Resposta a duas questões
Pretendo
responder às duas questões que formulei no último capítulo:
(a) a
violenta polarização vivida desde 2014 pode ser comparada às guerras culturais
norte-americanas?
(b) a Nova
Direita é portadora de algum consenso semelhante ao velho fusionismo
norte-americano?
1.
Para
explicar as guerras culturais nos Estados Unidos, James Davison Hunter partiu
da premissa de que o pertencimento a grupos religiosos fazia parte da
identidade norte-americana até que a modernização cindiu esses grupos entre os
que aceitavam o progresso e os que lhe resistiam. Com isso, a distância entre
judeus, católicos, protestantes e ateus no campo liberal (no sentido
norte-americano de esquerda progressista) se tornou bem menor do que a
distância entre a liberais e conservadores no interior do judaísmo, do
catolicismo e do protestantismo.
Enquanto os conservadores apelam ao chão firme da religião e da moral contra o que lhes parece a leviandade com que os liberais aceitam as forças corruptoras do mundo, os liberais apontam as constantes mudanças históricas contra a ilusão de perenidade sustentada pelos conservadores. Para os conservadores, os liberais são cínicos e imorais; para os liberais, os conservadores são hipócritas e anacrônicos.
Como em toda
polêmica, existe aí um campo prévio de entendimento tácito. Conservadores e
liberais discutem a mesma questão: a de determinar, dentre as múltiplas
temporalidades em que estamos todos inseridos, qual é a fundamental para nossa
existência. Temos que escolher entre reverência ou desdém pelo passado, entre
memória ou esquecimento, entre agir agora ou esperar, entre restaurar o velho
ou projetar o novo. Temos que escolher entre o tempo cumulativo da experiência
e o tempo cíclico do cotidiano, entre o tempo curto das modas e o tempo longo
dos costumes, entre o tempo veloz da política e o tempo lento das sociedades,
entre o tempo efêmero das novidades e o tempo longuíssimo da cultura e da
história, entre o tempo na escala das gerações humanas e o tempo na escala da
evolução, da geologia ou da astronomia, entre viver para o instante ou viver
para a eternidade. A maneira como essas temporalidades são avaliadas e ganham
forma narrativa em nossa comunicação com os outros constituem o cerne de nossa
vida moral e cultural. Nossas escolhas políticas são versões grosseiras,
abreviadas e simplistas de certas filosofias da história e de certas
metafísicas do tempo às quais damos adesão quase sempre inconsciente.
2.
Nas guerras
culturais norte-americanas, os contendores lutam para definir a identidade e o
futuro da nação. Um debate de tal envergadura e intensidade pressupõe
convicções a respeito dos fundamentos da vida nacional que não têm equivalentes
na história do Brasil.
Os
intérpretes clássicos do Brasil divergiram quanto aos fatores formadores da
sociedade brasileira. Para a tradição marxista, representada por Caio Prado
Jr., a colonização do Brasil assumiu, desde o início, o caráter de uma grande
empresa comercial voltada para a exploração dos recursos naturais em proveito
do mercado europeu. Para a tradição liberal weberiana, representada por Sérgio
Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, a herança portuguesa teria deixado um
legado de displicência em relação às regras e de trato patrimonialista da coisa
pública. Para Gilberto Freyre, treinado na antropologia cultural
norte-americana, a relação entre senhores e escravos nos engenhos de açúcar do
Nordeste definiu as formas de sociabilidade no Brasil, tanto
no afeto e na dependência, quanto na violência e no arbítrio.
Os nossos
intérpretes tampouco chegaram a um acordo sobre a posição do Brasil no mundo
moderno. Para Caio Prado Jr., a colônia já estava inserida na modernidade
mercantilista antes mesmo de a Europa se libertar dos entraves feudais. Para
Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, a sociedade brasileira, marcada
pelas relações informais e pela obtenção de vantagens sem esforço, permaneceu
pré-moderna. Para Gilberto Freyre, a experiência singular de mestiçagem na
América lusitana não poderia ser reduzida às dinâmicas modernizadoras do mundo
europeu e anglo-americano: o Brasil estaria fadado a seguir um caminho próprio
e original.
Em que pesem
as enormes diferenças entre nossos intérpretes, nenhum deles identificou no
passado do Brasil uma matriz de ordem social legítima, mas apenas práticas de
exploração, aversão ao esforço físico e intelectual, apadrinhamento, violência,
arbitrio, promiscuidade e confusão entre a esfera pública e a vida privada. O
resultado é a miríade lamentável de malandros, puxa-sacos, apaniguados, tolos,
desleixados, oportunistas ingênuos ou sagazes, coitados, medalhões, cínicos,
hipócritas, truculentos, inescrupulosos triunfantes, fazendeiros do ar,
funcionários acovardados, casuístas e fracassados que povoam as obras dos
grandes escritores brasileiros. Sobre essa massa amorfa, de expectativas
cambiantes e destino incerto batem-se as ondas sucessivas de racionalização,
burocratização e normatização impessoal, deixando como resíduo um certo
discurso de feições modernas, que não causa cisões profundas - como ocorreram
nos Estados Unidos - porque esse discurso nunca chega a tomar corpo
nas práticas cotidianas, nem ameaça valores que, aliás, nunca vieram a ser
realmente compartilhados em escala nacional.
3.
Essa
modernidade superficial e de bom-tom é o pão servido diariamente pelos
editoriais da grande imprensa. É um discurso todo feito de incompossíveis: é
preciso austeridade e rigor fiscal, mas é importante não onerar as classes
médias consumidoras nem as elites geradoras de riqueza; é urgente conceder
benefícios aos excluídos, mas é preciso acabar primeiro com a baderna dos
que exigem direitos; é importante despertar a consciência política, mas é preciso
criticar o ativismo desenfreado; a hora é de urgência e o momento é grave, mas
é bom ser prudente e evitar precipitação; é necessário dar razão às
demandas da esquerda e da direita, tomando o cuidado de nunca
atendê-las. Esse discurso insosso é um véu diáfano que mal encobre
as verdadeiras relações da grande imprensa com o governo e com a sociedade. A
empresa da família Frias, que edita a Folha de São Paulo com o
sonho de fazer dela a versão brasílica do New York Times (a
conhecida máquina de ganhar prêmios Pulitzer), também editava até 2001 o Notícias
Populares, em que os mesmos jornalistas sérios da Folha se
divertiam em desafiar a credulidade dos taxistas e das costureiras, inventando
histórias estapafúrdias e divulgando fotos e fatos escabrosos da crônica policial
das periferias. Enfim, all the news that’s fit to print.
Enquanto isso, a família Civita, dona do grupo Abril, que publica a
revista Veja, implora por verbas do governo federal para
sustentar os articulistas que promovem campanhas contra o intervencionismo
estatal.
(Como se sabe, o imbroglio vem de longe. Quando Hayek visitou o Brasil em 1981, a sua palestra na Universidade de Brasília foi publicada pela Editora da UnB numa coleção subvencionada por verba federal no tempo em que o Brasil tinha uma das economias mais estatizadas do mundo. Mas, que importa? O dinheiro é uma grande rameira e o papel impresso aceita tudo, até neoliberalismo com subvenção do Estado).
Esse jogo de
morde-e-sopra, insuportável para os leitores mais críticos à direita ou à
esquerda, tem uma contrapartida nas alianças inimagináveis às quais a classe
política gostosamente se atira em nome da governabilidade, como foi, em meados
da década de 1990, a aliança do PSDB (ainda posando de social-democrata) com o
PFL (verdadeira retaguarda da vanguarda, ou vanguarda da retaguarda, dependendo
de que lado se olha o jumento), ou as alianças mirabolantes construídas por
Lula e Dilma, que terminaram por entregar a presidência a Michel
Temer e à tropa do trapo e da fatiota causídica que ora administra o
país (a legião de filisteus redivivos que serviu de ponto de partida desta série).
4.
Não existe,
portanto, uma clivagem equivalente às guerras culturais nos Estados
Unidos. A polarização recente foi um fenômeno superficial atiçado pelo
gritante insucesso da política econômica de Dilma Rousseff, que desnudou, para
quem ainda não tinha percebido, os limites e contradições da experiência
social-democrata: “Reindustrialização com oposição dos industriais,
assalariamento precário com acesso à universidade, ampliação do crédito
educacional com crescimento do ensino superior privado, walmartização do
trabalho com internacionalismo dos sindicatos, agroecologia com agronegócios,
autonomização dos mais pobres com passividade assistencialista, emancipação
cultural com empreendedorismo, esperança de inclusão com rebaixamento de
expectativas” (André Singer e Isabel Loureiro, As contradições
do Lulismo, Boitempo, p. 13)
É fato
inegável que o PT, cujos dirigentes estão, de um jeito ou de outro, lançados ao
opróbrio, foi derrotado, mas a tese de uma vitória da direita nas eleições
municipais de 2016 deve ser avaliada cum grano salis. A
eleição de João Dória Jr. em São Paulo e de Marcelo Crivella no Rio de Janeiro
não são sinais inequívocos de guinada direitista.
João Dória
Jr. é um empresário bem-sucedido, envolvido com a esfera governamental desde
1983, quando foi secretário municipal de Turismo de Mário Covas e, logo depois, diretor da Embratur na presidência de José Sarney. Nunca deu sinal de
qualquer preocupação ideológica. Alegou ser um homem distante da política
(embora carregasse como vice o neto de Mário Covas) e se declarou opositor
ferrenho do PT (como se espera do PSDB paulista). De resto, sua vitória parece
mais um episódio da alternância entre centro-direita e centro-esquerda na
prefeitura de São Paulo do que um fenômeno novo a exigir recursos divinatórios
da ciência política.
Quanto a
Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, dificilmente se
pode colocá-lo na conta de representante da Nova Direita. Ele foi candidato
pelo Partido Republicano Brasileiro – atualmente identificado como partido da
Igreja Universal - , mas que teve como um dos seus fundadores José Alencar,
então vice-presidente de Lula; além disso, o próprio Crivella teve apoio de
Lula para a disputa do governo do Estado do Rio de Janeiro em 2006, antes de
ser ministro da Pesca do governo Dilma Rousseff durante dois anos. Que
tipo de direita é essa? E por que seria nova? Havia um nome, hoje esquecido,
para essas transações políticas ao sabor das oportunidades. Os mais velhos se
referiam a isso como "fisiologismo", que é exatamente o oposto de uma
política que leva a sério opções ideológicas.
Houve, é
verdade, a eleição de figuras oriundas do Movimento Brasil Livre, agremiação
jovem bastante ativa durante as passeatas e mobilizações contra a corrupção e a
favor do impeachment de Dilma Rousseff. No entanto, o MBL saiu
chamuscado quando alguns de seus militantes menos inteligentes se deixaram
fotografar em gostoso conluio com Eduardo Cunha, o corruptíssimo presidente da
Câmara dos Deputados que logo seria lançado ao geena. A eleição de um
prefeito e de vários vereadores associados ao Movimento permitirá verificar o
quanto o discurso enérgico da militância de rua pode ser desmentido pelos
prazeres fáceis dos conchavos de gabinete e das ofertas irrecusáveis. Tomara
que os rapazes do MBL tenham mais sorte do que José Dirceu, que outrora foi
jovem, fazia discursos inflamados e era tão insciente quanto Kim Kataguiri.
Portanto, a
hipótese de que uma Nova Direita tenha surgido no campo político ainda carece
de provas e evidências. A vida política instituída parece o ninho de ratos de
sempre e nada indica que a sociedade brasileira tenha sido modificada por
alguma revelação epifânica. A pasmaceira e a geleia geral multissecular não
podem ser resolvidas pelas marchas da Família com Deus pela Liberdade, nem
pelas jornadas de junho de 2013 nem pelos patos amarelos da Fiesp.
5.
Que não seja
ainda possível identificar alguma novidade política vinda do campo da direita
não implica que não haja um movimento ativo de ideias e aspirações que se
alinham com o conservadorismo e com o liberalismo econômico. A partir das
minhas leituras e de muitas conversas com direitistas, acredito que o que
tem sido chamado “Nova Direita” parece vir em três modelos à escolha do
freguês:
Há uma
versão bonitinha e limpinha do conservadorismo, que fala mal da intervenção do
Estado na economia, mas aceita de bom grado a pauta social esquerdista: o
direito ao aborto, o feminismo, a sustentabilidade ecológica, a luta contra o
trabalho escravo, contra a homofobia, contra o racismo e admite até um certo
assistencialismo para as famílias mais pobres, desde que seja feito como na
época de Fernando Henrique Cardoso... Para a direita limpinha, a liberdade é um
bem fundamental, mas é possível sacrificar parte dela, desde que se preserve as
boas maneiras, o respeito à família e o acesso ao consumo de bens importados.
Esse é o “conservadorismo” politicamente correto dos eleitores do PSDB.
A segunda
versão é cafona e brega. Anseia por uma vasta restauração social com ênfase na
disciplina, na ordem, na dureza ascética, no esforço e na luta contra a
permissividade contracultural que amolece os jovens até a medula e destrói o
núcleo moral dos indivíduos. É isso que tem que ser recuperado acima de tudo,
nem que seja preciso votar em Jair Bolsonaro, o miles gloriosus, e
trazer de volta a bancada do alicate. Os direitistas cafonas parecem saídos de
um conto de Dalton Trevisan: usam roupas surradas, têm caspa na sobrancelha e
sentem que podem governar o mundo desde Curitiba. Por isso repetem para si
mesmo os dizeres do príncipe da Dinamarca: I could be bounded in a
nutshell and count myself a king of infinite space.
A terceira
versão é tão chic e grã-fina que tem até "vida
interior", exibida com o ar blasé e o ceticismo trágico
de quem espera morrer durante a queda da casa de Usher. Na vida real,
porém, a direita chic é bem prosaica: acredita no mérito, nos bons vinhos e nas frases de Nelson Rodrigues, salmodiadas pour épater les bourgeois nos jantares inteligentes em que esquerdistas ricos (amplamente favoráveis às
ciclovias) e conservadores limpinhos (que exigem iniciativa privada na
implantação de ciclovias) riem dos coitados que torram o dinheiro do
bolsa-família pagando as mensalidades do curso de filosofia do Olavo de
Carvalho. Forte indício de que a luta de classes não cessa só porque
alguns a consideram uma perigosa ideia comunista que perturba a harmonia que
sempre existiu em nosso país.
6.
Além do
respeito ao mérito individual e da aversão ao estatismo, não parece haver um
consenso teórico entre os publicistas da Nova Direita. Nem mesmo parece haver
alguma chance de acordo entre eles, agora que a causa que lhes servia de
fundamento comum se esgotou ou está perto disso: o governo do PT foi derrubado,
os folclóricos coxinhas estão comemorando os resultados eleitorais favoráveis e
a ameaça de uma vitória da esquerda nas eleições presidenciais de 2018 pode ser
prevenida pela adoção miraculosa do sistema parlamentarista, amparado pela mais
transparente legalidade. Mas isso nos leva de volta à tropa do trapo, à fatiota
dos causídicos, aos misangelistas in nomine domine e ao
inconfundível odor de filistinismo.
(continua)
(continua)
*****
Reinaldo
Azevedo, Contra o Consenso, Editora Barracuda, São Paulo,
2005 | Olavo de Carvalho, O mínimo que você precisa saber
para não ser um idiota, Record, Rio de Janeiro, 2013 | Rodrigo
Constantino, Esquerda Caviar, Record, Rio de Janeiro,
2014 | Bruno Garschagen, Pare de Acreditar no Governo,
Record, Rio de Janeiro, 2015 | James Davison Hunter, Culture
Wars: the struggle to define America, Basic Books, 1991 | Luiz
Felipe Pondé, Contra um mundo melhor, Leya, São Paulo,
2013 | André Singer e Isabel Loureiro (orgs.), As
contradições do lulismo, Boitempo, São Paulo, 2016
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