa mal ou bem se instalou nos
grandes Estados da Europa Central, criando neles os instrumentos e as condições
indispensáveis.
Desde então o imperialismo enterrou completamente o velho programa
democrático-burguês, erigindo em programa da burguesia de todos os países a
expansão além das fronteiras nacionais, sem qualquer consideração pelos
contextos nacionais. É certo que a fraseologia nacional permaneceu. Mas seu
conteúdo real e sua função transformaram-se em seu contrário: essa fraseologia
serve apenas como parco pretexto para as aspirações imperialistas e como grito
de guerra nas rivalidades imperialistas, como único e último meio ideológico
com o qual as massas populares podem ser capturadas para o seu papel de carne
de canhão nas guerras imperialistas.
(...)
Assim, o próprio conceito de uma guerra de defesa modesta,
virtuosa e patriótica, que hoje está na cabeça de nossos parlamentares e
jornalistas, é uma pura ficção que mostra falta de compreensão histórica do
todo e de suas conexões mundiais. Não são as declarações solenes e nem mesmo as
intenções sinceras dos assim chamados dirigentes políticos que decidem o
caráter da guerra, mas a natureza histórica da sociedade e sua organização
militar.
(...)
O papel da social-democracia como vanguarda do proletariado em
luta não é colocar-se sob o comando das classes dominantes para defender o
Estado de classes existente, nem ficar silenciosamente de lado à espera do fim
da tempestade, mas adotar uma política de classes independente que em cada
grande crise da sociedade burguesa fustigue para diante as classes dirigentes,
forçando a crise a ir além de si mesma.
(...)
Assim, o grave dilema entre os interesses da pátria e a
soliedariedade internacional do proletariado, o trágico conflito que levou
nossos parlamentares, embora 'de coração pesado', para o lado da guerra
imperialista, é pura imaginação, pura ficção nacionalista burguesa. Tanto na
guerra quanto na paz existe antes perfeita harmonia entre os interesses do país
e os interesses de classe da Internacional proletária: ambos exigem o mais
enérgico desenvolvimento da luta de classes e a mais enfática defesa do
programa social-democrata.
Mas o que deveria fazer nosso partido para dar ênfase à sua oposição à guerra e
a essas exigências? Deveria proclamar a greve de massas? Ou exortar os soldados
a recusarem-se a servir? (...) Movimentos de massa em grande momentos
históricos não podem ser dirigidos com tais meios primitivos. (...) A hora
histórica exige a cada momento formas correspondentes de movimento popular e
cria por si mesma novas e improvisados meios de luta, antes desconhecidos,
seleciona e enriquece o arsenal do povo, indiferente a todas as prescrições dos
partidos.
(...)
A prova de que não se trata da forma exterior, técnica de ação,
mas de seu conteúdo político é, por exemplo, o fato de que nesse caso podia
justamente a tribuna parlamentar - o único lugar audível de longe e viável
internacionalmente - ter-se tornado um instrumento poderoso para despertar o
povo, se tivesse sido utilizada pelos representantes social-democratas para
formular, de maneira clara e distinta, os interesses, as tarefas e as
exigências da classe trabalhadora nesta crise.
Teriam as massas, por sua atitude, dado importância a essas palavras de ordem
da social-democracia? Ninguém o pode dizer sob pressão. Mas isso também não é,
de forma alguma, decisivo. (...) No pior dos casos a voz do partido teria
ficado de início sem efeito visível. Sim, a atitude viril de nosso partido
teria provavelmente tido como recompensa as maiores perseguições, tal como
tinha acontecido com Bebel e Liebknecht em 1870. '[...] mas que isso
significa?', dizia
simplesmente Ignaz Auer em seu discurso sobre as festas de Sedan, em 1895. 'Um
partido que quer conquistar o mundo deve respeitar os seus princípios, sem
levar em consideração os perigos que isso implica; estaria perdido se agisse de
outra forma!'
(...)
Porém, a voz corajosa de nosso partido logo teria agido como
poderoso contravapor à embriaguez chauvinista e à inconsciência da multidão,
teria preservado do delírio os círculos populares mais esclarecidos, teria
dificultado o trabalho de intoxicação e de emburrecimento do povo pelos imperialistas.
(...) Em seguida, no decorrer da guerra, à medida que crescesse em todos os
países a ressaca da interminável e horrenda carnificina, à medida que as
complicações da guerra imperialista aparecessem cada vez mais claramente,
que o alarido mercantil dos especuladores sedentos de sangue se tornasse mais
atrevido, tudo que é vivo, honesto, humano, progressista se reuniria sob
a bandeira da social-democracia. (...) Dessa maneira, a atmosfera e a pressão
das massas populares a favor da paz teriam aumentado em todos os países, teriam
apressado o fim do massacre e diminuído o número de suas vítimas.
[8. A barbárie da guerra mundial de 14 é evidente: a brutalidade que o imperialismo reservava para as áreas não-capitalistas é praticado pela primeira vez em solo europeu, contra os monumentos da civilização e contra o proletariado, verdadeiro herdeiro e transmissor da civilização.]
A política proletária, do ponto de vista do progresso e da democracia,
caso ela devesse tomar partido por um dos lados nesta guerra, e considerando
globalmente a política mundial e suas perspectivas futuras, ficaria aprisionada
entre Cila e Caribdis; nestas circunstâncias, a questão da vitória ou da
derrota para a classe trabalhadora europeia representa, tanto no plano político
quanto no econômico, uma escolha desesperada entre duas surras.
(...)
Nada seria mais funesto para o próprio proletariado, a partir
dessa guerra mundial, de que alimentar qualquer ilusão, qualquer esperança na
possibilidade de um desenvolvimento pacífico e idílico do capitalismo.
Mas para a política proletária a conclusão que resulta da necessidade
histórica do imperialismo não é que deva capitular perante ele para doravante,
à sua sombra, alimentar-se das migalhas de sua vitória.
(...)
O ímpeto da expansão imperialista do capitalismo, como expressão
de sua maturidade máxima, de seu último período de vida, tem, no plano
econômico, a tendência de transformar o mundo inteiro num mundo de produção
capitalista, a varrer todas as formas de produção e de sociedade obsoletas,
pré-capitalistas, a transformar em capital todas as riquezas e todos os meios
de produção, e as massas trabalhadoras do povo de todas as zonas em escravos
assalariados. (...) Essa brutal marcha triunfal através do mundo, em que o
capital abre caminho acompanhado pelo uso da violência, do roubo e da infâmia,
teve um lado luminoso: criou as precondições para o seu desaparecimento
definitivos, produziu a domesticação mundial capitalista, à qual só pode
seguir-se a revolução socialista mundial. Esse foi o único aspecto civilizador
e progressista da assim chamada grande obra civilizadora dos países primitivos.
Para os economistas e políticos liberais, ferrovias, fósforos suecos, esgotos e
lojas significam 'progresso' e 'civilização'. Essas obras em si, enxertadas nas
condições primitivas, não significam civilização nem progresso, porque são
compradas ao preço da rápida ruína econômica e cultural dos povos, os quais
sofrem de uma só vez todas as calamidades e todos os horrores de duas épocas: a
das relações de dominação da economia natural tradicional e a da exploração
capitalista mais moderna e refinada. Somente como precondição material para
abolir a dominação do capital, para abolir a sociedade de classes em geral, é
que as obras da marcha triunfal do capitalismo pelo mundo carregavam a marca do
progresso num sentido histórico mais amplo.
A atual guerra mundial representa uma guinada nesse percurso. Pela primeira
vez, as bestas ferozes que a Europa capitalista soltava no resto do mundo
irromperam agora de uma só vez no coração da Europa. Um grito de horror
percorreu o mundo quando a Bélgica, essa pequena loja preciosa da cultura
europeia, quando os mais veneráveis monumentos culturais do norte da França
caíram em cacos sob o impacto ensurdecedor de uma força destrutiva cega. O
'mundo civilizado' havia assistido indiferente a esse mesmo imperialismo
consagrar-se à mais cruel aniquilação de dez mil Hereros, quando os gritos
enlouquecidos dos que morriam de sede e os estertores dos moribundos encheram o
deserto do Kalahari; quando em Putumayo, no espaço de dez anos, quarenta mil
homens foram torturados até a morte por um bando de capitães da indústria
europeus, e o resto do povo transformado em estropiados; quando na China, a
fogo e sangue, uma civilização antiquíssima foi abandonada a todos os horrores
da destruição e da anarquia pela soldadesca europeia; quando a Pérsia,
impotente, foi estrangulada no nó corredio, cada vez mais apertado, da tirania
estrangeira; quando em Trípoli os árabes foram submetidos a ferro e fogo ao
jugo do capital e de sua civilização, e suas casas foram arrasadas. (...)
Mas a fúria atual da bestialidade imperialista nos campos da Europa produz
outro efeito que o 'mundo civilizado' não vê com horror, de coração partido: é
o desaparecimento em massa do proletariado europeu. (...) Mais uma guerra
mundial como esta e as perspectivas do socialismo ficarão enterradas sob as
ruínas empilhadas pela barbárie imperialista. É muito mais que a infame
destruição de Liège ou da catedral de Reims. É um atentado, não à cultura
burguesa do passado, mas à cultura socialista do futuro, um golpe mortal contra
aquela força que traz em seu âmago o futuro da humanidade, a única que pode
salvar os preciosos tesouros do passado e transmiti-los a uma sociedade melhor.
Aqui o capitalismo mostra sua caveira, aqui ele revela que seu direito
histórico à existência acabou, que a continuidade de sua dominação não é mais
reconciliável com o progresso da humanidade.
(Rosa Luxemburgo, Textos Escolhidos, volume II, pp.
27-29; 30-32; 44-53; 78-81; 81,86-89, 90-91, 94-95; 95, 98-99,
102,106-107; 109, 112-115, 122, 126-130; 137, 139, 140-142, 143-144)
******
Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, Companhia das Letras, São Paulo, 1987 | Gilbert Badia, Le Spartakisme et sa problématique, Annales. Histoire, Sciences Sociales, 21e Année, No. 3 (May - Jun., 1966), pp. 654-667 | Riccardo Bellofiore, Rosa Luxemburg and the Critique of Political Economy, Routledge, Abindgon, New York, 2009 | George Castellan, A propos de Rosa Luxemburg, Revue d'histoire moderne et contemporaine (1954) T.23e, No. 4 (Oct. - Dec,. 1976), pp. 573-582 | Charles F. Elliott, Lenin, Rosa Luxemburg and the dilemma of non-revolutionary proletariat, Midwest Journal of Political Science, vol. IX number 4 november 1965 | Paul Frölich, Rosa Luxemburgo: vida y obra, Editorial Fundamentos, Madrid, 1976 | Norman Geras, A Actualidade de Rosa Luxemburgo, Antídoto, Lisboa, 1978 | J. W. von Goethe, Fausto, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1987 | Daniel Guérin, Rosa Luxemburgo e a espontaneidade revolucionária, Editora Perspectiva, São Paulo, 1982 | Eric J. Hobsbawn (org), História do Marxismo, O Marxismo na época da Segunda Internacional (3 volumes), Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1982, 1984 | Hajo Holborn, A History of Modern Germany 1840-1945, Princeton University Press, Princeton, 1982 | M.C. Howard and J. E. King, A History of Marxian Economics, volume 1 1883-1929, Princeton University Press, New Jersey, 1989 | Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism (3 vol.), Clarendon Press, Oxford, 1978 | Gérard Bensussan, George Labica, Dictionnaire Critique du Marxisme, Quadrige/PUF, Paris, 1999 | Isabel Maria Loureiro, Rosa Luxemburg: os dilemas da ação revolucionária, Editora Unesp, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2004 | Georg Lukács, Histoire et Conscience de Classe, Les Éditions de Minuit, Paris, Paris, 1976 | Ralph Haswell Lutz, The German Revolution 1918-1919, Cambridge University Press, 1967 | Rosa Luxemburgo, Textos Escolhidos, 3 volumes, Isabel Loureiro (org.), Editora Unesp, São Paulo, 2011 | Rosa Luxemburg, A Acumulação do Capital e Anticrítica, 2 volumes, coleção "Os Economistas", Nova Cultural, São Paulo, 1988 | Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, Boitempo, São Paulo, 1998 | J. P. Nettl, Rosa Luxemburgo, Ediciones Era, México, 1974; Rosa Luxemburg, Il Saggiatore, Milano, 1978 | Carl E. Schorske, German Social Democracy 1905-1917, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 2014 | H. Schurer, The Russian Revolution of 1905 and the Origins of German Communism, The Slavonic and East European Review, Vol. 39. N. 93 (Jun. 1961) pp. 459-471
Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein.
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