Nossos donos temporais ainda não devassaram
o claro estoque de manhãs
que cada um traz no sangue, no vento.
o claro estoque de manhãs
que cada um traz no sangue, no vento.
Carlos Drummond de Andrade, Contemplação no banco
Seis meses se passaram desde os
sucessos iniciais que me trouxeram aqui. A crise econômica não foi
debelada. Os governos estaduais não conseguem pagar os funcionários públicos. A
insatisfação cresce e não encontra nos partidos figuras que mereçam confiança e
respeito. Não há liderança, nem carisma, nem exemplo inspirador entre os
profissionais da vida política. Sobretudo, não há projetos, além das variações
já conhecidas do desenvolvimentismo e do neoliberalismo. A Operação Lava-Jato
prossegue sua atividade inquisitorial e ganha os contornos de um quarto poder
em vias de ser institucionalizado com a aprovação das 10 medidas contra a
corrupção propostas pelo Ministério Público. Todavia, a caçada aos que
prevaricaram começa a acumular danos colaterais: o enfraquecimento das
garantias legais de defesa, a erosão da credibilidade parlamentar, a suspeita
lançada sobre a atividade política, a exposição das fraquezas demasiado humanas
dos magistrados do Supremo Tribunal Federal, a incerteza quanto ao futuro das grandes
empreiteiras investigadas, que estão entre as empresas mais poderosas do
Brasil. Quando vai terminar a Operação Lava-Jato? Qual é a sua meta final?
Prender o ex-presidente Lula? Derrubar o presidente Temer? Varrer todos os
corruptos? Recuperar os bilhões de dólares que foram desviados ao longo dos
anos? Conquistar a Presidência da República para o PSDB em 2018? Alavancar a
carreira política do próprio juiz Sérgio Moro, o nosso Harvey Dent?
Os gritos de “Fora Temer” entoados
pela esquerda desde maio e ridicularizados pela direita como “mi mi mi” de maus
perdedores começam a despertar adesões de direitistas impacientes com a
ineficiência da equipe econômica que se anunciava miraculosa, com a demora na
aprovação dos pacotes de austeridade e com as recorrentes suspeitas de corrupção
que envolvem as ratazanas maiores da ninhada (ver nota 1). A possibilidade de a
Câmara dos Deputados aprovar uma anistia aos financiamentos irregulares de
campanha política parece ter ultrapassado os limites do decoro que mantinha a
civilidade aparente. Para quem é de esquerda, não causa nenhuma surpresa que os
deputados que votaram com tanta alegria pelo afastamento da presidenta Dilma invocando Deus, a Pátria, a Família e a Província de São Tacanho de Cuaçu –
deputados que ainda ontem eram os heróis da direita paneleira -, não causa
surpresa que esses mesmos deputados tentem agora se safar da cadeia e passem a ser
vistos como “comunistas” por alguns grupelhos de direita que, devido ao léxico reduzido, não conhecem outra forma de
xingamento.
No dia 16 de novembro, um desses
grupelhos invadiu o plenário quase vazio da Câmara Federal. Davam vivas a
Sérgio Moro, o nosso Harvey Dent, e pediam uma intervenção militar. Uma das
manifestantes confundiu o círculo vermelho da bandeira do Japão com um símbolo
comunista. Esse foi certamente o ápice da má politização que, à direita e à
esquerda, produziu tantas tolices desde as passeatas de junho de 2013, tolices
engrossadas pelo tom muitas vezes chulo e sempre raivoso adotado por vários
jornalistas e intelectuais ansiosos de obter adesão e formar rebanhos de fieis,
em conquistar corações e mentes, sobretudo os corações ressentidos e as mentes
confusas (ver nota 2).
O resultado foi uma polarização
emocional e irracional, um certo gosto de vomitar diante dos outros, que foi
tornando impossível a conversa serena e argumentada sobre os tópicos da vida
pública. Nessas ocasiões, os clichês, os conceitos-de-guerra, as palavras de
ordem e os xingamentos são disparados com presteza para humilhar, calar, punir e
esmagar o infame que tem opinião diferente à direita ou à esquerda. Essa degradação do debate público parece ser consequência
da redução da esfera pública de opinião. Ao se transferir para o âmbito da
internet, parecia que o debate se tornaria universal e livre. No entanto, a
internet foi sofrendo os enclosures praticados por empresas
privadas como o Google e o Facebook e as
áreas de conversação adquiriram o caráter de bolhas ou guetos de opinião e
compartilhamento de gostos. Trata-se de um falso espaço público, uma vez que as
vozes discordantes não precisam ser ouvidas já que podem ser eliminadas com
apenas um clic. No Facebook, cada um tem o direito de ser Stalin e
expurgar os dissidentes. Essa facilidade de bloquear um “coxinha fascista” ou
um “peteba comunista” tem um efeito tão gratificante quanto deseducador porque,
ao contrário do que pensam alguns, o desiderato da vida política não está em
tornar-se o próximo tirano, assim como não está em alcançar um meio-termo morno
com os adversários para não perder a popularidade. Em tempos menos escuros, o
objetivo da vida política deveria ser o mais digno de todos: a formulação rigorosa,
consequente e argumentada das posições que defendemos e que lutamos para realizar em confronto com as visões de oponentes de igual clareza e firmeza de propósitos.
A intensidade da vida política não
deveria vir do frenesi jacobino que clama por mais guilhotina para os inimigos; também não deveria vir do sentimentalismo ressentido da pequena
burguesia (a classe social especializada em mi-mi-mi à direita e à esquerda). A
vida política exige inteligência porque exige soluções. Essas soluções não são
neutras. Elas sempre causam descontentamentos. É preciso ter argumentos racionais
diante dos ataques que vêm dos insatisfeitos. É preciso ter firmeza, aquela que vem da lucidez
de quem vê o quadro mais amplo e não aquela que se reduz à segurança estreita de
quem repete mantras. O dogmatismo à esquerda e à direita está tão afastado da
inteligência política quanto a real politik fisiológica e
baixa das ratazanas de fatiota.
A inteligência política compreende
que a sabedoria, o conhecimento e a racionalidade não são monopólio da esquerda
ou da direita, mas as decisões sobre as pautas públicas necessariamente serão
posições partidárias e, por isso, nunca corresponderão à idealidade do
conhecimento e da racionalidade, da mesma maneira que nunca corresponderão
perfeitamente aos valores morais. Aceitar a imperfeição e a incerteza inerente
às escolhas políticas e, ao mesmo tempo, reconhecer que elas devem estar
circunscritas ao âmbito da racionalidade, do conhecimento e da sabedoria, é a
quadratura do círculo que é preciso resolver no âmbito de cada ação política. Aqui não há fórmulas gerais nem receitas prontas.
A inteligência política é,
portanto, uma real politik da razão treinada na lida com a
vida concreta e esclarecida pela meditação sobre os grandes autores. Nenhum
esquerdista deveria se privar da prosa vigorosa e da inteligência de Edmund Burke, das
fulminações clarividentes de Joseph de Maistre, da argúcia analítica de
Tocqueville, das
conquistas teóricas da Escola de Viena, do brilho racional insuperável de
Raymond Aron, das escrupulosas construções teóricas de filósofos como Voegelin
e Eric Weil. Nenhum direitista deveria tapar os ouvidos ao canto de sereia
retórico e argumentativo de Rousseau, nem deveria negar o rigor das análises de
Marx ou o empenho revolucionário insuperável de Lenin, tampouco deveria
desprezar as grandes formulações de Gramsci, Adorno e Marcuse sobre a sociedade
contemporânea, ou as incomparáveis provocações de Sartre, ou a capacidade de
Foucault de perturbar consensos estabelecidos. E ninguém, à direita ou à
esquerda, deveria fugir da leitura de Tucídides, Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Spinoza ou Max Weber.
A inteligência política brilha à
esquerda e à direita em todos esses grandes pensadores e em todos aqueles que
nem cheguei a citar e que deveriam ser o pão cotidiano do pensamento de
qualquer um que acredita que a vida política é uma arena em que é preciso
intervir pela ação, pela opinião, pelo voto, mas antes de tudo, pela
inteligência, pelo cultivo da capacidade argumentativa, pelo exercício da paciência
de ouvir as opiniões opostas. Será exigir demais que os militantes estudem? Que
não se apressem a seguir um mestre? Que não sejam leitores de um único livro?
Que se esforcem para não dizer tolices? Que não pensem que alguém é
inteligente só porque se diz de esquerda ou de direita? É preciso
que os militantes à esquerda e à direita aprendam a desmascarar os farsantes, a
desmentir os fariseus e a desmoralizar os filisteus dentro da sua própria
família política. É desesperadoramente necessário, dada a gravidade
da situação social e política do Brasil, que aqueles que estão empenhados na
mudança não façam o papel de pós-otários que acreditam em pós-verdades.
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Nota 1: As incertezas internas foram
agravadas, como sempre, pelas notícias do exterior que “sacudiram os mercados
internacionais”. É de se admirar essa capacidade sismográfica dos mercados. Que
sensibilidade tão suscetível! Basta um boato, uma intriga, alguma
“pós-verdade”, e toda a confiança dos agentes econômicos racionais desaba em
insegurança e pânico. Quando tudo está bem, exalta-se a capacidade
autorregulatória dos mercados; quando começam a surgir os problemas, os
mercados acusam a meteorologia (demasiadas chuvas ou demasiadas
secas), a vida política (demasiado corrupta e ineficiente), a democracia
(demasiadas concessões demagógicas e populistas) e o Estado (demasiadamente
intrometido no fluxo normal dos negócios); quando a situação se torna catastrófica, os
mercados caem de joelhos diante de qualquer governante forte que prometa
ordem. Os mercados são máquinas de externalizar os fracassos e os
prejuízos. Se o avião voa bem, o mérito é da empresa que o construiu; se o
avião cai, a falha está no piloto e na turbulência imprevista.
Nota 2: Antes que alguém confunda mais uma vez a bandeira do Japão com a dos comunistas ou, o que dá no mesmo, veja aí mais uma intervenção maligna do Foro de São Paulo, faço questão de explicar que a expressão “conquistar corações e mentes” não tem nada a ver com o conceito de hegemonia de Gramsci. A expressão se refere a uma estratégia adotada pelo norte-americanos no Vietnam do Sul. A frase “corações e mentes” foi bastante usada pelo Presidente Johnson e a ideia subjacente retrocede até, pelo menos, John Adams, um dos Founding Fathers e figura reverenciada pelos conservadores norte-americanos e, tanto quanto eu saiba, acima de qualquer suspeita de comunismo.
Nota 2: Antes que alguém confunda mais uma vez a bandeira do Japão com a dos comunistas ou, o que dá no mesmo, veja aí mais uma intervenção maligna do Foro de São Paulo, faço questão de explicar que a expressão “conquistar corações e mentes” não tem nada a ver com o conceito de hegemonia de Gramsci. A expressão se refere a uma estratégia adotada pelo norte-americanos no Vietnam do Sul. A frase “corações e mentes” foi bastante usada pelo Presidente Johnson e a ideia subjacente retrocede até, pelo menos, John Adams, um dos Founding Fathers e figura reverenciada pelos conservadores norte-americanos e, tanto quanto eu saiba, acima de qualquer suspeita de comunismo.
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foto: obra de Joseph Kosuth, Self-described and self-defined, Museu Berardo, Lisboa
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